O florir do Boa Noite no sertão

Conheça as artesãs do semiárido alagoano que mantêm viva a tradição do bordado Boa Noite, técnica quase extinta, batizada em homenagem a uma flor nativa da região
Carla Rodrigues

Foto: Tayana Moura

Me lembro vividamente de ouvir meu pai dizer que no “Nordeste não tem isso de primavera e outono. Lá só existe verão e inverno, que é quando chove”. Cresci com esse pensamento e quando me mudei para Maceió, pude vivenciar a afirmação do meu pai, durante as constantes chuvas da capital. 

Como em uma ironia, conheci o sertão em 21 de junho, dia do solstício de inverno. Mas, lá, ao contrário das histórias do meu pai, não havia nenhum sinal de chuva no céu. Enquanto adentrava o semiárido alagoano, pude acompanhar a nítida mudança da vegetação pelo caminho, que ia tornando-se rasteira e cheia de espécies características da região. 
 

Foto: Tayana Moura

Ao chegar no município de Pão de Açúcar, meu destino, logo pude avistar de longe outro personagem importante do imaginário nordestino: o Rio São Francisco. No caminho, enquanto conversava com Eridan, uma bordadeira do povoado que me guiava até o local, eu me agradecia mentalmente por não ter desistido de estar ali, apesar da longa distância e dificuldade de acesso.

Na estrada de terra que liga Pão de Açúcar ao povoado Ilha do Ferro, o cenário parece saído diretamente de um filme de Ariano Suassuna. Cheia de altos e baixos, a estrada de solo claro divide espaço com uma grande quantidade de mandacarus e xique-xiques, alguns deles em flor. Ao chegar ao povoado, visto de cima, o Rio São Francisco reaparece com toda a sua grandiosidade. Às suas margens se formou polo criativo, em que os homens entalham a madeira e as mulheres bordam tolhadas muito elegantes. A natureza e a cultura ribeirinha têm presença tão marcante no cotidiano dos moradores do povoado, que acaba sendo centro de toda e qualquer criação. Entre os escultores, a paisagem local é matéria-prima, já entre as bordadeiras é inspiração. As flores da caatinga, os barcos que navegam pelo São Franscico e o singelo casario da região são os principais motivos que estampam as peças das artesãs. . .

 

Fotos: Tayana Moura

Atravessando as dezenas de casinhas coloridas da Ilha, tenho meu esperado encontro com o rio e, logo acima dele, com a sede da Cooperativa de Artesãos da Ilha do Ferro – Art Ilha, o verdadeiro motivo da minha visita. O núcleo reúne artesãs dessa comunidade que realizam o bordado “Boa Noite”, nome de flor nativa da região. Para a criação das suas peças, elas usam uma técnica quase extinta, que consiste em desfiar o tecido e recompô-lo em faixas, com temas florais. 

O grupo é responsável por produzir trabalhos como almofadas, toalhas, jogos americanos, colchas, cortinas, marcadores de livro e painéis bordados. No dia da minha visita, seis cooperadas trabalhavam na sede. Além de Eridan, conheci Maria do Carmo, Poliana, Rejania, Sílvia e Senhorinha, todas nascidas e criadas no povoado, onde adquiriram a experiência na linha e bastidor desde a infância.

 A proposta da cooperativa é que todas possam produzir, numa perspectiva de economia colaborativa. Quando chega alguma encomenda, as peças são distribuídas de acordo com uma lista das cooperadas, seguindo uma sequência, numa espécie de rodízio. As artesãs produzem também peças para manter no estoque e vender aos turistas e visitantes que têm crescido nos últimos anos, após muitas visitas de  designers e curadores que divulgaram a produção artísticas do povoado por todo o Brasil. 

Segundo Eridan, o acesso à internet também aumentou expressivamente o número de encomendas. Grande parte delas chega por e-mail e telefone. “Antes era mais difícil pra gente. As artesãs que são mais velhas têm dificuldade para esse negócio de internet,  mas com a entrada das gerações mais novas, que já entendem melhor, facilita mais”, conta.

Além dos padrões da cooperativa, com medidas já pré-definidas, como dos jogos americanos, panos de lavabo e de bandeja, as artesãs aceitam encomendas de outros tipos de peças. “Se você trouxer algo que a gente nunca fez, a diretoria se reúne pra calcular, tirar o preço de venda, a metragem e decidir um valor final”, revela Rejania. 

Fotos: Carla Rodrigues e Tayana Moura

As cooperadas se reúnem de terça a sábado, das 13h às 17h, para atender a grande demanda de encomendas. Durante os mais de 20 anos de existência, a cooperativa já se envolveu em diversos projetos, coleções e oficinas. Uma das responsáveis pelas oficinas é Rejania. Filha do conhecido artesão e escultor de madeira, Fernando Rodrigues, ela aprendeu o bordado aos nove anos com a mãe, que vendia o artesanato em outros lugares, muito antes da criação da cooperativa. 

Comunicativa, é ela quem conta a história da chegada do Boa Noite à Ilha do Ferro. “O que dizem é que quem trouxe foi uma senhora chamada Dona Ernestina. Ela morava em um povoado, em Sergipe, e se mudou pra cá. Agora, se ela já trouxe de lá, ninguém sabe. As pessoas mais velhas, lá do Mato da Onça [outro povoado do município de Pão de Açúcar, aprenderam a fazer o Boa Noite, que ela ensinava”. Lenda ou verdade, foi a partir de então que o bordado se popularizou na região.

Hoje, o aumento do número de cooperadas é o principal desejo da Art Ilha, explica Eridan. Ela reconhece que a rotina mais rígida de uma cooperativa muitas vezes espanta as bordadeiras: “tem que estar aqui todo dia e ter muita responsabilidade pra trabalhar, porque nós temos muitas encomendas.”

Foto: Museu A Casa

A artesã faz parte da segunda geração da cooperativa. A mãe, com quem aprendeu, estava nela desde a criação e quando saiu, cedeu seu lugar à filha, que sonha em fazer uma faculdade de pedagogia e trabalhar na área, mas gosta do dia a dia da cooperativa. “A gente ri e ajuda uma à outra quando precisa. Por exemplo, nem todas sabem desfiar, então se a minha peça já está desfiada, quem não sabe desfiar vai bordando a minha, enquanto eu vou desfiar a dela. A gente faz uma troca e vai se ajudando”. 

As mulheres da Art Ilha também passam a tradição do bordado para as próximas gerações. Eridan já explica os pontos à sobrinha, que a observa enquanto borda. Rejania, apesar das oficinas para pessoas de fora, prefere passar o conhecimento às jovens da Ilha que se interessam, para manter preservada a tradição e reconhecimento do local. 

É com o coração apertado que me despeço e agradeço ao grupo, a essa altura mais solto e brincalhão. Somo ao momento, um desejo de ficar por mais tempo e conhecer melhor o cotidiano daquele lugar, incrustado como uma joia na última parcela de terra antes do São Francisco separar Alagoas de Sergipe. No primeiro dia de inverno, Boa Noite floresce no sertão.

 

Sobre o autor

Carla Rodrigues

Carla Rodrigues, pernambucana e jornalista formada pela Unesp, atua como produtora de conteúdo para redes sociais. Entusiasta da cultura popular brasileira, é autora do livro “Onde há rede, há renda: as histórias por trás das rendas e bordados alagoanos”.
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