
Dorinha - Maria das Dores Ramos a Silva

AS MÃOS QUE CRIAM, CRIAM O QUE?
Um a um, minuciosos pontos tecem vagarosamente uma renda cuja preciosidade e precisão
deslumbram qualquer observador mais atento. A renascença é uma técnica em que a renda é
construída a partir do alinhavo do lacê (espécie de fita) sobre um suporte, onde o desenho que
foi “riscado” é fixado. Com agulha e linha fina, um a um, nó a nó, os espaços entre os lacês vão
se preenchendo. É esse fitilho, que a difere das demais rendas, que serve de base para os
pontos e norteia os contornos dos desenhos, acompanhando o risco e deixando livre os
espaços que serão preenchidos pelos pontos.
Feito o ponto alinhavo, segue-se uma infinidade de outros: xerém, vassourinha, cianinha, um
dentro, malha, laço de amor, caramujo, corrente, abacaxi de torre, traça, ponto cheio e muitos
outros criados. “Uma criava e mostrava a outra e essa já queria fazer diferente.”O desenho, ou
risco, é feito com linhas duplas e paralelas, originalmente em papel de seda ou manteiga e com
lápis azul. Todo a mão livre, é realizado por poucas artesãs - mais experientes. Inventoras de
formas livres. Desenhos de seus imaginários, as vezes simétricos, mas sempre precisos.
QUEM CRIA?
Sempre muito curiosa, Maria das Dores Ramos da Silva começou a ganhar intimidade com a
renda em 1965, aos 6 anos de idade. Ofício adquirido com a vizinha Luzinete e também com o
pai, próximo ao tempo de seu falecimento, quando passou a ajudar a mãe na criação dos
outros quatro irmãos. Mais velha, começou a fazer renda para ajudar com as despesas da casa.
Mas moravam em um sítio e a dificuldade em vender era grande.
Casou-se aos 15 anos e foi para Brasilia. Lá morava em um barraco alugado onde a dona (e
vizinha) levava suas peças pra vender em residências do Plano Piloto. “Ela conhecia muitas
senhoras ricas”. Dorinha nunca teve a oportunidade de conhecer as clientes mas sabia que o
preço de venda de suas peças seguramente não era equivalente ao valor que recebia.
Em 1974, grávida da primeira filha, Dorinha voltou para casa, para a Paraíba, para o sitio em
Ramada, Boqueirão. Lá, seguiu fazendo renda, mas vendia fora: em Campina Grande. As
vendas aumentaram, as encomendas também. A necessidade de encontrar outras rendeiras
para ajudá-la com os pedidos que recebia, a levou a fundar a Associação de Desenvolvimento
Comunitário das Artesãos de São Sebastião do Umbuzeiro. Não demorou para se tornar uma
líder e referência para toda uma comunidade. Depois para o mundo.
Dorinha exporta para Portugal, Italia e Espanha. Desenvolveu trabalhos junto aos estilistas
Ronaldo Fraga e Isabela Capeto, dá palestras, cursos, oficinas. Em 2012 participou do projeto
Mulher Artesa Brasileira, realizado através de uma parceria entre Centro Cape, Sebrae e Banco
do Brasil. Foram selecionadas 15 mulheres brasileiras para expor seus trabalhos na sede da
ONU em Nova York, um marco que foi registrado em livro com a historia de cada uma dessas
15 mulheres. Em 2014 ela foi convidada pela Artesol para expor em um festival no Catar
durante uma semana. 2017 foi o ano em que foi convidada pelo Itamaraty para representar o
Brasil na Índia em um encontro dos BRICS. Mas tudo isso seria insuficiente sem o
reconhecimento pelo governo do estado da Paraíba, em 2019, consagrando-a com o título de
Mestra em Renda Renascenca.
ONDE CRIA?
De origem italiana, mais especificamente da região de Veneza, a Renda Renascença foi assim
batizada dado o momento histórico de seu surgimento, o Renascimento, época de sua maior
difusão. Trazida ao Brasil pelos portugueses, era ensinada em conventos, colégios internos e
por damas da sociedade, inicialmente em Olinda, Pernambuco. Na década de 1930 a rendeira
Maria Pastora, em visita a “Vila de Poção” - que ainda pertencia a Pesqueira, trouxe à Paraíba a
Renda Renascença. Com ela, também veio a chegada da luz elétrica.
Tradição aos sábados, quando acontecia a feira livre, as rendeiras passaram a aproveitar o
movimento intenso para vender suas peças. Mais tarde, o encerramento da feira foi um marco,
fato recebido com muito pesar e que causou a queda das vendas e o desinteresse das mais
novas em dar continuidade ao ofício, dando vazão a precarização da mão-de-obra. Retiraram o
poder das rendeiras comercializarem seus trabalhos que agora dependem de migalhas das
fábricas na entrada da cidade. “Hoje a comercialização de Renda Renascença quase não existe
mais. O povo todinho de fora ia comprar lá em Poção dia de sábado. Acabou-se não tem mais.”
Em 2013 a Renda Renascença recebeu o selo de Identificação Geográfica do Cariri Paraibano
através do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). É um certificado que atesta a
procedência regional e a qualidade do produto. Ao delimitar a área de produção e restringir o
uso aos produtores da região impede que outras pessoas utilizem indevidamente o nome da
região em produtos ou serviços. O registro conferido enumera as cidades que integram a
delimitação geográfica que podem receber o selo: Congo, Prata, Sumé, Monteiro, Zabelê,
Camalaú, São Sebastião do Umbuzeiro e São João do Tigre.
Nascida em Ramada, município de Boqueirão, Paraíba, Dorinha tece seu legado na renda há
mais de meio século. Aos 62 anos, com a vista já comprometida pela catarata, e muitas dores,
confessa que pretende continuar até quando aguentar. "A renda promoveu mudanças muito
grandes em minha vida, e das pessoas ao meu redor. Ajudou muito na nossa renda financeira.
Com ela consegui formar os meus filhos."
Rede nacional do artesanato
cultural brasileiro
