Rendando o sertão

No Agreste Pernambucano, os arabescos rebuscados transfiguraram-se à imagem da caatinga, flora bem conhecida pelas rendeiras. Essas transformações revelam a subjetividade dos processos relacionada ao contexto onde a técnica passou a ser recriada. Seguindo os ágeis pontos das rendeiras, traçamos uma perspectiva histórica, social e cultural da renda renascença na região.
Helena Kussik
 


Caatinga e a reinvenção das tramas da renda renascença no Agreste Pernambucano


Desfazer as tramas da renda até descobrir seu ponto inicial é impossível. Cada nó dado na linha com a agulha é um desvio à intenção de desvendar um percurso já emaranhado. Assim como o trabalho manual que não nos concede encadeamento lógico de seus pontos, a busca por traçar a história de origem da renascença só desdobra-se em infinitas tramas.

Não existe consenso quanto à origem da renda renascença e pouco se sabe quanto a sua introdução no Brasil e menos sobre como chegou ao semiárido. De partida, sabe-se que é uma técnica de origem europeia e que chegou ao país no fim do século XIX, possivelmente por intermédio de religiosas francesas da congregação Filhas da Caridade residentes no Convento Santa Teresa em Olinda – PE. 

No Agreste Pernambucano, os arabescos rebuscados transfiguraram-se à imagem da caatinga garranchenta, flora bem conhecida pelas rendeiras. Essas transformações revelam a subjetividade dos processos relacionada ao contexto onde a técnica passou a ser recriada.

Os manuais do ofício são praticamente inexistentes na região. Sendo assim, é através da transmissão oral do conhecimento que as rendeiras aprenderam e aprendem. Neste processo muito se cria, recria e transforma-se. Começa-se a praticar ainda na infância. “A gente costuma dizer que aprende já na barriga da mãe”, conta-me Zefa, uma rendeira do sítio Riacho do Meio. Isso porque a familiarização não só com o modo de fazer cada ponto, mas ainda com o material e com o ambiente da renda é inerente ao processo.

Pipoca, xerém e aranha

Os pontos de cada trama ganham nomes que lembram formas, objetos e inspirações comuns no cotidiano feminino do sertão.  Coisas como pipoca, xerém, mosca, sianinha, aranha e abacaxi. Na verdade, um mesmo ponto pode variar de acordo com a região onde é produzido e até mesmo de acordo com quem o produz, reforçando a individualidade do processo.

O universo da produção da renascença, portanto, ultrapassa os propósitos econômicos pois além de produtos, suas autoras cultivam um modo de vida. O ofício constitui a realidade e a elabora por ser um aspecto importante para a reprodução material e social do lugar. A estética das peças revela uma complexa trama de saberes tradicionais, combinação incessante entre valores subjetivos e objetivos.

 

Agulha, linha e lacê

A agulha feita de espinho de mandacaru

Os materiais básicos para a produção da renascença são o papel manteiga ou plástico, o papel grosso (kraft), o lacê, a linha e a agulha. Cada um desses possui inúmeras variantes que surgem de acordo com a necessidade do momento ou com a disponibilidade no mercado. Ainda que, quando vista de fora, a produção pareça perene e pouco variada, observada ponto a ponto, é envolvida pelo processo criativo que dá origem às coisas e propõe inovações. Um exemplo é a variação da linha utilizada, que, com o passar do tempo, ficou mais grossa, assim os pontos maiores acabam por preencher em menos tempo os espaços no risco. Outra peculiaridade são as agulhas confeccionadas com materiais inusitados como como o espinho de mandacaru utilizado no agreste Pernambucano, entre as artesãs de Pesqueira. Outros grupos se valem ainda de agulhas feitas de cano de pvc ou arame de alumínio, que foram criadas para situações particulares; são nas semanas decorrentes de uma cirurgia ou parto, ou ainda em dias de tempestade com descargas elétricas que as rendeiras evitam o uso de agulhas de aço. “Não presta pegar no aço operada”, dizem.


Irmãs rendando

A produção divide-se em quatro etapas: risco, alinhavo, tecer e finalização -procedimentos que podem ser realizados todos por uma só rendeira ou divididos como forma de otimizar a produção e melhorar a possibilidade de ganhos. O chamado  “risco” é o papel vegetal com o desenho do motivo que servirá de guia para o alinhavo. Um mesmo risco pode ser reutilizado quatro ou cinco vezes ou até que o papel se rasgue, sendo descartado. Porém, a vida útil de um risco perpetua-se na cópia; quando não se pode mais alinhavar sobre um papel já muito furado pela agulha, copia-se o desenho em outro papel vegetal.

Após colar o papel fino sobre o papel kraft para lhe conferir estrutura, é que é chegada a hora de alinhavar a peça. Com um ponto da costura manual, chamado ponto atrás, fixa-se o lacê sobre o risco feito a caneta no papel.Etapa mais longa da renascença, o tecer de uma peça pode levar meses. Geralmente a rendeira realiza mais de um trabalho ao mesmo tempo, intercalando-os de acordo com sua vontade ou necessidade de cumprir um prazo de entrega.

Com a conclusão dos pontos, é preciso despegar a renda pronta do papel que lhe serviu de suporte. Com o tecido em mãos, inicia-se o trabalho de prender as pontas soltas do lacê com pequenos pontos de costura. Com as pontas do lacê costuradas e os nós e linhas sobressalentes cortadas, a peça está concluída e passa pela engoma para ser vendida.

O valor de um ponto


A autora Helena Kussik com Maria Quitéria no Sítio Mimoso - Jataúba PE

O envolvimento afetivo com a técnica e seu valor como produto dialogam em constante negociação. O cálculo do tempo de trabalho e o lucro possível em cada peça é um desafio constante. Por isso, muitas vezes, as peças ganham pontos maiores, mais espaçados e riscos menos detalhados.  Ainda assim, mesmo com os retornos ínfimos, algumas artesãs seguem aprendendo novos pontos por gosto pessoal, capricham nas peças, continuam a fazer pontos pequenos que consideram mais bonitos. Reclamam ao se darem conta de que ganham pouco, ou quase nada, porém não param de fazer. Tal fato foi destacado por muitas delas como sendo um vício, ao revelarem que têm no apego à cabeceira, como chamam a almofada utilizada.

O vício aqui pode ser visto a partir do que seriam suas duas componentes principais; primeiro uma ação da qual não são capazes, ou não desejam, desembaraçarem-se. Depois, em sua inerente face negativa, algo que através do prazer gera algum desvio. Entendamos assim: manter-se rendeira na adversidade é também desviar, resistir.

 

*Essa matéria é fruto da minha pesquisa de mestrado realizada no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná, entre os anos de 2014 e 2016. No período, estive por três meses no Agreste Pernambucano, mais especificamente em no sítio Mimoso entre as cidades de Pesqueira e Jataúba, que são consideradas berços da Renda Renascença no Brasil.

 

Sobre o autor

Helena Kussik

Helena Kussik é mestre em Antropologia e atua como designer e pesquisadora. Atualmente se dedica a projetos de mapeamento de comunidades artesãs e articulação entre setores e agentes integrados na cadeia do artesanato nacional.
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