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A infância na Fundação Casa Grande: crianças e adolescentes como guardiões da memória e da cultura

“Vendo a casa ser montada, as crianças passaram a entrar para brincar, foram tomando conhecimento do que tinha lá, começaram a explicar para os turistas que entravam a história e […]

Raquel Lara Rezende


“Vendo a casa ser montada, as crianças passaram a entrar para brincar, foram tomando conhecimento do que tinha lá, começaram a explicar para os turistas que entravam a história e assumiram posições de coordenação no espaço”.

É assim com muita naturalidade e tranquilidade que o pesquisador Alemberg Quindins conta como nasceu e foi se construindo a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri. A casa à qual Alemberg se refere é a casa de seu avô, parte de um engenho e uma das primeiras do povoado, que foi reformada para receber os materiais históricos e arqueológicos que ele e sua esposa Roseane coletavam pelo município e arredores durante uma pesquisa etnomusical.

Foi assim que Alemberg Quindins criou um grande centro cultural para as crianças de Nova Olinda, no sertão do Ceará. A Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri nasceu em 1992 com o intuito de resgatar a memória do povo da região, o Vale do Cariri, e ser um centro de memória: “Nós resgatamos a cultura local nas áreas de arqueologia, mitologia, artes e comunicação”, conta Alemberg. Os alunos mantêm um canal de TV, de rádio, uma editora de gibis e um museu que conta com um rico acervo de 2.600 HQs e 1.600 títulos de clássicos do cinema. A ideia é desenvolver a capacidade de liderança das crianças a partir dos laboratórios de produção. No vale, onde está o município, existiu há mais de 100 milhões de anos um grande lago. Com a separação dos continentes, toda a região foi invadida pelo Oceano, o que aumentou a salinidade da água, matando milhões de peixes, animais e vegetais. Seus fósseis foram conservados em ótimo estado, por muitos milênios, por conta da capacidade preservativa do sal. Por conta disso, hoje a região funciona como um grande laboratório, onde pesquisadores do Brasil e do mundo podem estudar e observar todas as fases de vida do continente sul-americano.

Alemberg e Roseane foram pioneiros na pesquisa etnomusical, em busca dos mitos e das lendas da etnia kariri que habitavam a região. Em suas andanças, acabaram recebendo das pessoas que visitavam cacos de panela indígena, utensílios de pedra, entre outros objetos que eram encontrados nos roçados. Aos poucos, os dois foram reunindo peças arqueológicas, registros fotográficos de sítios arqueológicos que também são considerados por eles lugares mitológicos, além de gravações da tradição oral da região. Esse material passou a ser procurado por professores e estudantes, como fonte de pesquisa sobre a cultura kariri.

Movidos pela necessidade de reunir em lugar mais adequado o acervo que foram formando e disponibilizá-lo ao público, Alemberg decidiu reformar uma antiga casa abandonada, e com fama de mal-assombrada, que se encontrava em posse de sua família desde 1832. A casa escolhida possui grande importância histórica, pois foi construída no início do século XVIII, em plena expansão colonial pelo sertão nordestino, ao lado de uma capela e um cemitério, dando origem ao povoado de Tapera, mais tarde chamada de Nova Olinda. A Casa Grande simboliza, assim, a ocupação portuguesa dos sertões nordestinos, a opressão e dizimação das etnias indígenas da região e o início do ciclo do couro, no nordeste.

A partir de 1992, entretanto, ela passou a ser um museu bem vivo: o Memorial do Homem Kariri. Logo chegaram as crianças, curiosas com a nova casa que ressurgia tão cheia de vida. Alemberg e Roseane passaram a brincar com elas e a contar as histórias do homem Kariri, a partir do acervo do Memorial. 

As crianças se apropriaram das histórias e logo já estavam recontando aos visitantes que chegavam. Como novos donos da Casa, assumiram funções de gestão do lugar, como diretores de cultura, de pesquisa e manutenção, entre outros. As crianças começaram a levar outras crianças e elas mesmas criaram outras funções para as novas que chegavam.

A Casa Grande abraçou as crianças e o desafio de proporcionar a elas atividades educativas que as colocassem em uma relação mais profunda com sua própria história, enquanto povo daquele lugar, ampliassem seu repertório cultural e gerassem perspectivas e oportunidades de inclusão social e profissional. Com esse norte, Alemberg e Roseane criaram alguns núcleos pelos quais todas as crianças passam: Memória, Identidade, Patrimônio, Mitologia, Arqueologia, Gestão Cultural, Meio Ambiente, Arte, Cidadania, Turismo Comunitário e Sustentabilidade.

A Casa foi crescendo junto com as crianças, ganhando novos espaços, como o teatro Violeta Arraes, que já recebeu inúmeros artistas da região e do Brasil e os laboratórios de rádio FM, TV, internet e uma editora para a produção de materiais educativos.

Museu do couro: a valorização da memória viva

Também foi inaugurado em Nova Olinda, em dezembro de 2014, o Museu do Couro, um antigo sonho do grande mestre do couro Espedito Seleiro que, em parceria com a Casa Grande, se tornou realidade. Para valorizr o trabalho que é hoje um dos grandes artistas vivos do Nordeste, Alemberg reformou uma casa que fica ao lado da oficina do artesão e deu vida a uma parte da história do couro, das boiadas e vaquejadas do sertão, a partir da própria história de seu Espedito contadas pelas crianças em um documentário sobreo mestre. Hoje, omuseu reúne fotografias, ferramentas antigas e algumas peças, como a sandália de Lampião, feita pelo pai de seu Espedito, Raimundo, o primeiro baú confeccionado por seu Espedito, quando criança e a famosa sandália que o artesão criou para Alemberg que encomendou dele uma no modelo da que o Lampião usava.

Seu Espedito, nascido em 1939, no sertão dos Inhamuns, filho e neto de vaqueiros e seleiros, se mudou para Nova Olinda ainda quando criança, fugindo com sua família da seca que castigava sua terra. Seguiu os passos de seu pai, na lida com o couro e inspirado nos ciganos, vaqueiros e cangaceiros, criou uma estética própria, investigou formas de tingir o couro com raízes e plantas da região e imprimiu novas formas e novos usos para a arte do couro que se difundiu pelo Brasil. Seu Espedito, assim, é conhecido como um grande responsável pela difusão do trabalho com o couro para além das fronteiras nordestinas.

Quando chegam turistas, estudantes e professores na Fundação Casa Grande, seu Espedito é um dos pontos de parada, assim como outros mestres da região que recebem com seus causos e sabedorias aqueles que chegam com abertura para ouvir e conhecer o Cariri profundo. Todas as ações, parcerias e projetos desenvolvidos pela Fundação Casa Grande, seguem o que Roseane chama de arqueologia inclusiva que “serve para desenvolver a comunidade. Então, a arqueologia, na Fundação Casa Grande, ela não é um fim em si mesma, apenas na sua produção científica. Mas ela é um processo que ela faz com que uma comunidade se desenvolva. Ela traz benefícios turísticos, sócio-econômicos, de formação cultural pra toda uma comunidade. Então esse é o perfil da arqueologia que nós queremos, que nós desejamos e que nós da Fundação Casa Grande nos empenhamos para desenvolver aqui na região do Cariri”. doutora, pela Universidade de Coimbra, em Portugal, onde apresentou a tese com o título “Arqueologia Social Inclusiva”, que aborda a arqueologia pelo aspecto humano.

Dessa forma, a Fundação Casa Grande conseguiu desenvolver um trabalho sólido que integra a arqueologia com a mitologia, colocando esses saberes e vestígios do antigo homem que ali vivia no presente das crianças e jovens que aprendem a olhar seu passado com orgulho e a se sentir pertencentes a uma cultura e uma história muito grande e rica. A possibilidade de um novo olhar sobre si mesmos que foge da imagem da seca e da miséria, trouxe para eles a confiança que precisavam para criar projetos de música, teatro, produção audiovisual, fotografia, turismo, entre tantos outros, com responsabilidade e sem perder nunca a alegria de poder viver a potência de ser criança. Essa mudança também tem grande impacto na forma como se relacionam com suas famílias, com a cidade e com os mestres do saber popular, como seu Espedito. Muitos jovens da Fundação trabalham no museu, recepcionando os visitantes que chegam, junto a outros estudantes das Faculdades do Crato, cidade vizinha.

Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.