Dagmar, Filha do Barro

Com a proposta de documentar a historia de vida da artista Dagmar Muniz, na Costa do Cacau (BA), uma pequena equipe de documentaristas tem acompanhado a rotina de produção da mestra à beira do Rio Jequitinhonha, onde são moldados os vasos gigantes de 2,40 m de altura, que expressam o tamanho da resiliência da ceramista. Conheça mais sobre a artista e apoie a produção do documentário!
RodriguezRemor



No delta do Jequitinhonha, à beira do Córrego Conceição, na cidade de Belmonte/BA, está localizada a Cerâmica 14 Irmãos, antiga Olaria Progresso, testemunha de um passado no qual dezenas de olarias forneciam tijolos para uma cidade que crescia acompanhando a expansão do cacau e da pesca do camarão. A partir de meados dos anos 1990, apenas a pequena olaria permaneceu aberta, ao contrário de todas as outras que se viram obrigadas a encerrar suas atividades. E foi a criatividade e a inovação de sua proprietária que, aos poucos, substituiu a produção de tijolos por artefatos cerâmicos, em especial vasos gigantes produzidos sem o auxílio de tornos.

A artista Dagmar Muniz de Oliveira, de 86 anos, é a responsável por essa transição. Residente em Belmonte desde os treze anos de idade, ela é fundadora da olaria cujo novo nome homenageia seus quatorze filhos. Lá, dona Dagmar, como é conhecida no Sul da Bahia, produz regularmente os maiores vasos de cerâmica do Brasil, que podem levar até 45 dias para serem modelados e semanas para que estejam secos e aptos à queima artesanal.

De origem Pataxó, nascida em Una/BA, norte de Belmonte, em contexto precário e com poucos recursos materiais, Dona Dagmar afirma que criou tudo a partir do barro. Foi através dele que a artista alimentou seus filhos e melhorou sua condição de vida. Sua trajetória nos ensina sobre resiliência, tenacidade e sobrevivência. Seu amor pelo barro e por seu ofício de oleira fez com que Dagmar conquistasse Belmonte e admiradores Brasil afora. Hoje, parte de sua família pratica esse ofício emblemático, que sublinha a importância do contexto e do território nas práticas culturais de uma região.

Enfornamento de peças na técnica de forno caieira. O filho Jorge cuida atentamente do posicionamento de cada uma das peças para garantir a homogeneidade da queima. Foto: RodriguezRemor

Todo esse imenso legado se revela na produção de peças que empregam uma argila muito flexível e resistente encontrada rio acima, a uma hora de rabeta, na margem direita do Córrego Conceição. Os netos Daniel, Paulo Roberto e Wallace são os responsáveis pela coleta da argila. E de uma a duas vezes por mês conduzem uma grande canoa carregada com o barro sagrado do Jequitinhonha até o ateliê da artista. O trabalho é duro e pesado e pode levar toda uma manhã. Descarregar a argila e prepará-la para o uso também exige esforço. O barro deve ser pisoteado e logo em seguida talhado em porções. Nessa etapa, retiram-se as impurezas da argila, como pedras e raízes. Finalizada a preparação da argila, os filhos Jorge, Elizete e Edna, além do neto Daniel e sua esposa Juliana, em conjunto com Dona Dagmar, dão início à modelagem de novas peças cerâmicas.

A etapa seguinte é a secagem das peças e a queima em forno caieira, geralmente utilizado para a queima de tijolos. No método tradicional de queima caieira, um forno de tijolos crus é construído ao redor das peças cerâmicas. Ou seja, a cada queima um novo forno é erguido e, logo em seguida, desmontado para a retirada das peças e venda dos tijolos cozidos. Nessa técnica artesanal, a lenha reciclada é colocada nas bocas do forno durante cerca de dez horas, sendo que nas últimas três horas as bocas devem ser alimentadas com um maior volume de madeira para que o forno atinja uma temperatura superior a 600 graus. A técnica de queima caieira é bastante singular, já que aproveita os tijolos de barro que serão queimados para dar forma a um forno temporário e, por outro lado, a temperatura e duração da queima variam em razão do forno adaptar-se à quantidade de peças produzidas.

Como na revelação de filmes, existe sempre uma margem de surpresa em relação ao produto final. A integridade, a dureza e a tonalidade da cor das peças pode ser diferente do imaginado.

A equipe do documentário registra a pescaria de Dona Dagmar. A pesca no Córrego Conceição integra a rotina da ceramista desde sua chegada em Belmonte. Foto: RodriguezRemor

Nos deparamos pela primeira vez com o trabalho de Dona Dagmar ainda quando participávamos do grupo de pesquisa em cerâmica Campo e Arte, ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Só conseguimos visitá-la, entretanto, quando estabelecemos nossa residência na Bahia durante a pandemia. Em janeiro de 2021, acordamos com a artista que faríamos visitas frequentes para documentar sua prática artística. E, assim, demos início ao documentário homônimo ao título deste texto, "Dagmar, Filha do Barro".

O forno caieira está prestes a ser fechado. Os maiores vasos sempre ficam alojados no fundo do forno e na frente são posicionados os vasos de tamanho médio, com certa de 1m de altura cada um. Os maiores vasos chegam a 2,40 m de altura

O documentário narra a história de vida de Dona Dagmar em cruzamento com as etapas de produção de um grande vaso cerâmico, desde a busca do barro no Jequitinhonha, passando pela secagem e a preparação da argila, concentrando-se na modelagem das peças em família e concluindo com o enfornamento dos potes e a singular queima em forno caieira. Nosso objetivo é lançar um olhar crítico sobre as práticas culturais ligadas ao território e sensibilizar o público sobre os modos de vida – e suas culturas – em desaparecimento. Ainda sem os recursos para a finalização do documentário, fomos convidados a apresentá-lo no 37º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), no mês de julho deste ano.

Os realizadores do documentário Denis Rodriguez e Leonardo Remor, que são artistas, curadores e pesquisadores interessados na relação entre Arte e Natureza

Apoie a finalização do documentário

Desde janeiro 2021, a pequena equipe do documentário vinha visitando regularmente Dona Dagmar, quando em setembro de 2021 receberam a triste notícia de que a ceramista tinha sofrido três AVCs consecutivos. Depois de sua recuperação, o projeto avançou rapidamente e concluiu a etapa de captação de imagens em março passado. Com o apoio da Artesol, o projeto Dagmar, Filha do Barro lança hoje um crowdfunding para financiar a finalização do documentário.

O objetivo é arrecadar cerca de vinte e cinco mil reais para o pagamento de profissionais da economia do audiovisual, além de remunerar a própria artista, como também, contribuir com a economia da família adquirindo algumas peças cerâmicas. Os recursos arrecadados serão utilizados na montagem/edição de imagens, na composição da trilha sonora, no tratamento de imagem do corte final, no tratamento de som e na criação dos créditos do documentário.

Dessa forma, o projeto gera relevante documentação artístico-histórica do trabalho de Dona Dagmar Muniz, homenageando seu laboroso ofício e sua trajetória de dedicação, entusiasmo e resiliência. Para a equipe, homenagem se faz em vida e os artistas populares são merecedores deste reconhecimento enquanto atuam. Afinal a quem serve homenagens póstumas?

Acesse a campanha da Benfeitoria para apoiar. 

 
Sobre o autor

RodriguezRemor

Denis Rodriguez e Leonardo Remor são artistas, curadores e pesquisadores. Refletem sobre o binômio Arte e Natureza em projetos que voltam seu olhar ao campo, à terra e à transmissão de conhecimento e tecnologias ancestrais de criadores populares e dos povos originários do Leste da América do Sul. http://www.rodriguezremor.art/
Leia mais reportagens