
Dona Joana Pinta (Maria Joana Gonçalves Mendes)
As mãos que criam, criam o que?
No antigo tear mineiro que restou, Maria Joana Gonçalves Mendes segue trançando seus dias no fiel entremeado dos fios de algodão. Já fez de tudo um pouco: redes, colchas, caminhos de mesa, e ainda faz: “tô maneirando, mas não parei de tudo não”. Até pouco tempo, saía batendo de porta em porta, mas está com muita dificuldade em caminhar e não consegue trabalhar muito tempo no tear. Com dificuldade de vender seus produtos na região, de onde sempre obteve sustento, está aflita e preocupada. Viveu a vida toda da tecelagem. O terreno que mora foi comprado com esse dinheiro, trabalhou e viajou muito, mas com a idade passou a produzir menos e se desligou da associação.
Quem cria?
Aos 74 anos, Dona Joana Pinta é, reconhecida como a pessoa mais antiga a se dedicar à tecelagem na região. 62 anos. Legado da mãe, avó, bisavó. “Mamãe trocava dia de trabalho, de plantadeira, na roça e a formiguinha ía atrás, que era ieu”. Dona Joana é uma mediadora entre o passado e o presente, guardiã de memórias marcadas pela herança de antigas matrizes culturais. Lamenta o risco que essa arte enfrenta hoje. E resgata, com uma alegria vibrante, o tempo de quando a tecelagem, assim como o roçado, se dava em mutirões, com as comadres e a vizinhança. Costumavam plantar o algodão, hoje quase todo adquirido. Uns forneciam os fios, outros fiavam e outros teciam. Em casa eram em doze pessoas trabalhando: o marido, a mãe e todos os filhos. Três teares, ela e dois filhos tecendo, todos os outros arrematando. Quando o marido faleceu, Dona Joana seguiu com os 6 filhos: “Eu criei meus meninos e ajudei minha mãe”. Vendendo “seus teares” de porta em porta, todos cresceram, se casaram.
Ressente-se em não ter tido estudo. A mãe era muito pobre, não podia fazer despesa e Joana só estudou no primeiro e segundo ano do primário, e no terceiro ficou apenas um mês. “As professoras pediam tanto pra mamãe deixar eu estudar mas ela não tinha condições”. Ela lida com o tear desde menina, aos 12 anos. Na lavoura, tinha ano que a colheita dava e outro não. Era no artesanato que a vida seguia. E orgulha-se: “Todo canto que vou meu trabalho é reconhecido”. Aos 20 anos se casou, seguiu trabalhando na roça. “Mãe ficava com os meninos, levava almoço, merenda na roça, e eu dando de mamar pras crianças, o peito derramando leite na roça. Deus ajudou e criei todo eles no artesanato”. E revive as etapas do feitio: primeiro descaroça o algodão, tira semente, fia na roca. Primeiro um fio fino, que se chama linha, e depois o fio mais grosso. Faz as meadas, de todas as cores. Vai pro mato. Leva machado e tira a tinta de angico, pata de vaca. Retorna e põe de molho em cima do fogão, com cinza de fogo para fixar. Põe no sol pra secar e inicia a próxima etapa: novela a meada, leva na roca e enche a canela. Vai ao tear, leva o pano no chão e urge. Precisa ter mais de uma pessoa, ao menos duas, pra passar de fio em fio. Tudo é contado, em uma nomenclatura própria. Os desenhos emergem durante o tecer, em alto relevo, singulares como a técnica têxtil local.
Em 2007 Dona Joana teve sua história registrada no documentário etnográfico Trama Mineira, sobre Patrimônio Cultural Imaterial. O retrato de uma vida moldada pelo trabalho, pelos ensinamentos da mãe, e pelos desafios da criação dos filhos. Com questões de época e gênero nos fragmentos da narrativa. Durante os rituais diários, nos fazejamentos rotineiros, afloram da memória as lembranças da infância, do casamento, da criação dos filhos e da vida na roça.
Onde cria?
“Tecelona” de Roça Grande, comunidade rural nos arredores de Berilo, região do médio Jequitinhonha, Minas Gerais. Nos campos rupestres, uma imensa variedade de plantas, muitas de uso medicinal, entre elas o próprio algodão. Terra de quilombos, cantos de lavadeira, moda de viola. E artesanato. Reconhecido pela excelência de sua tecelagem, singular, que remonta do século XVIII e perpassa gerações. Um ofício árduo, de intensa dedicação onde as mulheres do lugarejo entrepassam fios e colorem a geometria de uma realidade árida. Tecem narrativas de insistência em um ambiente de escassez de recursos e abundância de fé. Onde a doçura e delicadeza de Dona Joana, indissociáveis entre a mestra e seus flocos de algodão, insistem em permanecer. “Agradeço a Deus não ter aprendido a fazer a leitura, Deus me ensinou a fazer esse trabalho”. Sempre grata e gentil com sua terra: “É a terra que eu tenho e penso em acabar, bonita pra danar”.
Fonte: Novos Para Nós
Ficha técnica
Ano: 2007
Direção: Waldir de Pina
Roteiro: Waldir de Pina e Adriana de Andrade
Produção: NovaFilmes/ Adriana de Andrade
Duração: 26 minutos
Apoio: Iphan/CNFCP
Rede nacional do artesanato
cultural brasileiro
