O artesanato que conta as histórias do Quilombo Conceição das Crioulas

Em Salgueiro, no sertão pernambucano, o artesanato se tornou assim um fio que conecta passado e presente, história e design, educação e sustentabilidade.
Raquel Lara Rezende

 

Bonecas de palha de caroá que representam mulheres da comunidade quilombola. Foto: Mariana Chama / Divulgação

“A boneca negra é símbolo da luta e resistência do povo de Conceição das Crioulas. Cada modelo foi desenvolvido a partir de desenhos das mulheres da comunidade elaborados pelos jovens. Cada uma representa uma personagem marcante da história desse povo que soube a partir da união vencer grandes desafios e que continua forte e atuante na luta das comunidades quilombolas”. Esse é o texto que acompanha as bonecas de palha produzidas pelas mulheres do Quilombo Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE).

Lá, o artesanato não só fruto de uma história que perpassa a cultura local, mas, literalmente, conta essa história. Ao registrarem e divulgarem suas memórias, as artesãs  fortalecem a cultura do lugar e estimulam que os jovens possam se enxergar e se reconhecer no coletivo onde estão inseridos, além de gerar uma renda importante para o grupo. 

Ao todo, a associação local desenvolveu 11 bonecas diferentes que homenageiam 11 mulheres consideradas importantes para a história da comunidade. Elas são feitas com a fibra de caroá, um tipo de bromélia resistente de poucas folhas, típica da caatinga que cerca o quilombo. 

Uma delas homenageia Francisca Ferreira, uma das seis fundadoras da comunidade. Elas chegaram ao local sozinhas e escolheram aquelas terras para darem início a uma nova vida. Ali plantaram algodão, o ouro branco do sertão.  Colhiam, fiavam e teciam. Iam a pé até a cidade de Flores, a cerca de 98km da cidade, para vender os novelos de linha e os tecidos. Com esse dinheiro conseguiram, em 1802, comprar as terras, onde se instalaram.

A memória de Francisca remete à figura da guerreira e matriarca - uma imagem que inspira as mulheres e também os homens a seguirem o trabalho de fundação e fortalecimento das bases que sustentam a comunidade. Os sentidos de confiança, auto-estima, força, alegria e a conexão com a sabedoria ancestral são alicerces centrais nesse trabalho imprescindível para a construção de outras possibilidades de futuro para as novas gerações e também para a manutenção do território.

 

Foto: Laís Domingues / Projeto Visto o que é Meu. 

O desenvolvimento da coleção de bonecas aconteceu através de uma parceria com o Laboratório O Imaginário , um projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco. Através dele, a comunidade recebeu a visita de designers que propuseram a retomada do trabalho com o algodão e a confecção de roupas que trazem parte da história da comunidade bordada no tecido, assim como a criação de bonecas que representam as mulheres quilombolas. 

Outra mulher que virou personagem, através das bonecas, é Dona Liosa, uma das guardiãs da memória de Conceição das Crioulas, que mantém viva, através da oralidade, a história do lugar. A transmissão oral é uma prática tradicional que se faz presente no cotidiano da comunidade, nas reuniões de almoço, em volta da fogueira ou do fogão à lenha, no terreiro das casas. Hoje as memórias se fazem também presentes nas roupas, nas bonecas e nas práticas pedagógicas da escola e das reuniões de articulação política e cultural.

Retomada do Território


Foto: Laís Domingues / Projeto Visto o que é Meu. 

O resgate da produção artesanal e da auto-estima do quilombo se deu apoós um processo de retomada do território que é central na vivência de muitas comunidades tradicionais, como é o caso de Conceição das Crioulas. Valdeci Maria da Silva, uma das artesãs e lideranças da comunidade, conta que o lugar onde vivem abrangia uma área de 17 mil hectares, quando elas compraram. O documento da terra estava em nome de Francisca Ferreira e foi sendo passado de geração em geração entre as pessoas escolhidas como guardiãs do espaço.

Mesmo em posse do documento, Valdeci diz que, com o tempo, oa área foi sendo tomada por fazendeiros. "Eles iam chegando e botando os animais na terra e nisso as pessoas da comunidade foram ficando sem espaço para trabalhar”. Segundo ela, os fazendeiros e coronéis avançavam com as cercas e se apresentavam às comunidades locais do sertão como guardiões que protegiam o território dos bandidos e cangaceiros.

Aos poucos, a comunidade passou a não ter mais acesso às áreas mais férteis e às matérias-primas necessárias para seu sustento, como o barro, com o qual faziam cerâmica, e o caroá que utilizavam para o artesanato. Os artesãos precisvam pedir permissão aos fazendeiros para fazer a coleta das folhas e ainda pagar uma taxa para retirá-la, quando sua entrada era permitida.

A partir de 1995, algumas lideranças da comunidade passaram a participar de reuniões de comunidades quilombolas e ter acesso a informações sobre o direitos à terra, à educação e à saúde. Ainda nesse ano, foi aberta a primeira escola, da quinta à oitava série, em Conceição das Crioulas. 

“(...) até então a gente só ia até a quarta série. Não tinha escola, porque não tinha como sair da comunidade, a não ser que as mulheres saíssem para trabalhar na cozinha de famílias de Salgueiro. Essa, porém, não era uma preocupação dos políticos, da gente ter acesso à educação. A gente só precisava saber assinar o nome para votar. Então, eram muitos direitos que a gente tinha perdido”, conta Valdeci.
 

O reconhecimento da terra quilombola
 
 


Foto: Laís Domingues / Projeto Visto o que é Meu. 

Em 2000, a comunidade foi reconhecida como Quilombola e recebeu o documento que legitima a posse das terras compradas pelas antepassadas. Foi nesse contexto que foi criada a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas, responsável também pelo artesanato. A partir da Associação, a comunidade pode lutar pela desapropriação dos fazendeiros, mas somente em 2012 conseguiram tomar posse novamente da primeira área que havia sido tomada. Até o momento, mais cinco áreas foram reincorporadas à comunidade, mas essas ações encontram-se paralisadas, segundo Valdeci, desde o Governo Temer.

Ainda assim partir da reorganização social e do fortalecimento cultural e político da comunidade, foi possível a construção de uma autoimagem positiva, de valorização de sua ancestralidade, dos saberes herdados, da força que trazem em seu sangue. Nesse sentido, o artesanato desempenha um papel fundamental, pois, a partir dele, as pessoas concedem sentido no presente às técnicas e conhecimentos antigos e o utilizam também como meio de expressão.

Em 2002, Conceição das Crioulas ganhou o I Prêmio Banco Mundial de Cidadania no Encontro Nacional de Experiências Sociais Inovadoras realizado em Brasília. Com o valor recebido, construíram a sede da Associação. Esse prêmio trouxe maior visibilidade ao artesanato de Conceição das Crioulas e, a partir dele, a Associação foi convidada a expor suas peças na Itália. 

 


Peças bordadas pelas artesãs da comunidade. Foto: Laís Domingues / Projeto Visto o que é Meu. 

Junto com a oralidade, o artesanato ganha protagonismo também no espaço escolar, como parte essencial do passado, do presente e do futuro de Conceição das Crioulas, por ter sido o meio através do qual as mulheres puderam garantir a permanência da terra para as gerações seguintes e por ser instrumento que reconecta passado e presente, fortalecendo o sentido profundo da tradição. Segundo Valdeci, 99% dos professores e professoras e da gestão das escolas são da comunidade. Para ela, o trabalho da Associação passa também pela formação dos profissionais. 

“A gente trabalha o artesanato, também trazendo pra dentro das escolas, pra que as crianças e os jovens conheçam a história da comunidade e valorizem a história que a gente tem. Até então, a gente era conhecedor das histórias de longe, as histórias da Princesa Isabel, de Pedro Alvares Cabral, mas a gente não contava a nossa própria história. A gente quer muito ter conhecimento acadêmico de tudo o que se passa lá fora, mas a nossa história, a nossa raiz, também é muito importante de ser estudada. E hoje, a associação trabalha junto com a escola, pra reforçar a nossa identidade. Isso é muito importante, porque o jovem vai crescer sabendo onde ele está, mas também sabendo de onde ele veio. A gente faz um grande esforço pra que não morra nossa história, o nosso jeito, com tantas coisas que hoje o mundo traz e as novas tecnologias trazem. E é claro que a gente quer isso também, mas a gente tem a preocupação de não perder as nossas raízes, o nosso jeito de falar, de comer, de vestir. A escola está dentro dessa comunidade e a comunidade está dentro dessa escola”, afirma Valdeci.

 




 

Sobre o autor

Raquel Lara Rezende

Formada em Comunicação Social, Raquel Lara Rezende tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou cantora.
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