As cores existem, o desfile-manifesto de Flávia Aranha na SPFW
Camila Fróis
Quando as primeiras modelos da marca Flávia Aranha pisaram nas passarelas na última edição do SPFW com sombras e manchas de urucum no rosto e nas orelhas, já havia um prenúncio do manifesto que viria pela frente.
O urucum é um fruto com pigmento vermelho intenso de uso milenar entre os índios amazônicos, hoje comum tanto na Amazônia quanto no Cerrado. “A gente fala no ateliê sobre roupa viva e sobre o que ela significa para além do produto: memória, história, afeto as relações” explica Flávia, ao abordar o conceito da marca que surgiu há 10 anos como forma de questionar padrões de produção da indústria da moda e estreiou em na SPFW com peças criadas a partir de tecidos de seda, de sisal bordado ou de algodão orgânico fiados e tingidos manualmente por artesãos brasileiros. Além dos tecidos naturais, Flávia apresentou durante o evento bolsas entalhadas em madeiras brasileiras com a técnica de marchetaria executadas pelo artista Maqueson Silva, do Acre, e pulseiras modeladas na argila por artesãs da Associação Coqueiro Campo, no sertão mineiro.
Uma expedição em buscade processos criativos
Antes de atuar na sua produção atutoral, a estilista se dedicou ao mercado tradicional e se deparou com uma lógica de desvalorização das produções locais e das matérias-primas brasileiras.
“Essa era uma questão que me intrigava. Por que a gente nega as nossas raízes, sendo que a gente vive em um lugar tão abundante, tão potente e com tanta riqueza?”, conta a estilista.
Com essa provocação, há 10 anos Flávia fez uma viagem para o Nordeste e começou a pesquisar as matérias-primas e processos artesanais que poderiam ser experimentados na alta moda. “Desde a planta, desde a terra, de onde vem a nossa matéria-prima, eu quis ir lá no solo, eu quis encontrar os produtos de algodão, as plantas tintórias, as fibras, quis estudar as técnicas e tentar colocar tudo isso num lugar só”, recorda.
As cores da biodiversidade
As experimentações a partir dessa pesquisa levaram a estilista a fazer uma opção determinante pelo tingimento natural, que se transformou em uma das suas principais bandeiras. As tintas naturais são aquelas que, ao invés de serem criadas com produtos químicos, são extraídas de elementos da biodiversidade como sementes, castanhas, cascas, raízes, frutas, raspas de madeira, folhas, etc. È o processo utilizado, por exemplo, pelas artesãs de Uruana de Minas, no cerrado mineiro, que integram a Cooperativa Central Veredas (membro da Rede Artesol). È lá que Flávia concebe boa parte de sua produção de forma integrada com as fiandeiras.
Segundo Vaneide Almeida, uma das artesãs de responsáveis pelo tingimento das peças que foram lançadas na Fashion Week, a base para a criação da paleta de cores utilizada foi a serragem do pau-brasil misturada com açafrão, que dá origem às tonalidades vermelha, rosa e laranja. “ Pra mim é um sonho estar aqui e mostrar o valor não só dessas peças que você viu, mas de todo o trabalho de tingimento natural que preserva o Cerrado e gera renda pras pessoas de lá. Acho que, através da moda, as pessoas podem ver a importância de preservar, né? E também de gerar valor com o cerrado de pé”, avalia Vaneide, que veio para São Paulo prestigiar o desfile junto a outras integrantes da Cooperativa.
“A gente fala muito de design essencial e afetivo, porque o que inspira o processo criativo é o relacionamento com essas histórias, com esses grupos e com os próprios processos”, afirma Flávia. Segundo ela, o processo de criar cores a partir de elementos da natureza representa muito mais que uma prática que pode ser sustentável do ponto de vista socioambiental, mas é como um conceito holístico sobre a moda.
“Cor não é pantone, não é número. Então quando a gente está falando da roupa viva, a gente fala desse conhecimento mais plural, cruzado, compartilhado. Para você tingir, você precisa saber de onde vem aquela planta, a história dela, a relação dos produtores com aquela espécie. Você precisa saber sobre botânica, química, sociologia. Então, o tingimento natural é o que pauta a forma como a gente existe no mercado”, reforça a designer de moda.
Flávia ainda destaca que, através dos processos manuais, a ideia é também humanizar a produção, valorizando quem produz, a cultura local, as técnicas e as relações instauradas nesta cadeia. Uma prova viva e muito simpática de que a estratégia vem dando certo é a dona Maria Nadir Mendes, outra artesã convidada a viajar para São Paulo para prestigiar o lançamento da marca. “Eu faço fiação, tingimento da linha, tecelagem, eu costuro, eu faço crochê e faço bordado. Aquele casaco de chenile, você viu lá? Foi eu que fiz com uma companheira! Deu um trabalhão, mas foi uma maravilha, gostamos muito de vir aqui pra ver o que a gente fez e saber que eles gostaram também! Engrandece a gente, sabe?! Eu aprendi isso desde criança, eu nasci nessa tradição, aprendi com minha avó. Tinha ficado parada, mas há um tempo formou a associação e juntou as fiandeiras, a gente se encontra, conversa, canta. O pessoal de lá também vai gostar demais de saber como foi aqui, vai ficar animado a trabalhar mais!”
Camila Fróis
Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.