Visitar ateliês: uma viagem para adentrar a genialidade dos artistas populares

Repletos de vida, os ateliês costumam revelar os desejos, inspirações, modos de pensar e os processos criativos dos seus donos. Por isso, em sua última expedição de campo pela Artesol, a antropóloga Isabel Franke fez uma imersão nesses espaços inventivos de diferentes mestres, artesãos e artistas do semiárido brasileiro
Isabel Franke

 

 

Protótipos de peças do artista Zé Bezerra, no quintal de sua casa, no Vale do Catimbau (PE). Foto: Isabel Franke

Cresci em uma família de pessoas que gostam de fazer e construir coisas com as próprias mãos. Meu pai tinha um galpão, um cômodo no quintal com prateleiras em todas as paredes para armazenar suas inúmeras ferramentas e equipamentos. Já minha mãe sempre fez o que chamamos de manualidades: crochê, colagens, pinturas, bordados diversos... E mantinha todos os seus materiais em um armário imenso. Enquanto crescia e construía a mim mesma, usava os materiais e ferramentas dos dois para fazer minhas próprias coisas, que ficavam cada vez mais complexas conforme eu envelhecia. E, como não podia ser diferente, hoje tenho meu próprio espaço, um quartinho onde convivem os materiais de costura, tingimento, gravura, fotografia analógica, pintura e, mais recentemente, uma oficina de joalheria. 
Talvez, por isso, sou apaixonada por oficinas e ateliês desde criança. Não importa o ofício ou a arte, sempre vou querer experimentar as ferramentas, fuçar os descartes, espiar as caixinhas e gavetas e imaginar o porvir de cada peça inacabada. Ao observarmos com atenção um ateliê, adentramos em um mundo que possui uma organização própria, por mais que, à primeira vista, ele nos pareça uma completa bagunça. Esse espaço revela, de forma única, os processos criativos do artista ou do artífice.

 

No povoado Ilha do Ferro (AL), tentando reproduzir as técnicas de entalhe com o artesão Neto no Ateliê Boca do Vento. Foto: Arquivo pessoal

Com tanto fascínio pela poética da bagunça criativa, não me espanta que, ao revisitar as fotos de uma recente viagem que fiz com a equipe da Artesol para conhecer artistas populares e artesãos, eu encontre tantas fotos de ferramentas, potes de tinta e restos de madeira entalhada. Nessa viagem, visitei pela primeira vez os espaços de trabalho de vários artistas populares e mestres consagrados. Encontrá-los presencialmente, ouvir suas histórias, vê-los trabalhar e conhecer seus ateliês me impactou e transformou. 

O artista popular e seu espaço criativo 

Por muito tempo, os artistas populares permaneceram negligenciados pelo circuito das artes. Mantidos no anonimato, suas obras foram consideradas pelos críticos e estudiosos como “ingênuas”, “espontâneas” e “primitivas”, como se, simplesmente, brotassem independentemente do próprio autor. Essa percepção só começou a ser questionada a partir da década de 1970, quando uma série de publicações passou a registrar as histórias de vida desses artistas e a evidenciar a interpretação que eles mesmos dão às suas obras. Mesmo com esses esforços, a arte popular continua enfrentando resistências para adentrar de vez e ocupar seu lugar de direito na história da arte e no circuito de galerias e exposições, pois velhos preconceitos ainda persistem. 

Ainda que os artistas populares se guiem pelos sonhos e intuições para criar suas obras, quando visitamos seus espaços de trabalho, percebemos que essa explicação corriqueira sobre suas produções, por si só, é insuficiente. A observação e uma conversa atenta logo revelam que eles também realizam pesquisas ativas para encontrar soluções formais e técnicas. Esses artistas criam engenhosas ferramentas para etapas específicas do trabalho, testam diferentes materiais e possuem teorias próprias do uso da cor. Em outras palavras, o processo criativo de um artista popular é permeado por uma investigação do mundo material e da imaginação. Mesmo que não sigam os cânones de uma arte dita “erudita”, os materiais, as ferramentas e as obras iniciadas e descartadas em seus ateliês indicam um verdadeiro pensar com as mãos. 

 

Zé Bezerra em sua casa ateliê. Foto: Theo Grahl 

No universo da arte popular, muitas vezes o ateliê é uma extensão da própria casa: fica na sala, na cozinha, na varanda, no quintal e até na sombra de uma árvore frondosa. Também é o espaço de receber clientes, prosear com amigos e familiares, ensinar aprendizes, fazer confraternizações e expor as obras prontas. As atividades mais cotidianas e o trabalho convivem e se misturam. Por isso, cada artista popular tem um ritmo de produção próprio, refletindo seus processos investigativos particulares e as dinâmicas culturais e sociais de seu entorno. 

Uma expedição pelos ateliês de artistas populares 

Após visitarmos a 23ª Fenearte em Olinda (PE), Josiane Masson, Sheila Maiorali e eu, da equipe Artesol, pegamos a estrada e percorremos mais de 850 quilômetros com o objetivo de encontrar e reencontrar artistas populares e artesãos, conversar com eles, visitar seus espaços de trabalho e compreender seus contextos sociais e culturais.  

Nossa primeira parada foi no Parque Nacional do Catimbau, mais especificamente na sua porção localizada no município de Buíque (PE). Também conhecido como Vale do Catimbau, o lugar abriga artistas populares que trabalham com o entalhe em madeira de umburana e jaqueira. Seus ateliês ficam nos quintais, ou terreiros, bem próximos à casa. Sem paredes, com apenas um telhado sustentado por quatro colunas, esses espaços abertos permitem a passagem do vento fresco e são rodeados pelos troncos amontoados das madeiras coletadas nas matas e pelas lascas das peças entalhadas que se acumulam pelo chão. 
 

Artista Cícero Souza entalhando uma peça no ateliê de Simone Souza em Buíque: Isabel Franke

Zé Bezerra, artista pioneiro, fez de seu terreiro um verdadeiro espaço cultural. Ao ver nosso carro chegar, correu para colocar seu chapéu de vaqueiro e veio nos receber, falante e alegre. Fomos convidadas a sentar em um salão aberto, construído especialmente para receber os visitantes, para prestigiarmos uma apresentação musical. Zé Bezerra toca, com uma faca, uma espécie de berimbau feito com arame e baldes de flandres. Entre uma música e outra, conta histórias de verdades inventadas. Seu quintal é uma galeria a céu aberto, onde cada escultura é posicionada com cuidado, revelando o apuro estético do artista. Mais ao fundo, o pequeno espaço de trabalho abriga suas ferramentas e peças inacabadas, com a madeira ainda amarelada e marrom. Somente depois de ficar exposta ao sol por alguns meses, a umburana adquire a cor cinza, tão característica de seu trabalho. 

Simone Souza, outra artista da região, é conhecida por inserir a figura feminina nas esculturas em madeira. Com uma produção mais figurativa, Simone se destaca pelo primoroso acabamento. Seu ateliê é compartilhado por outros artesãos que trabalham e aprendem com ela, sem deixar de desenvolver suas características originais. Lá, fomos recebidas com o melhor café que tomamos em toda a viagem e pudemos prosear um pouquinho e observar Cícero Souza, sobrinho de Simone, entalhar. Cícero ganhou o prêmio na categoria madeira do 18º Salão de Arte Popular Ana Holanda da 23ª Fenearte com a genial peça “A Procura da cabeça perfeita”. Testemunhamos o artista entalhar uma cabeça e foi impossível não perguntar a ele, sem deixar de provocar riso: seria essa a cabeça perfeita?  
 

Artista Simone Souza. Foto: Isabel Franke

Sem uma resposta satisfatória para nossa pergunta, pegamos a estrada novamente e deixamos Pernambuco para entrar em Alagoas. Nosso destino era o povoado da Ilha do Ferro, no município de Pão de Açúcar. Localizado na margem do rio São Francisco, o lugar  é conhecido por concentrar uma quantidade expressiva de artesãos que trabalham com o entalhe da madeira e pelo sofisticado bordado boa noite. 

Ficamos hospedadas na Pousada da Vana, esposa do reconhecido Mestre Aberaldo. A oficina de Aberaldo fica junto ao refeitório e, por isso, ouvíamos os sons da madeira sendo escavada durante as refeições. Mestre Aberaldo identifica todas as suas ferramentas com letras riscadas a ponta de faca no cabo de madeira, para que elas não se percam ou se confundam com as de outros artesãos. Essa assinatura, fina e delgada, curiosamente é bem diferente da mais geométrica entalhada em suas peças com a ponta de um formão. Enquanto trabalhava, Aberaldo me explicou como calculava as marcas para entalhar os rostos de suas peças e contou que estava reformando seu barco para colocar uma vela, desenhando na areia os diferentes tipos de embarcações tradicionais que navegavam pelo rio São Francisco. Me mostrou como a mesa de apoio do trabalho foi cuidadosamente pensada: uma borracha de pneu garante que as peças não deslizem e uma espécie de esquadro de madeira pregado funciona como apoio. 

Uma das experiências mais marcantes foi visitar o ateliê Boca do Vento, lugar emblemático para a história do local. Era ali que Seu Fernando, o artista que projetou o nome do povoado como um polo de produção artesanal, criava suas peças. Lá vimos Valmir Lessa, genro de Seu Fernando, trabalhar. E também foi lá que Neto me ensinou um pouquinho do entalhe em madeira. Neto também me explicou como o entalhe é pensado sempre em relação aos veios da madeira, para que a peça tenha resistência. Mostrou várias ferramentas e suas funções e os tipos de madeira mais usadas, mulungu e pereiro. Experimentar o entalhe nesse lugar tão especial, onde o vento sopra forte e vemos as águas azuis do rio São Francisco correr, é realmente único. 

 

Ateliê do mestre João das Alagoas Fotos: Isabel Franke e Maylson Honorato / Gazeta

Nossa última parada, a caminho de Maceió, foi em Capela. Visitamos o ateliê fundado por João das Alagoas, espaço compartilhado pelo mestre e seus aprendizes, que hoje já são artistas independentes. Encontramos João das Alagoas peneirando o barro, com os braços sujos até os cotovelos. Nos últimos anos, ele vem se dedicando a pesquisar o comportamento da argila, testando diferentes misturas e processos de queima. Explicou as proporções das massas de argila, o brilho da mica e como criou os azuis e arroxeados para a pintura misturando a ferrugem do metal dos fornos com o barro branco. Rindo, disse que é daltônico e que, para ter certeza de qual cor havia criado, perguntava para várias pessoas o que elas estavam vendo. 

João das Alagoas também investiga a representação iconográfica por meio de desenhos. Em um grande quadro na parede do ateliê, vimos os esboços criados a partir de lembranças e da observação dos costumes da região. São pequenos desenhos, detalhes de cenas maiores que ornamentarão seus bois. E por falar nos bois, foi só depois de percorrer as estradas do estado cortando tantas fazendas, que percebi que o boi de João das Alagoas é da raça nelore. 

Nesse ateliê coletivo também vimos Sil da Capela modelar suas peças com uma habilidade impressionante. E pudemos admirar a destreza de Cláudio Henrique, que produz peças figurativas diminutas, muitas vezes menores do que a cabeça de um palito de fósforo. Com um trabalho em escala tão pequena, Cláudio precisou criar suas próprias ferramentas de trabalho. Usa agulhas de seringa, espinhos de cacto e facas em miniatura, originalmente vendidas como chaveiro e souvenir. A criatividade e engenhosidade de um artista não se manifestam somente nas obras, mas sim bem antes, na criação de ferramentas e técnicas que tornam as obras possíveis. 

Em todos os lugares que visitamos fomos recebidas de forma calorosa e carinhosa. Além de testemunhar a genialidade desses artistas, me marcou profundamente perceber como eles são generosos para compartilhar seus conhecimentos e explicar como desenvolvem seu trabalho. Dessa viagem, carrego comigo todas as coisas lindas que vi e ouvi, mas guardo com mais carinho tudo aquilo que eles me ensinaram que é possível criar com as mãos. 

 

Sobre o autor

Isabel Franke

Isabel Franke é antropóloga, pesquisadora e educadora. Atualmente trabalha com articulação e pesquisa para a promoção da salvaguarda do artesanato brasileiro de tradição.
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