Maurício Arruda: a decoração contemporânea e a ressignificação do artesanato

Maurício Arruda tem muito em comum com um digno artesão brasileiro: é um criativo-otimista. Suas andanças, pesquisas e projetos conectam criadores e consumidores, abrindo espaço para o artesanato, dando nome ao artesão, e levando beleza e significado aos lares brasileiros. Nessa conversa com a consultora Camila Pinheiro ele defende que o feito à mão tem bagagem emocional e a que gente está carente de emoção. 25/05/20
Camila Pinheiro

RÉGUA GENEROSA, Maurício Arruda para A Gente Transforma / Colecionadores MAM 2015
Fotos: Diego Cagnato

Conheci Maurício Arruda através do programa Decora (GNT), mas sua trajetória no universo da arquitetura e design é bem mais antiga do que seu tempo de televisão. Graduado pela Universidade Estadual de Londrina e Mestre pela Universidade de São Paulo, Mauricio desenvolve pesquisas na área de arquitetura e design sustentável desde 2000.

Filho de fazendeiros do Paraná, Arruda demonstra, desde criança, interesse pela casa e por objetos. Durante dez anos, ele deu aulas de design de interiores em várias faculdades e, até 2007, trabalhou em outros escritórios de arquitetura, antes de montar o seu em São Paulo. No design de produtos, se tornou referência em sustentabilidade e contemporaneidade e frequentemente se inspira em símbolos da identidade brasileira para a criação de seus mobiliários, como no caso da Poltrona Rede. Longe de ser uma rede comum, mas mantendo toda sua estruturação tradicional, o designer desenhou esse móvel que homenageia um saber ancestral – considerando que as primeiras redes de descanso foram tecidas por nossos povos originários.

Atualmente ele também ministra palestras em eventos nacionais e consultorias para diversas marcas, como, por exemplo, Natura, Skol e Docol e se consolidou como referência da produção contemporânea brasileira recebendo convites para expor em galerias e feiras nacionais e internacionais de design. Em 2015, uma de suas criações passou a fazer parte do acervo de Design do Clube de Colecionadores do MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo. Desde 2016, ele cria, executa e apresenta as transformações feitas no programa Decora, do canal GNT, Globosat.

No ano passado, recebi um e-mail de sua equipe, solicitando um Filtro D’água Cacto – peça que desenvolvi através do projeto MÃOS junto à artesã Adriana Xavier, depois de mediar um programa de residência artística da Artesol com as ceramistas do Vale do Jequitinhonha (MG). A partir daí, fiquei mais atenta à visibilidade que o apresentador dava ao trabalho artesanal brasileiro inserindo-o em seus projetos, dentro e fora da TV. Nesse bate-papo, Maurício conta com mais detalhes como sua admiração pelo artesanato influencia e inspira, há tempos, o seu trabalho.

Filtro Cactos, desenvolvido pelo Projeto Mãos - Movimento de Artes e Ofícios para compor um lar transformado pelo Decora

Quando e como o artesanato se tornou mais presente no seu trabalho como arquiteto?

Já na época da faculdade eu tinha interesse. Me formei em 97, há 23 anos, em Londrina, no Paraná. Minha primeira lembrança mais forte do artesanato é desse período, fiz várias viagens pro Nordeste, visitei vários mercados populares. Eu lembro muito quando entrei pela primeira vez no Mercado São José, de Recife, no Mercado Modelo, de Salvador. Foram experiências que me chamaram muita atenção.

Qual é o maior valor estético e cultural da produção artesanal brasileira?

O artesanato faz parte do DNA da nossa cultura. Ele conta a história do seu povo. Ele conta um pouco a história do artesão, da sua região, das suas memórias, alegrias, tragédias. Ele sempre vai permear a realidade daquele artesão. Se inspirar na relação dele com a natureza, no imaginário dele. Então, de algum modo, o artesanato conta a história do nosso país, a história da nossa colonização. A nossa fauna e flora, a questão da fome aparece muitas vezes no artesanato, a subsistência. Mas também a riqueza de nossos materiais: nossas fibras, nossas madeiras, nosso barro. E em alguns Estados você vê isso materializado de uma maneira iconográfica mesmo. Então, a partir do artesanato, você consegue ter uma leitura visual do país em termos de cores, texturas, padrões, e isso é super importante! É o maior bem que a gente poderia ter: esse imaginário cultural do país, vivo, presente. Porque o artesanato está se desenvolvendo o todo tempo, ele não está parado, nesse exato momento alguém está desenvolvendo alguma coisa. Ele é um movimento dinâmico, o que é muito legal, porque mostra quase em tempo real quem a gente é.
 

Poltrona Rede desenvolvida por Maurício Arruda

Ao relembrar sua primeira visita a um mercado popular nordestino, ainda como estudante universitário, Maurício revelou antigas memórias muito pulsantes em seu ser criativo. A Linha José, por exemplo, parece concretizar essas imagens que habitam seu inconsciente afetivo. São móveis sustentáveis, de madeira de demolição, com nichos que abrigam caixas de feira. Improvisar soluções com personalidade e bom humor é uma das principais características do brasileiro, e aí o arquiteto não nega de onde veio. Mauricio Arruda ficou surpreso com a repercussão internacional de sua linha José, que rendeu o convite para ele participar no ano seguinte do workshop da Ikea, na Suécia. “Somos o único escritório brasileiro entre os 17 selecionados de importantes países para criar a nova coleção da loja”, afirma.

Acredita que o design brasileiro seja igualmente valorizado no mercado interno e externo?

Eu acho que são valorizados de maneiras diferentes. Lá fora tem uma cultura de design muito mais aprimorada, diferente do Brasil. As grandes feiras de design estão olhando e valorizando o design brasileiro. A gente vê que esse “design exportação” é realmente o que temos de melhor. E aqui no Brasil a gente ainda tem uma cultura de design mais frágil, mais nova. A gente ainda está naquele processo de entender que o design pode ser algo democrático, que ele pode ser uma ferramenta para melhorar nossa qualidade de vida, então a gente está num processo de formação cultural em relação ao design, que é uma coisa que lá fora isso tá muito mais assimilado culturalmente.
 

 

BUFFET JOSÉ, A liinha José é composta de móveis sustentáveis, de madeira de demolição, com nichos que abrigam caixas de feira, Foi desenvolvida para a TokStok
Foto: Felipe Morozini

Estamos em um momento muito rico para as múltiplas identidades do design brasileiro, com criações autorais e independentes ganhando cada vez mais visibilidade. Você considera o trabalho de um artesão um trabalho de design?  Quando e por quê? O que o torna um potencial objeto de decoração?
 

Na verdade eu não penso muito sobre esse viés decorativo, eu falo muito sobre “a história que a gente quer contar com a nossa casa”. Assim como uma peça utilitária, uma peça decorativa tem que falar um pouco da gente, um pouco da nossa história. Então é preciso que exista essa fruição – uma palavra que se usa muito em arte – essa relação entre o usuário e a peça, o morador e o artesanato, pra que isso faça sentido dentro da casa das pessoas. Você precisa vivenciar, experimentar o artesanato pra você colocar ele dentro de um projeto. Não adianta você querer criar uma relação com uma coisa que você não tem conexão. Eu acho que é uma coisa natural, não artificial.

Sobre o trabalho do artesão ser um trabalho de design, eu não vejo muita diferença entre design e artesanato. Eu acho que essas duas coisas andam muito juntas. É como como a Adélia (Borges) fala em seu livro (Design e Artesanato – um caminho brasileiro): não existe uma escala de valor entre artesanato e design, são duas coisas que convivem juntas. É claro que quando a gente fala de design, a gente está falando sobre uma formação mais acadêmica, a gente está falando sobre industrialização, a gente não está falando tanto do manual. Mas existe também isso no design, o design manual. Assim como o design empresta um pouco do seu academicismo, da sua racionalidade pro artesanato e pro artesão, a mesma coisa acontece do artesanato pro design, influenciando o design a ser uma coisa mais autoral, mais artesanal, a ter uma pegada cultural mais forte. É uma via de mão dupla.

Como você acredita que o ‘feito à mão’ pode valorizar um projeto de decoração?

O feito à mão tem uma bagagem sentimental, emocional muito grande. A gente precisa de emoção. A gente está carente de emoção. A emoção é a ligação entre nossa casa e a gente. E quem faz essa ponte é a escolha que a gente faz pra dentro de casa. Além disso, a gente está num momento de retorno às raízes, daquilo que é essencial.

Então você sempre vai conseguir criar uma relação de aconchego, permanência e segurança dentro de casa quando você estimular mais os sentidos. E aí o manual tem uma responsabilidade, uma capacidade muito grande de fazer isso.

Há uma técnica, linguagem específica que você se identifica mais? Você tem uma artesã(ão) favorito?

Nossa, eu tenho vários: o Vieira, o Zé Bezerra. Uma das primeiras peças que eu comprei, que eu gosto muito, é uma sereia do Zezinho de Arapiraca... o Jose Benicio também, que eu conheci e já gostava muito o trabalho dele. A Sil tem trabalho muito emocionante, tem uma carga muito local, muito pessoal... a jaqueiras da Sil pra mim são uma coisa que eu me emociono toda vez que eu vejo. Eu não tenho, mas amaria ter. Já usei em projetos inclusive, até no Decora, e eu acho um trabalho muito sensível, me toca muito.

Peça produzida com tramas de carnaúba dos artesãos de Várzea Queimada (PI) produzida para o projeto "A Gente Transforma";

 

Como você geralmente chega até os artesãos e suas criações? De que maneira você acredita que os caminhos entre consumidor e artesão podem se estreitar?

Eu chego de várias maneiras. Mas no ano passado eu tive uma experiência muito importante, que é ter ido até a Fenearte (Feira Internacional de Artesanato de Pernambuco). Deveria ser uma experiência obrigatória para qualquer profissional dessa área: designers, arquitetos, decoradores, pela possibilidade de ver de maneira clara um panorama geral do que é o artesanato no Brasil, passando por todos os Estados. Eu acho que dos anos 80 pra cá, estava começando justamente esses movimentos de encontro entre o design, entre as iniciativas e projetos de design junto com comunidades que desenvolviam artesanato. Eu tenho acompanhado essas experiências desde então. A Adélia Borges foi uma grande divulgadora de tudo isso. Teve uma exposição muito icônica pra mim no Parque do Ibirapuera, onde hoje é Museu Afro, que foi incrível, falava muito disso também, sobre esse limite entre o popular, artesanato e design brasileiro. Tem várias iniciativas maiores e menores: A Gente Transforma, Projetos Sertões, Semana Criativa de Tiradentes, Novos Para Nós... são iniciativas que eu estou mais próximo e que tem me mostrado nos últimos anos vários artesãos que eu não conhecia.

 Em uma perspectiva mais ampla: você enxerga que o artesanato pode fortalecer importantes causas socioambientais atuais, como a sustentabilidade, o consumo consciente, direitos de territórios tradicionais com e impactar políticas públicas, por exemplo? Há relevância nessa questão, na hora de escolher uma peça para compor seus projetos?

O artesanato é um instrumento muito poderoso pra falar sobre esse assunto, porque ele é muito legítimo, ele é feito pelas pessoas que realmente vivem e que estão nessa situação. De alguma maneira, o design é um ato político também. E toda vez que eu coloco o artesanato nos projetos, na verdade eu não penso muito sobre esse viés, mas o que eu tento fazer quando uso artesanato nos meus projetos é ir de encontro com a nossa identidade. E quando vamos de encontro com nossa identidade vamos de encontro com nossos problemas também, nossas falhas. Eu acho que a visibilidade cultural resulta em visibilidade política. O artesanato tem esse poder.

Em Várzea Queimada, no sertão do Piauí, a palha é reinventada. Povoado com um dos menores índices de desenvolvimento humano do país, a Associação das Artesãs de Várzea Queimada cria inovadores objetos com a trama da carnaúba, e pouco se usa ferramentas convencionais de medição, como régua, trena ou balança. As mulheres preferem medir crias de palha em braçadas e os homens usam os dedos para medir seus objetos feitos da borracha de pneu. O projeto A Gente Transforma, de Marcelo Rosembaum (antecessor de Maurício Arruda no Programa Decora) atua há anos impactando positivamente essa comunidade por meio da valorização de seus saberes artesanais. Maurício foi convidado para integrar uma das ações em Várzea Queimada e criou, ao lado das artesãs, a Régua Generosa: um objeto utilitário que fala sobre trabalho comunitário, criatividade e grandeza.

 Qual o futuro do artesanato no Brasil?

Eu acho que todos esses projetos que te falei, de alguma maneira, vão dando uma relevância que o artesanato precisa ter no nosso panorama cultural. E acho que hoje a gente tem muito mais acesso a feiras, a projetos, aos artesãos. Então a gente tem a nosso favor uma capacidade de trocar informações e de acessar essas histórias de uma maneira muito mais fácil. A questão é: estamos fazendo isso ou não? Eu acho que sim. Pensando de uma maneira otimista, com esse acesso à informação a gente vai conseguir conhecer mais artesãos. É importante entender que o artesanato é algo vivo. Não é algo estático que vai “ser descoberto”. Ele é dinâmico, se transforma, acontece todos os dias. Então talvez seja normal que algumas expressões infelizmente desapareçam, mas outros novos trabalhos comecem a aparecer em outras comunidades. Eu acho que a coisa mais importante que devemos fazer para a permanência do artesanato é a valorização do artesão. Quanto mais a gente falar do artesão, mais a gente vai valorizar o artesanato. É importante a gente entender que existem pessoas por trás das obras. Quando você está comprando um barquinho, uma jaqueira, um pássaro, você precisa entender a carga humana que existe atrás daquela peça. E aí é responsabilidade minha, sua, dos profissionais, de escancarar, de mostrar, divulgar esse ‘leyer’ humano, que é vital para o artesanato.

 

Sobre o autor

Camila Pinheiro

Camila Pinheiro é uma comunicadora sensível à identidade brasileira. Divide sua atuação em três pilares inter-relacionados: a pesquisa cultural, o desenvolvimento social e a economia criativa. Idealizadora do projeto MÃOS - Movimento de Artesãs e Ofícios, Camila percorre comunidades rurais e urbanas que possuem o artesanato como patrimônio material e imaterial, co-criando possibilidades inclusivas com mulheres artesãs pelo país.
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