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A fotografia como descoberta de novos mundos: uma imersão na criatividade pernambucana

Para Kity Ramos, a fotografia como linguagem permite a descoberta e a conexão sensível com novos mundos, pessoas e histórias. No primeiro texto da sua coluna, ela compartilha experiências da sua expedição fotográfica na zona da Mata Pernambucana onde visitou ateliês, conheceu artistas e artesãos e manifestações culturais como o maracatu rural e outras tradições afro-indígenas.

Kitty Ramos

26 de Julho de 2024


Desde pequena tenho muita curiosidade de conhecer o mundo, sobretudo o Brasil. Passei a infância em uma fazenda no interior de São Paulo, crescer por lá me fez ter uma ligação muito forte com a natureza. O gosto pelas tradições culturais, festas populares e artesanato também vieram dessa época da minha vida. Adoro conhecer as pessoas que vivem nos mais variados lugares do país, mantém um modo de vida autêntico e preservam saberes ancestrais, sempre com uma forte ligação com a terra, amplo conhecimento da natureza e de costumes antigos bem preservados.

O território criativo da Zona da Mata

A ideia de visitar a Zona da Mata surgiu com Valdemir Cunha e Rita Barreto, ambos fotógrafos, apaixonados pelo Brasil e sócios da Origem Expedições Fotográficas, empresa de viagens voltadas a pessoas que gostam de viajar, fotografar e conhecer um Brasil autêntico. O roteiro me seduziu de imediato por ser uma excelente oportunidade de aprimorar a técnica fotográfica, ainda mais com os ensinamentos do Valdemir, podendo explorar de perto a cultura popular brasileira e alguns polos de artesanato tradicional. Nem preciso dizer que me inscrevi na expedição assim que pude.

A Rota dos Engenhos está localizada na Zona da Mata, em Pernambuco, região caracterizada por um clima úmido e terras muito férteis, que faz a transição do clima litorâneo de Recife para o agreste do Estado. O território teve uma grande importância econômica desde o período colonial e imperial do Brasil em decorrência da plantação e produção da cana de açúcar. A maioria dos engenhos possui visitas guiadas que contam não só a rica história local, mas também detalham o processo de produção do açúcar e da cachaça. Muitos deles fabricam cachaças artesanais que podem ser degustadas no final do tour — e são ótimas, com sabor forte e rótulos divertidíssimos como “Arranca Chifre”, “Nas Coxinhas”, “Amansa Sogra” e afins. Dá para passar o dia experimentando e se divertindo com todas elas e os licores feitos de frutas regionais. O mais difícil é resistir à tentação de experimentar todos! Depois de tanto álcool, vale experimentar o gostoso café coado na hora e adoçado com a típica rapadura, também feita por ali.

A arquitetura dos Engenhos reflete a história da região, com os Casarões dos Senhores de Engenho, as senzalas onde eram alojados os escravos e pequenas capelas onde as missas e as cerimônias religiosas eram realizadas. Alguns ainda têm pequenos museus com objetos históricos que ajudam a detalhar um pouco mais a história do lugar.

Expressões culturais afro-indígenas 

A região da Zona da Mata tem uma herança cultural que se manifesta em expressões riquíssimas. O Maracatu Rural, por exemplo, também conhecido como Maracatu de Baque Solto, tem suas raízes nas tradições afro-indígenas e nos antigos reinados negros. Tem uma batida forte, com predomínio dos instrumentos de percussão. O ritmo é cadenciado e solto, ainda mais comparado ao Maracatu de Baque Virado, comum nas regiões urbanas. Em nossa expedição, tivemos a oportunidade de assistir à apresentação do grupo Cambinda Brasileira, momento mais bonito e inesquecível da viagem! Os figurinos são um espetáculo a parte e são criados pelos próprios bricantes. As danças do grupo com roupas coloridas e esvoaçantes, ao som daqueles tambores hipnotizantes no meio do canavial formam um espetáculo único e contagiante.

Neste dia chegamos a uma casinha simples, cheia de roupas, chapéus, fitas, penas e lantejoulas para encontrar o grupo onde guardam todas as fantasias e material de produção. Tudo muito colorido, interessante e, claro, lindo! Os trajes são feitos e costurados pelos próprios brincantes, homens e mulheres trabalhadores dos canaviais que durante a dança do Maracatu têm um momento de entrega ao Divino, celebração das tradições e agradecimento pelas boas safras. 

De lá, fomos seguindo a Kombi do Cambinda Brasileira até o local da apresentação, na Sede do Engenho Cumbe. O local é de propriedade da família Estevão, que estava toda lá participando da exibição preparada especialmente para o nosso grupo. O espetáculo começou durante a preparação, com os brincantes ajudando uns aos outros a se vestirem, se maquiarem e a colocarem os demais adereços. Após todos estarem prontos, começaram as batidas dos tambores até que a forte percussão tomou conta de tudo. Os cantos entoados pelo grupo se juntaram às batidas e, quando fomos perceber, estávamos todos contagiados pela forte energia do Maracatu. Impossível não se deixar levar!

Fazem parte do cortejo uma série de personagens tradicionais da cultura local. O principal é o Caboclo de Lança, símbolo de resistência, força e identidade das comunidades afro-indígenas.  Ele é o mais extravagante e colorido de todos, sempre com um cravo na boca, amuleto de proteção que afasta energias negativas durante a performance.

Teatro de Mamulengos e a personalidade dos bonecos

Outra expressão cultural muito importante na Zona da Mata de Pernambuco é o Teatro de Mamulengos, tradicional teatro de fantoches do interior do nordeste brasileiro. Os bonecos são feitos de madeira de mulungu, árvore típica da região, e enfeitados com tecidos coloridos. Normalmente, representam figuras folclóricas, como Catirina, Benedito, Dona Quitéria, Capitão João Redondo, também fazem parte reis, rainhas, espíritos, animais, padres, freiras e o próprio diabo. Fomos assistir uma apresentação, é de impressionar como as marionetes se movem com agilidade ao conversar entre si. As cenas são improvisadas, os diálogos engraçados e o espetáculo abordam situações do cotidiano com muito humor e música.

O Mestre Miro, famoso por seus bonecos gigantes feitos com papel machê e madeira, foi certamente quem mais me chamou a atenção em toda a viagem. Tivemos a honra de visitar sua oficina — que também é sua casa — e presenciar a produção de toda sorte de bonecos, que inevitavelmente acabam virando parte da família do Mestre. A relação entre ele e sua arte é tão intensa que à medida que vão ficando prontos, os bonecos criam vida, com seu próprio estilo se transformam em personagens com vontades, temperamentos e formas próprias de falar.

Mestre Miro tem o dom de dar vida e personalidade ao inanimado, criando narrativas autênticas que retratam a cultura e muito da vida do autor. É com muito orgulho e empolgação que ele nos conta sua história de vida, detalha a trajetória de seus bonecos e improvisa diálogos com cada um deles.

Foguinho é o negro cabeçudo com quem conversa sobre a importância de estudar para ficar sabido. Kalunga é a Deusa do Maracatu, responsável por transmitir força aos Caboclos de Lança. Mas a grande estrela é, sem dúvida, Maria Grande, uma cabrocha de 1,70m dos olhos grandes e bem expressivos. É a favorita do Mestre, criada para ser sua parceira de forró. Sabe rebolar como ninguém, se empolga na dança e vai requebrando até o chão. O temperamento forte é outra característica marcante de Maria Grande, que não leva desaforo para casa e é cheia de vontades.

Mestre Miro não esconde o amor que tem por ela. Foi com brilho nos olhos que nos disse que Maria Grande é uma paixão antiga, a primeira. Os dois ganharam fama juntos e dançaram forró por muitos lugares por onde viajaram. Foram até para fora do país, se apresentando em Paris e fazendo um grande sucesso. Além dos bonecos, ele confecciona cenários completos, todos articulados e com muito movimento. Miro nos mostrou o salão de cabeleireiro, onde cada boneco tem a sua tarefa e a executa com perfeição. Tudo ali é automatizado e feito pelo próprio Mestre. É só ligar a eletricidade e o salão começa a funcionar a todo vapor. Não importa quanto tempo você passe por lá, certamente irá deixar a oficina de Mestre Miro com a sensação de que tinha muito mais para conversar e aprender. Se quer conhecer mais sobre os mamulengos, recomendo a visita ao Museu dos Mamulengos. Você pode agendar sua visita para conhecer os artesãos, ou mesmo checar a agenda de apresentações.

Ateliês e artesanato

O artesanato da Zona da Mata de Pernambuco é ainda mais diverso. A cidade de Tracunhaém, por exemplo, é um polo artesanal de cerâmica que tem como uma das referências os leões de Mestre Nuca. Em toda a cidade existem vários ateliês e lojinhas charmosas que expõem as peças de barro feitas pelos artesãos locais, com oficinas que apresentam o passo a passo da produção das peças. Muitos dos artistas trabalham juntos, como fica claro ao saber da existência da Associação dos Artesãos de Tracunhaém (AATRAC).

Tivemos a oportunidade de visitar uma Olaria onde trabalham dez ceramistas e presenciar o processo de produção por completo: pisar o barro, fazer a pasta, modelar na mão ou no torno e queimar a peça no forno até ficar pronta. O trabalho dos artesãos é inspirado por um radinho de pilha com músicas religiosas. A devoção a Deus fica ainda mais evidente pelas tatuagens de agradecimento e fé em seus corpos, malhados de tanto amassar o barro.

Em Passira fomos conhecer os bordados. O trabalho é feito por um grupo de mulheres, e o conhecimento passado de geração em geração. As peças, todas feitas à mão, são bem variadas: toalhas, panos de prato, roupas e até acessórios para bonecas e animais domésticos.

Já em Lagoa do Carro visitamos a Associação das Tapeceiras, localizada às margens da Rodovia PE-90. Lá, são feitos tapetes artesanais que muito se parecem com os Arraiolos Portugueses. Segundo a explicação, a diferença está no forro e no tipo de ponto. O nome dado a técnica da Zona da Mata é Florzinha ou Brasileirinha. O município conta também com um Museu de Antiguidades, a Cachoeira do Roncador e o famoso Açude que deu nome à cidade. Outro tipo de artesanato muito comum na região são as cestarias, chapéus e esteiras feitos de palha de coqueiro, cipó e outras fibras vegetais.

A culinária foi outro ponto forte da viagem. A mistura da influência indígena, africana e portuguesa resulta em deliciosos pratos típicos: carne de sol com macaxeira, feijão massaca (conhecido também como feijão de corda ou feijão verde) e canjica. Isso sem falar no tradicional bolo de rolo, uma espécie de rocambole pernambucano de massa fina enrolada com recheio de goiabada.

Serviço

Quando e como ir

A Zona da Mata é um destino que pode ser visitado em qualquer época do ano, mas os eventos de celebração como o Carnaval ou as Festas Juninas podem oferecer uma experiência ainda mais rica para o turista.

A melhor forma para chegar é alugar um carro em Recife. Em cerca de uma hora você estará em Carpina, cidade com mais infraestrutura da região, onde é possível se hospedar.

Museu do Mamulengo


Rua Cleto Campelo, s/n
Gloria de Goitá (PE)

Para agendar uma apresentação de teatro
de mamulengos, entre em contato: (81) 9993-0139

Advogada por formação e voluntária em diferentes projetos socioculturais, Kity Ramos encontrou na fotografia uma oportunidade de unir duas paixões: viagem e cultura enquanto conhece diferentes realidades do Brasil em roteiros pouco convencionais.