A valorização do “feito à mão” no contexto internacional

Mais do que uma atividade para geração de renda, a produção artesanal tem ganhado status ao redor do mundo em países em que o movimento do "feito à mão" é visto como um caminho de desenvolvimento do ser humano e da sociedade, que nos conecta com as nossas habilidades de criar e dar forma e de transformar realidades. Texto: *Adélia Borges

O artesanato ainda é visto por muitos como uma manifestação de países e lugares com baixo desenvolvimento econômico, um modo de produção que seria, ele mesmo, um símbolo de atraso. Seu destino inexorável seria o desaparecimento, que iria ocorrendo gradualmente, à medida que o chamado “progresso” for se instaurando em determinado território e sociedade.

Há vários indicadores de que a história não está confirmando esse vaticínio. Ao contrário, há uma valorização crescente do feito à mão na contemporaneidade – e ela vem se fazendo notar de forma mais acentuada justamente em países ricos do hemisfério norte. Para designar esse renascimento, na Inglaterra cunhou-se a expressão movimento maker (referência ao fazer); e nos Estados Unidos o DIY (sigla para do it yourself).

Mulheres e homens com alto grau de escolaridade e de várias classes sociais têm se dedicado cada vez mais a elaborar coisas com suas próprias mãos. Entre as razões que explicam essa opção, apontam o prazer que a atividade traz para o cotidiano e o desejo de fazer frente ao consumo exacerbado que marca várias sociedades. A prática dos ofícios é muitas vezes feita em grupos que reúnem  pessoas de diferentes faixas etárias, proporcionando pontes com a ancestralidade. Em Fab Labs que se multiplicam em universidades, centros culturais e instituições públicas e privadas, o acesso a tecnologias digitais – do corte a laser à impressão tridimensional, em materiais diversos – amplia enormemente as possibilidades construtivas, propiciando a confluência, em muitos objetos, dos modos de produção artesanal e digital.

 

Projeto "A Avó Veio Trabalhar", Lisboa. Foto divulgação

Na visão do British Council, organização internacional do Reino Unido para relações culturais e oportunidades educacionais, “o fazer nos ajuda na construção de resiliência e confiança, promovendo novos modelos de educação, colaboração e inovação”. O Departamento Arquitetura, Design e Moda do Conselho criou já há alguns anos o programa Maker Library Network, voltado para a difusão da cultura maker nos vários países em que atua.

Os frequentadores da Semana de Design de Milão e do London Design Festival, as duas principais arenas internacionais da área do design, têm se deparado cada vez mais com exposições de objetos feitos à mão, muitas das quais inserem essas iniciativas dentro do guarda-chuva maior da economia criativa e da busca por maior sustentabilidade. As lojas de museus internacionais têm reduzido o número de gadgets industrializados em favor de objetos que resultam de empreendedorismo de base comunitária. As etiquetas dos produtos enfatizam o impacto social que sua elaboração teve. Em minha última ida à loja do London Design Museum os objetos da “Tokio Tribal Collection”, resultado da colaboração entre o designer japonês Nendo, uma empresa de Singapura e artesãos filipinos, tinham grande destaque. Na loja do Victoria & Albert Museum, a mesma ênfase no manual podia ser observada. O portfólio incluía kits de Faça você mesmo – de modelos de roupas a serem cortadas e costuradas em casa (como as revistas alemã Burda ou brasileira Manequim faziam no ido dos anos 1950 e 1960, antes da avalanche de roupas industrializadas) até kits para o reparo de vasos quebrados.

Tokio Tribal Collection, Nendo. Foto Akhiro Yoshida

Em 2016, a primeira edição da London Design Biennale – que quer ser para o design o que a bienal de Veneza é para a arquitetura – teve como tema “Utopia by Design”, em comemoração aos 500 anos da publicação do livro Utopia, de Thomas More. Os 37 países participantes, sob a forma de representações oficiais nacionais, foram convidados a fazer instalações que fizessem uma leitura da questão. As respostas formaram um painel bem multifacetado. Na hora de escolher um prêmio, o júri optou não pelas mostras high-tech ou tecnológicas, e sim pela mostra libanesa, em que a arquiteta e curadora Annabel Kassar reconstruiu cenas de rua de Beirute. Cadeiras e sofás velhos reparados com componentes feitos à mão, um local onde um artesão fazia um acolchoado, uma sala para a exibição de novelas libanesas e até postos de venda de falafel e suco de laranja espremido manualmente na hora formaram um ambiente não para ver, mas onde permanecer. Depois de uma acalorada discussão entre os jurados, a instalação libanesa levou o grande prêmio da Bienal. Premiou-se, assim, a interpretação da utopia como um lugar de convívio, em que as pessoas possam se encontrar, conversar, trocar e sentir-se bem. [1]

Instalação do Líbano na Bienal de Design de Londres, 2016. Foto divulgação

Duas questões cruciais da contemporaneidade – o aumento do fluxo de refugiados e o envelhecimento das populações – vêm sendo enfrentadas com programas que incluem a prática artesanal. Quanto à primeira, um exemplo vem da Suécia, país que tradicionalmente acolhe e integra imigrantes. Visitei em 2014 o Livstycket, um centro mantido pela Prefeitura de Estocolmo e parceiros no bairro periférico de Tensta. Costura, bordado e estamparia têxtil eram as técnicas praticadas por refugiadas de vários países, especialmente da Síria, numa atividade mesclada com as aulas de sueco. Os objetos expressavam esteticamente as histórias de vida dessas mulheres, que via de regra deixavam suas casas e suas vidas carregando apenas uma sacola [2]. Nas entrevistas com a pedagoga Lotta Damstedt e a designer Soondely Wang de Jusus (designer), elas testemunharam como a prática coletiva de trabalhos com as mãos estava cooperando na elevação da auto-estima das mulheres participantes, bem como na sua inserção no novo local de moradia. “Em nosso trabalho as palavras ganham função, realidade e contexto. ‘Tesoura, linha e obrigado’ são apenas palavras até que tenham um significado real vivenciado pelas participantes”, disseram.

Manufatura como uma ferramenta de cura

 

Quanto ao envelhecimento da população, o grupo que conheço que, a meu ver, melhor aborda a questão é o A Avó Veio Trabalhar, criado em 2014 em Lisboa pelos designers Susana Antonio e Angelo Campota. Trata-se de uma oficina criativa de portas abertas a pessoas acima de 65 anos de idade, que se reúnem para fazer objetos têxteis em co-criação. A frequência pode ser diária ou mais esporádica. No período em que tive alguma convivência com o grupo, ao longo do segundo semestre de 2017 e primeiro de 2018, eram cerca de 70 mulheres participantes, a mais idosa com 92 anos. Meus contatos se deram por ocasião da curadoria da exposição “Tanto Mar – Fluxos Transatlânticos do Design”, no Museu de Design e Moda (Mude) de Lisboa, em que atuei ao lado de Bárbara Coutinho, diretora do Museu. A mostra incluiu uma grande espiral bordada pelas avós em parceria com a designer carioca Mana Bernardes, que se encantou com “a irreverência e a alegria-louca” delas e, nesse trabalho, reforçou sua crença na “manufatura como uma ferramenta de cura”. Ao longo do processo, pudemos constatar como, numa faixa etária visto pelo senso comum como um período de total decadência e progressivas incapacidades, as mulheres pareciam rejuvenescer à medida em que iam se expressando através de seus trabalhos, e ganhando dinheiro, autonomia e mobilidade [3].

A academia está atenta à mudança de cenário da valorização do feito à mão. Uma das principais conferências científicas sobre o tema é o Making Futures, realizado desde 2009 pelo Plymouth College of Art, na Inglaterra, que investiga o artesanato, o movimento maker e a arte como potenciais “agentes de mudança” na sociedade do século 21, apontando a emergência de uma estética de produção e consumo com base em movimentos de pequenos artesãos, refletindo sobre uma estética emergente de produção e consumo com base em movimentos de pequenos artesãos. Pertenço ao comitê científico da conferência bienal desde 2013, quando fui uma das keynote speakers do evento, com uma apresentação sobre a aproximação entre artesãos e designers na América Latina, seus benefícios e riscos. É um prazer, desde então, ler e avaliar papers de estudiosos dos cinco continentes que se debruçam no tema do fazer de olhos voltados para o futuro [4].

Essas pesquisas põem por terra a visão do artesanato como um símbolo de atraso. Várias delas questionam a própria noção de progresso, em prol de uma visão mais sistêmica, sintonizada com os preceitos do desenvolvimento sustentável, que compreende as dimensões ambientais, econômicas, sociais e culturais. Apostam, assim, num futuro em que a distância entre os mais ricos e os mais pobres se encurte e em que a qualidade de vida – não só para si mesmo e os mais próximos, e sim para a sociedade em geral – seja a métrica que efetivamente conta.

 

* Adélia Borges é crítica, curadora e historiadora de design.

 

 

[1] Participei do júri das premiações, ao lado de um time de peso, composto por Paula Antonelli, curadora de design do MoMA em Nova York; Victor Lo, chairman da Gold Peak Industries, de Hong Kong; Ana Elena Mallet, curadora independente, do México; Kayoto Ota, japonesa, escritora e curadora; Paula Scher, designer gráfica e diretora da Pentagram; Martin Roth, alemão, então diretor do Victoria & Albert Museum; e os também residentes em Londres Jonathan Reekie, diretor da Somerset House; Richard Rogers, arquiteto; Ian Callum, diretor de design da Jaguar; Jeremy Myerson, professor do Royal College of Art; Christopher Turner, diretor da Bienal; e Ben Evans, também da equipe. Para saber mais sobre a Bienal, ver https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.108/6197

 

[2] Para maiores informações, ver www.livstycket.se

 

[3] https://www.facebook.com/AAvoVeioTrabalhar/ O local das oficinas funciona também como ponto de venda dos objetos produzidos pelas avós.

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