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A estética do cangaço e o sertão fashion

Excêntrico jagunço com dotes para as artes, para a estratégia, para a música e para o marketing, Lampião foi perseguido 20 anos por toda a polícia do Nordeste. Passou uma […]

Camila Fróis


Excêntrico jagunço com dotes para as artes, para a estratégia, para a música e para o marketing, Lampião foi perseguido 20 anos por toda a polícia do Nordeste. Passou uma vida desafiando não só as autoridades locais, mas o poder central do Brasil. Sequestrava coronéis, assassinava seus inimigos com requintes de crueldade, distribuía doces para crianças e remédios para pessoas simples, rezava para o Padre Cícero, frequentava casamentos e batizados, bebia whisky escocês, dançava xaxado e cantava repentes com os cangaceiros de seu bando nas horas de folga.

Além da capacidade de escapar com maestria dos homens da lei e apavorar seus inimigos, Virgulino ficou conhecido por muitos outros feitos. Um deles é o fato de ter criado um “dress code” para o seu bando que logo o tornaria um símbolo cultural de todo o sertão. Ao entrar para a história, o rei do cangaço eternizou seu apurado senso estético. Se, naquela época, já existissem perfis de Instagram, o capitão Virgulino da Silva seria, inclusive, o que se chama hoje de um dos maiores influencers da moda do seu tempo – e não só do seu tempo, diga-se de passagem. A estética extravagante de Lampião e seus cangaceiros já inspirou muitos estilistas brasileiros como Zuzu Angel, que apresentou em seu primeiro desfile em Nova York (1970) uma coleção em homenagem ao estilo de Maria Bonita. Além dela, Ronaldo Fraga, Tufi Duek e a “Forum” beberam na mesma fonte – essa última grife lançou roupas e acessórios enfeitados por pespontos ou tachas que recriavam os desenhos dos artesãos da caatinga.

Toda essa influência que resiste até hoje foi planejada com cuidado ainda no tempo do cangaço.Lampião sabia que construir uma auto-imagem autêntica ajuda na comunicação com o outro e transmite confiança. Vestir-se bem, portanto, era essencial para triunfar. Mais do que cuidar do estilo, porém, era preciso divulgá-lo. Ainda distante da era das redes sociais, o líder contratava retratistas e posava com lenços de seda no pescoço, broches e caros anéis nas mãos, fosse ao lado de sua companheira Maria Bonita, com espingarda em punho, lendo a bíblia ou dançando xaxado. Depois de reveladas, mandava essas fotos para os jornais da época junto com seu cartão de visitas e concedia, inclusive, entrevistas. Com sucesso, construiu para si mesmo uma certa imagem de “Robin Hood do sertão” que, teoricamente, assaltava a fazenda dos coronéis para ajudar os mais pobres.

Com a fama, seus coletes, broches, cartucheiras e embornais bordados viraram símbolos de distinção, colocando em questão – já no início do século passado – a ideia de um Nordeste rude e sem sofisticação. Não é por menos que o chapéu do rei do cangaço, com estrelas de couro, acabou ganhando o Brasil na cabeça de outro rei, Luiz Gonzaga, que inventou o baião, mas copiou o estilo de seu conterrâneo pernambucano em uma clara homenagem ao líder do maior movimento de banditismo da história brasileira.

“Lampião percebeu que o cuidado com a roupa seria motivo de orgulho dos seus comparsas. Ele começou a pensar na simbologia dessa estética, usando ícones como a cruz de malta (associada aos cavaleiros de Malta), a estrela de Davi, (que ofereceria blindagem mística) e a flor de lis (usada nos escudos da realeza francesa), por exemplo”, explica o historiador Frederico Pernambucano de Mello, um dos principais especialistas em cangaço no País. O pesquisador é autor do livro “Estrela de couro: a estética do cangaço” que, além de um complexo estudo sobre as referências visuais do movimento, reúne 300 fotos históricas e 160 reproduções de objetos de uso pessoal dos cangaceiros, muitos pertencentes a um acervo particular do próprio escritor.

Nas fotos do livro, os detalhes dos “uniformes” usados pelo bando impressionam. Frederico explica que os cangaceiros pós Lampião vestiam-se de forma colorida, cobertos por adornos de ouro e sabiam confeccionar toda a sorte de objetos e vestimentas sem que, por isso, se questionasse sua virilidade. “O “rei do cangaço” costurava suas roupas e a de seus afilhados e bordava à máquina com perfeição, orgulhando-se da sua habilidade. No auge dos anos 30, seu bando possuía preocupações estéticas mais frequentes e profundas que as do homem urbano moderno”, afirma o autor.

A ostentação através do estilo

Tamanho apuro visual tinha muito significados. Os pequenos detalhes espelhados nos chapéus e medalhas religiosas traziam proteção ao mau-olhado, as patentes militares serviam como condecoração para os integrantes do bando – que eram considerados soldados – e as joias e acessórios bordados eram um poderoso instrumento de propaganda junto às populações pobres, que se admiravam diante de todo aquele luxo, cor e brilho. Era também uma forma de arte que o cangaceiro ostentava no seu corpo.

Essa ostentação revelava uma característica muito própria e peculiar do cangaço, já que o os cangaceiros não admitiam ser comparados ou confundidos com bandidos comuns, uma ofensa grave. Para entrar no movimento era preciso ter um motivo digno, como se vingar do que se chamava de “crimes de honra” e toda sorte de injustiças sociais ou pessoais – o próprio Lampião se tornou cangaceiro para vingar a morte do pai, executado em uma briga de vizinhos. Por isso, eles se viam como justiceiros distintos e cheios de orgulho de si mesmos por sua luta.

Em vez de procurar camuflagem, criaram então essa estética brilhante com roupas enfeitadas de moedas, metais, botões e recortes multicores que, paradoxalmente, os tornavam alvo fácil até no escuro. “Todos armados de mosquetões, usando trajes bizarramente adornados, entram cantando suas canções de guerra, como se estivessem em plena e diabólica folia carnavalesca”, escreveu o Diário de Notícias, de Salvador, em 1929.

Com essa imagem vibrante, eles influenciaram a música, o cordel, a literatura e outras manifestações artísticas contagiando toda produção cultural sobre o sertão desde então. Aos poucos, as imagens de um território ermo, seco, arcaico, miserável e habitado por rudes cabras machos analfabetos acabaram entrando em crise nas representações da região, especialmente depois do boom de desenvolvimento econômico da região depois dos anos 2000.

Espedito Seleiro e o cangaço moderno

Hoje, o principal ícone da nova estética do Nordeste é o grande mestre Espedito Seleiro, totalmente mergulhado nas referências visuais do Cariri (CE) e de personagens como o cangaceiro, o cigano e especialmente o vaqueiro. “O meu pai era vaqueiro e seleiro. Vaqueiro porque cuidava da criação, seleiro porque cuidava dos equipamentos do vaqueiro, pra ele usar e pros colegas, que na época tinha um monte. Quando tinha uma pega de boi no mato, se juntava 8, 10 vaqueiros, às vezes 20 ou 30. Cada um queria ir mais bonito, mais bem arreado, com um cavalo bonito, com uma sela boa, né? E meu pai era quem fazia tudo isso. O meu pai e o pai dele.”, lembra o mestre. Apesar da inspiração das indumentárias do vaqueiro tradicional – assim como Lampião – Espedito se consagrou por contrastar a rusticidade da moda da caatinga com seu bordado delicado, de cores vibrantes em sandálias, botas e bolsas que acabaram caindo no gosto dos fashionistas de todo o Brasil. Aos 77 anos, o artesão de Nova Olinda tem em seu currículo trabalhos para grifes como Cavalera, Cantão, Ronaldo Fraga e Farm, além dos irmãos Fernando e Humberto Campana, que lançaram, inclusive, uma linha de móveis inspirada na estética sertaneja, em 2015. Hoje, o próprio Espedito tem sua produção autoral de móveis.

O link entre o design de Seleiro e o estilo de Lampião é óbvio, mas a conexão entre as histórias dos dois nordestinos é curiosa. Uma das principais nuances da trajetória do artesão é o fato de o “Seleiro Pai”, Raimundo Veloso, já ter atendido uma encomenda de Virgulino. “Ele contava a história. Dizia que estava fazendo uma cela à noite, quando chegou um homem desconhecido da região e perguntou se ele fazia alpargatas. Meu pai respondeu que era bom mesmo em fazer selas, mas que se arriscaria a atender o pedido. O moço fez então a encomenda e só depois de um mês veio buscar, revelando quem era o famoso cliente. Meu pai nem cobrou”, conta. O modelo se diferenciava dos outros por um detalhe importante: o solado retangular, usado pelo cangaceiro para confundir a polícia que – diante das pegadas com todos os lados iguais, não saberia se andarilho ia ou voltava. Além da fama e das boas histórias, Seleiro herdou do pai o ofício de família, mas inventou um estilo único de trabalhar o couro, recriando, de, modo original, o universo dos vaqueiros através do resgate das cores que se destacam em meio à paisagem do semiárido.

“Quando eu faço uma roupa de vaqueiro, eu posso fazer uma roupa original, que ele usa pra entrar na mata fechada, mas eu também faço um gibão bem colorido que aquele vaqueiro que não é legítimo (do mato) quer usar. Você vai se apresentar como vaqueiro, você vai bem preparado com um gibão bem colorido, bem bonito, todo mundo quer”, conta Espedito.

Hoje, o retrato da região que aparece não só nos acessórios do famoso mestre, mas também em filmes como o Boi Neon (2015), nas fotos do Museus do Homem do Nordeste, em Recife, e em obras de arte contemporâneas e de design, a antiga imagem do sertanejo segue sendo reinventada com base no apuro da estética do cangaço e de outros movimentos culturais mais em sintonia com a modernização de seus valores.

Assista aqui ao filme Sandália de Lampião, de Adriana Yãnez.

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Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.