O fazer artesanal e o artesanato na moda

Cada vez mais o "handmade" ganha espaço na moda ao redor do mundo, agregando exclusividade e sofisticação aos produtos, mas será que toda peça feita à mão carrega os valores e a identidade do trabalho artesanal?
Antônio Castro

Peça de renda de bilro do grupo Olê Rendeiras de Trairi (CE) que produz itens artesanais para a marca Catarina Mina

Reconectar processos industriais ao fazer manual é um movimento que vem ganhando força em diversas camadas da produção de bens de consumo ao redor do mundo. Na moda, mais especificamente, a aposta nas manualidades é uma estratégia para valorizar as histórias mais profundas por trás dos produtos, ao invés de focar apenas na tendência estética do momento.

No entanto, quando falamos de feito à mão, estamos necessariamente nos referindo a peças de artesanato? Quais os pontos-chaves que definem que um produto foi feito artesanalmente, ou que é resultado de uma produção artesanal? Para responder a essa questão, além de olhar para o processo, é necessário direcionar atenção também às mãos de quem produz e quais saberes determinado desenvolvimento valoriza e promove ao incluir ou não um saber ancestral em uma produção contemporânea.

É cada vez mais comum encontrar casos de marcas e estilistas que recorrem aos saberes artesanais em busca de uma identidade mais brasileira e autoral. Esta relação entre designer e artesão se dá não somente durante a execução de um produto, mas também na troca de experiências, vivências e saberes complementares que faz parte de um processo de criação.

A referência europeia

Na alta-moda europeia, o bordados feitos à mão conferem requinte, exclusividade e identidade às peças 

Historicamente, reconhecemos a moda francesa como vanguardista no que diz respeito à valorização de saberes tradicionais na produção de vestuário. O “savoir-faire” francês, que envolve bordados em pedrarias e rendas minuciosas, foi incorporado à moda de luxo,onde um dos fatores mais determinantes para que uma peça seja considerada de alta-costura é que a maior parte da sua execução deve ser feita à mão, em pequena escala.

Hoje, como consequência do nosso processo de colonização, ainda incorporamos aos nossos costumes, desejos e imaginário a beleza de uma moda relativamente distante da nossa realidade.

O feito à mão parisiense, por exemplo, faz sentido na alta-costura por representar um saber tradicional enraizado na cultura local, mas, e no Brasil? Onde encontramos o savoire-faire sertanejo? 

Em recente texto publicado em suas redes sociais, o jornalista e redator-chefe da plataforma Nordestesse, Rener Oliveira, menciona a valorização do trabalho artesanal de grupos produtivos do sertão do Rio Grande do Norte, como o nosso equivalente à alta-costura brasileira: “o trabalho feito à mão precisa ser admirado sem falar francês. O vestido do Seridó é brasileiro, nordestino e com sotaque. É o talento potiguar na essência.”, completa Rener, ao se referir ao vestido usado por Janja Lula em sua cerimônia de casamento. 

À esquerda,conjunto em renda renascença da marca potiguar DePedro. À direita, vestido de  Bordado richelieu assinado pela estilista Helô Rocha e executado pelo grupo Timbaúba dos Batistas, de Seridó (RN). 

Com o objetivo de potencializar a moda nordestina que tem orgulho de suas raízes, o projeto Nordestesse estimula marcas de moda, além de criativos de outras esferas do design, a alçarem voos no mercado nacional. Um fator em comum entre muitas das marcas parceiras da iniciativa é a valorização do feito à mão local no desenvolvimento de produtos. 

Nesse sentido, Rener ressalta a importância de conectar marcas pertencentes ao mesmo território. “Acho que esta aliança será cada vez mais estreita, desde que seja boa para ambos os lados, fortalecendo uma moda transparente e justa para essa cadeia produtiva de artesãs.”

Por outro lado, o que acontece quando incorporamos técnicas do Velho Mundo em nosso processo de produção é que, apesar de artesanais, elas perdem a essência do artesanato. O que para os franceses é um processo criativo que salvaguarda e legitima um saber fazer com profundas raízes culturais em diversas regiões da Europa, aqui consiste na reprodução de padrões estéticos que importamos enquanto senso comum do que é beleza na Europa. 

Moda-Artesanato

Renda renascença utilizada em coleção da estilista Fernanda Yamamoto 

É indiscutível que todo trabalho feito à mão tem valor e razão de existir. Os bordados luneville da Maison Lesage seguem arrancando suspiros de qualquer admirador das artes manuais e da alta-costura e, sem dúvida, seguirão sendo reproduzidos por artesãos ao redor do mundo em uma eterna homenagem ao berço da moda. O que buscamos discutir aqui é: onde encaixamos os bordados do Seridó (PB e RN), ou da Ilha do Ferro (AL)? Onde encontramos a renda renascença do Cariri Paraibano ou a renda irlandesa de Sergipe? Como encontrar caminhos para que, assim como vimos acontecer lá fora, a beleza dos nossos sertões possa ser incorporada no fazer da moda de alto padrão do Brasil? 

Neste contexto, alguns estilistas e marcas brasileiras têm tomado a frente no processo de valorização do fazer manual brasileiro em uma busca pela afirmação do luxo artesanal na moda. Flávia Aranha, Fernanda Yamamoto, Ronaldo Fraga e Helô Rocha são alguns dos nomes à frente deste movimento de ressignificação da moda artesanal. Este processo acontece quando a marca entende que - ao absorver o trabalho manual de determinado grupo produtivo - ela incorpora não somente um conhecimento tradicional ao seu produto, mas também o peso da construção de um imaginário ainda em formação do que é a moda genuinamente brasileira. 

O entendimento deste processo como ferramenta de confecção de uma identidade menos espelhada nos ideais estrangeiros dialoga com uma metodologia já íntima da arte e da arquitetura, que a moda talvez tenha demorado a alcançar: é olhando para dentro que encontramos o que temos de mais único. 

Entender que o fazer com as mãos transcende as paredes dos ateliês dos grandes centros urbanos e é descentralizado e comercialmente marginalizado pela indústria que ignora o valor daqueles que “não estão na moda” pode ser o caminho para mudança de uma noção de moda artesanal e do que se tornará a “moda-artesanato” e moda brasileira.

 

 

Sobre o autor

Antônio Castro

Antonio Castro, 26, é designer de produto e estilista, graduado pelo Centro Universitário Senac. Alagoano radicado em São Paulo, atua na área de criação de produto com foco no objeto artesanal, sempre trazendo a identidade cultural de suas origens em seu repertório de trabalho e valorizando o feito à mão nacional. Antônio é colaborador da Artiz, onde é responsável por desenvolvimento de produtos.
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