O artesanato na moda: estratégias de criatividade e negócios

Seria possível transformar uma produção artesanal em um negócio que seja construtivo e próspero? A contradição existente na base do sistema artesanal, uma consequência da industrialização e do consumo capitalista, provavelmente, é o que nos leva a duvidar dessa possibilidade.
Bruna Rigato


 

Coleção Chloé Craft 2022. Fotos: divulgação

O suposto antagonismo entre artesanato e indústria ganha força diante da velocidade com que as pessoas têm consumido itens de moda no mundo. Como o artesanato poderia competir com a agilidade da indústria têxtil? Como a produção artesanal remete a práticas ancestrais, até pouco tempo, era comum a indústria ser considerada sinônimo de sucesso, enquanto o "feito à mão" carregava o estigma de algo antiquado.

Hoje, porém, com a valorização das identidades locais na pós modernidade, as técnicas artesanais têm ganhado importância pela possibilidade de criação de produtos expressivos e singulares (impossíveis de se fabricar em larga escala), que são, portanto, fundamentais para a riqueza da cultura material e visual da nossa sociedade. 
 
O resultado é que o artesanato - ou melhor, a estética artesanal - tem se tornado uma tendência entre grandes marcas. É o caso das roupas de crochê da marca de luxo Miu Miu (que podem custar até 10 mil reais), ou das bolsas trançadas de diversas grifes que dominam as vitrines do país e até de marcas de fast fashion, como a Zara, que tem incluído em suas coleções produtos que imitam técnicas e estéticas tradicionais. 


Associação Rendeiras de Bilro de Ponta Negra. Foto: Paulo Lucena

Podemos justificar esse movimento pela ótica do slow fashion (movimento que prega o consumo consciente), pelo craftcore (comportamento decorrente da pandemia que nos incentivou a fazer coisas em casa), ou mesmo pela busca incessante de referências “cult”, algo que a moda sempre fez desde Paul Poiret, um dos principais estilistas franceses, atuante principalmente durante as duas primeiras décadas do século XX, cujo legado tornou-se fonte de inspiração para muitos estilistas e artistas que o sucederam.

O fato é que nos vemos hoje diante de uma realidade indiscutível. O artesanato é tão interessante e desejável que muitas marcas se apropriam da estética artesanal para impulsionar suas vendas, copiando técnicas e reproduzindo peças em massa, muitas vezes sem oferecer remuneração ou créditos justos aos artesãos. Por isso, tanto as marcas quanto os artesãos precisam desenvolver estratégias para comunicar aos consumidores o valor e todos os ativos do trabalho artesanal para que consumidores entendam o verdadeiro valor de suas peças. Vamos falar sobre isso? 

1. Inovação 


Campanha do projeto I was a Sari. Foto: Divulgação

Pode não parecer, mas a inovação é muito relevante no contexto do artesanato, pois os artesãos podem honrar suas tradições e, ao mesmo tempo, abraçar as tendências, especialmente na moda, onde é essencial despertar o desejo dos consumidores através de novas linguagens estéticas, experimento de cores, formas e materiais, como fazem marcas como Colville ou a linha artesanal da Chloè, chamada "Chloè Craft". Além disso, a inovação pode ser impulsionada pela tecnologia, considerando a sustentabilidade como aliada do artesanato. Um exemplo notável é o da marca I was a Sari, que utiliza upcycling para transformar saris indianos descartados em belos produtos artesanais por meio de bordados, patchwork e outras técnicas.

2.Exclusividade

A exclusividade de uma peça artesanal é indiscutível e confere valor de luxo à moda. Essa estratégia deve ser comunicada e reforçada continuamente para que os consumidores compreendam o alto valor econômico e cultural dos objetos feitos à mão. É o caso das luxuosas bolsas da marca italiana Valextra, que podem custar mais de 5 mil euros e que têm um mercado específico e fiel. Outro exemplo é o de Davide Gatto, que produz itens mais acessíveis em crochê, customizando bolsas de couro e transformando-as em novos produtos. 

3. Empatia 

A humanização do processo de produção artesanal deve ser uma estratégia de comunicação, pois agrega um valor significativo às peças. Quando o consumidor conhece a história por trás de seus produtos e sabe que são feitos por artesãos dedicados que investiram seu tempo e conhecimento, cria-se um apego emocional com a peça. O QR code nas peças da Catarina Mina é um exemplo dessa informação dada ao consumidor, pois em cada etiqueta das peças é possível  escanear e acessar a foto da artesã, além de conhecer o tempo de produção e outros detalhes envolventes. 

4.Qualidade 

Peça produzida no Projeto Laboratório de Inovação Artesanal da Rede Artesol com o Grupo Associação de Rendeiras de Ponta Negra. Foto: Paulo Lucena 

A qualidade é essencial para o sucesso de uma marca artesanal ou artesão. É fundamental investir na capacitação e no aprimoramento das técnicas para criar detalhes que fazem a diferença. Mesmo marcas tipicamente industriais podem se beneficiar ao colaborar com artesãos, aproveitando suas habilidades e criatividade. Um exemplo é a marca de sapatos Geox, que utiliza artesãos para desenvolver suas modelagens e protótipos, garantindo inovação e qualidade. 

Em resumo, todas essas estratégias têm como base a criação de produtos artesanais planejados e técnicos, combinados com uma comunicação eficaz. É uma integração da lógica industrial com a lógica artesanal, não uma competição entre ambas.  Seguindo a ideia do slow fashion, o ideal é evitar uma cadeia industrial linear, onde existe um calendário estreito e produção em alta escala. E, assim, devemos adicionar as nuances da produção artesanal, bem como o incentivo do compartilhamento de ideias entre designers e artesãos, a pesquisa de técnicas e materiais, e, principalmente, a definição do papel do artesanato na coleção de moda, seja como um elemento pontual, estrutural ou ornamental na peça. Essa abordagem proporcionará um espaço permanente e valorizado para o artesanato na indústria da moda. 

 

 

 

 

Sobre o autor

Bruna Rigato

Designer de formação com experiência no setor de luxo, tanto no Brasil quanto na Itália, trabalhou em marcas como Gucci e Moncler nas áreas de merchandising e desenvolvimento de materiais. É formada no Master de Fashion Direction e Product management no Milano Fashion Institute e Politecnico di Milano, onde desenvolveu sua tese sobre sustentabilidade nas marcas de luxo e participou do Youth Fashion Summit e Copenhagen Fashion Summit em 2016. Com a sua experiência, Bruna desenvolveu seu olhar para a inovação no mercado global, com foco em business, têxteis e sustentabilidade. Hoje, mora em Milão e tem o objetivo de promover o artesanato e os saberes manuais na moda e no mundo.
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