O ouro branco volta florescer no Vale do Urucuia

No sertão das Veredas de Minas Gerais, tão marcado na obra de Guimarães Rosa, a tradição ancestral das mulheres que fiam, cardam, tecem e bordam há muitas gerações estava ameaçada devido à falta de acesso à matéria-prima. Nesse mês de setembro, as artesãs e agricultoras familiares da Central Veredas estão revivendo um ritual que havia desaparecido há décadas e colhendo em seus povoados o algodão orgânico que elas próprias plantaram através do projeto "Algodão Sustentável no Cerrado".
Helena Kussik


A produção do algodão orgânico que havia desaparecido no Vale do Urucuia (MG) volta a florescer

Da flor de amarelo intenso brota a pluma branca, que se entrelaça tão intimamente nas tantas vidas do coração mineiro, a ponto de integrar seu próprio mito de criação.

 É dito que a semente do algodoeiro foi semeada por Deus, quando criou o mundo, junto a um pedaço de sua barba branca; é por isso que encontramos o caroço aninhado na fibra. 

Ao caminhar pela região do Noroeste Mineiro, cenário desse plantio, muitas são as histórias tramadas com o algodão. A fibra que estava lá desde o tempo dos mais antigos, constitui as histórias de vida, as relações com os mais próximos e com aqueles de lugares mais distantes, conhecidos apenas através dos contadores de “causos”. 

Era o ouro branco que brotava nos quintais, matéria-prima essencial para a produção das vestes para o corpo e para a casa. Os ofícios de fiar e tecer eram parte do conhecimento adquirido para bem gerir o lar e para gerar renda extra através da produção artesanal. Hoje, essa história do passado recente mineiro ligada ao algodão está sendo resgatada pelas artesãs de municípios do sertão das veredas eternizados por Guimarães Rosa como Sagarana. Junto com outras cidades do entorno, o núcleo vislumbra novas perspectivas para a produção artesanal a partir do regate do cultivo do algodão em um momento em que as matérias-primas locais e orgânicas ganham relevância nos modelos de produção e consumo.

No total, as agricultoras familiares do Vale do Urucuia já colheram 1 tonelada de algodão orgânico que elas mesmas plantaram através do projeto "Algodão Sustentável no Cerrado" do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN). Na foto da esquerda, a agricultora Marta, da Associação do Cambauba

Neste mês de setembro, as agricultoras familiares do Vale do Urucuia estão colhendo com suas próprias mãos o algodão que será fiado, cardado, tingido e tecido para se transformar em peças inteiramente manuais e livres de insumos químicos.  A colheita é resultado de uma iniciativa que teve início em meados de 2019 - o projeto “Algodão Sustentável no Cerrado”, que trouxe de volta para o Noroeste de Minas o cultura do algodão no contexto da agricultura familiar. A prática havia praticamente desaparecido nas últimas décadas frente ao cultivo intensivo em grande escala ou mesmo devido à ameaça de pragas que fizeram o algodoeiro minguar na região, forçando as artesãs a praticamente interromper a produção por falta de matéria-prima. 

A iniciativa coordenada pelo Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN) tem como proposta promover o que a organização chama de “Paisagens Produtivas Ecossociais”. Através do financiamento da Laudes Foundation, a estratégia vem contribuindo para o aprimoramento de técnicas de Agroecologia e geração de renda para a população local. Ao todo, cerca de 45 pessoas têm sido diretamente beneficiadas em sete municípios da região. 

As agricultoras, muitas também artesãs, envolvidas no projeto lembram com carinho do passado recente quando os plantios ainda eram comuns nos quintais. Essa é uma prática cotidiana nas zonas rurais de todo país: as áreas externas das casas são cultivadas pelas mulheres como uma extensão dos afazeres domésticos. Assim, o algodoeiro costumava crescer entre outras culturas, como abóbora e feijão e era colhido e beneficiado por elas. 

Foto: Helena Kussik
 

Maria Nadir Mendes, Dona Nadir, é mestra fiandeira integrante da Central Veredas. Ela conta que tudo o que era tecido em casa era feito no tear: de lençóis a panos de prato e ainda os conhecidos cortes de calça - como são chamados os moldes que seguem sendo produzidos por algumas tecelãs para a confecção desse tipo de peça. e depois para produzir peças para comercialização que ajudavam no sustento da casa. Assim como ela, boa parte das mulheres do Vale aprenderam muito novas a dominiar várias técnicas artesanais têxteis que desde a fiação manual do algodão, passando pelo tingimento natural com folhas, cascas e raízes do bioma do Cerrado, finalizando com tecelagem artesanal e bordado livre com temas da cultura local.

Em 2002, esses ofícios de fiação e tecelagem passaram por um processo de revitalização, fruto da mobilização da Artesol no conhecido Vale do Urucuia. Foi assim que surgiu a Central Veredas, uma cooperativa composta por oito núcleos produtivos em Natalândia, Sagarana/Arinos, Bonfinópolis de Minas, Riachinho, Serra das Araras/Chapada Gaúcha, Urucuia e Uruana de Minas / Arinos. Esses núcleos estão organizados em uma Rede Solidária de produção que envolve aproximadamente 100 artesãs e artesãos.

A partir deste ano, esses núcleos vão poder contar com a matéria-prima local, orgânica e sem custos. Esse é um grande ativo socioambiental da produção da cooperativa  já que quando cultivado no modelo do intensivo, o algodão demanda uma quantidade altíssima de agrotóxicos que impactam sensivelmente na biodiversidade do cerrado.

Tecelãs da Central Veredas, cooperativa que reúne artesãs do Vale do Urucuia (MG). Em alguns núcleos, a produção havia sido paralisada por falta de acesso ao algodão. Foto: Janine Morais / Agência Terrestre

Por isso, para resgatar a prática do cultivo orgânico, foram realizadas visitas técnicas às comunidades, estudo da terra e treinamento para o modelo de cultivo consorciado, que é uma forma de garantir a biodiversidade e maior produtividade do solo. Respeitando características do bioma, foram plantadas junto ao algodão outras espécies, como gergelim, milho, feijão e abóbora, o que, além de gerar renda, contribui para a segurança alimentar da comunidade.

Assim, a colheita que iniciou em junho já rendeu quase uma tonelada de algodão, além das espécies do cultivo consorciado. O algodão será certificado e beneficiado para uso na produção local e comercialização do excedente. Conectando-se com a história de inúmeras famílias, o projeto se enlaça, assim, ao trabalho artesanal de centenas de mulheres, que por gerações tecem o algodão.

Em um cenário ocupado pelo agronegócio, voltar o olhar para a agricultura familiar e retomar modos de produção e tecnologias ancestrais é desenhar outros futuros possíveis. Segundo Denise Maellaro Ferreira, representante da Laudes Foundation, o projeto busca trabalhar com dois grandes desafios centrais ao mesmo tempo: desigualdade social e mudanças climáticas. Ao integrar todos os elos da cadeia produtiva, buscando fortalecer as relações já existentes entre agricultura familiar e artesanato, o projeto apoia a comercialização da produção, destinada especialmente a pequenas e médias empresas do setor têxtil. 

Autonomia na produção artesanal: do plantio à comercialização

A partir da prática da tecelagem, as artesãs da região produzem mantas e redes tingidas natualmente. Foto: Janine Morais / Agência Terrestre

 

Desde 2016 a Laudes Foundation vem fomentando o cultivo de algodão agroecológico no Brasil, tendo além do ISPN, também a Esplar e Diaconia como parceiros em outros estados. Além de Minas Gerais, já tiveram colheitas nos estados da Bahia, Pernambuco, Paraíba e Ceará. 

Para Monique Barbosa, coordenadora da Central Veredas, a retomada do cultivo agroecológico do algodão é o início de um novo período para o artesanato da região, no qual as artesãs terão maior autonomia por dominarem toda a cadeia produtiva, do plantio à comercialização.  

Sobre o autor

Helena Kussik

Helena Kussik é mestre em Antropologia e atua como designer e pesquisadora. Atualmente se dedica a projetos de mapeamento de comunidades artesãs e articulação entre setores e agentes integrados na cadeia do artesanato nacional.
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