Um mergulho na Aldeia Multinétnica da Chapada dos Veadeiros

No coração do cerrado brasileiro, a Chapada dos Veadeiros é cenário do Encontro de Culturas Tradicionais, que acontece todos os anos no vilarejo de São Jorge reunindo mestres, líderes e artistas da cultura popular quilombola e indígena. A colaborada Camila Pinheiro fez uma imersão na Aldeia Multiétnica promovida no encontro e traz um relato pessoal que chama atenção para o brilho das identidades próprias das etnias brasileiras.
Por Camila Pinheiro. Fotos: David Carneiro

Foto Camila Pinheiro
Festas das máscaras Kayapó, feitas de fibra de burit

Quando pisei na Aldeia Multiétnica – 1ª fase do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, em Goiás – eu só refletia no quão positivo pode ser o contato entre dois povos se nesse processo sempre fossem garantidos o afeto, a escuta e as trocas justas. A Aldeia é um espaço promovido a cada ano no mês de julho dedicado ao fortalecimento das culturas e lutas políticas das nações indígenas e remanescentes quilombolas. O evento dá uma mostra dessa potência, ao unir, durante 7 dias, 7 etnias indígenas a nós, não-indígenas, proporcionando um ambiente de aprendizado e encontro com suas culturas individuais e lutas coletivas.

A cada dia do festival, uma das etnias anfitriãs liderava a programação com com espaço para a manifestaão de seus mestres, artistas e líderes. Essa estratégia reflete na preservação de sua autonomia, liberdade e autoria, além da iniciativa também garantir o fortalecimento financeiro dos povos envolvidos. Com honra, durante o festival estive ao lado dos Krahô (TO), Kayapó/Mebengôkré (PA), Fulni-ô (PE), Guarani Mbya (SC), KaririXocó (AL), Xavante (MT) e os povos do Alto Xingu (MT). Durante essa minha imersão, meu olhar contemplativo se voltou para cada detalhe do que é feito à mão por eles e rememete à mais profunda ligação com a natureza, com o divino e com a inspiração: tudo o que, para mim, se relaciona com a arte manual. 

As identidades indígenas

Mulheres indígenas Kayapó

As particularidades de cada nação indígena também ganham força nesse espaço de encontros. Além dos erros bárbaros que já cometemos em relação a estes povos (é urgente sempre relembrar do extermínio colonizador, do genocídio missionário, dos ataques ruralistas, da exclusão social e do preconceito diário), também erramos ao ignorar suas identidades próprias, ou seja, generalizar povos tão plurais como se fossem todos simplesmente “índios”. Só no Brasil resistem mais de 300 etnias vivas, falantes de centenas de idiomas distintos. A diversidade não seria diferente em relação às suas expressões artísticas e artesanais.

Durante o evento, foi impossível não se encantar com o trabalho multicolorido nos adornos de missangas dos Kayapó. Seus tradicionais braceletes (padjé) são produzidos somente pelas mulheres, que utilizam grafismos baseados na pintura corporal e nas peles dos animais. Também é muito interessante ver como a influência da cultura e consumo do homem branco é absorvida e reproduzida nessa técnica, de forma impecável, inclusive.  Muitos símbolos do mundo não-indígena aparecem enfeitando seus corpos: logotipos de marcas esportivas, escudos de times de futebol e até partidos políticos.

Foto: Camila Pinheiro
Missangas Kayapó

É importante reforçar, porém, que adotar atitudes contemporâneas não torna o indígena menos índio, pois sua identidade é sua propriedade e a cultura é um conceito em transformação intermitente a todas as civilizações.

Já na arte do povo Krahô, é visível a mudança na estética das cores que aparecem sempre em tons terrosos por tecerem sementes, cascas, madeiras e fibras naturais. Seus objetos têm forma e movimento nos quais afirmam possuir vida. Muitos povos do Alto Xingu, por sua vez, são exímios ceramistas, modelando peças utilitárias, como potes e cumbucas, no formato de animais sagrados e usando pigmentos naturais como o jenipapo e urucum para colori-las com seus grafismos. Já os Kariri-Xocó são um povo de cultura musical muito forte e seus artistas produzem artesanalmente instrumentos como o maracá, tocado no ritmo dos batimentos do coração, durante oToré: ritual tradicional com cantos e danças coletivas, que significa “som sagrado”.
 

foto: Camila Pineiro
Indígena Fulni-ô


Apesar de todas as singularidades de cada etnia, os povos indígenas carregam valores comuns que os conectam em uma só força. O saber ancestral é um de seus mais poderosos patrimônios, refletido em diferentes expressões culturais: arte, música, dança e práticas medicinais. Esse poderoso acervo sagrado, quando for reconhecido como um dos maiores patrimônios culturais do País, na minha otimista esperança, pode ser capaz de salvar o mundo (mundo esse, que no fim, é o mesmo para todos nós) .

Sobre a autora:

Camila Pinheiro é uma comunicadora sensível à identidade brasileira. Divide sua atuação em três pilares inter-relacionados: a pesquisa cultural, o desenvolvimento social e a economia criativa. Idealizadora do projeto MÃOS - Movimento de Artesãs e Ofícios, Camila percorre comunidades rurais e urbanas que possuem o artesanato como patrimônio material e imaterial, co-criando possibilidades inclusivas com mulheres artesãs pelo país.

 

 

 

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