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Carolê desenhando croche em Potengi, no Cariri do Ceará. crédito: Samuel Macedo

A menina rendeira no Cariri

Camila Fróis


Fotos: Samuel Macedo

Neta de crocheteira, artista visual, curiosa, alma de viajante. Carolê Marques é uma jovem carioca que compõe a equipe de estamparia no ateliê da empresaFarm. Lá, ela se dedica à missão de inventar moda carregada de brasilidade, cor, natureza tropical e design tupiniquim. Por isso, sempre que pode, Carolê escapa do ateliê para cair na estrada em busca de histórias, técnicas tradicionais, texturas e expressões da cultura popular em diferentes núcleos criativos do interior do País.

Trabalhando na linha artesanal da Farm, a designer desenha as tramas das rendas que são utilizadas nas peças da grife. È a partir desses desenhos que as rendeiras criam um trabalho personalizado para a marca. “Comecei então a me interessar pela questão da ancestralidade e da memória afetiva que está impregnada nesses trabalhos artesanais”, conta a artista.

Foi com o desejo de explorar essas memórias que ela se jogou pelos caminhos do Ceará, mais especificamente pelas estradas inspiradoras do Cariri – uma espécie de oásis verde no semiárido brasileiro. Em uma pequena expedição em 2015 atrás de causos, cores e histórias dos artistas populares do sertão, Carolê se juntou ao talentoso fotógrafo cearense Samuel Macedo. Com passagem pela Fundação Casa Grande, uma escola de formação cultural para crianças e adolescentes de Nova Olinda (CE), ele se transformou em um guia/artista de olhar sensível para as coisas e pessoas do sertão onde nasceu. “Antes de vir, eu pensei: ‘eu quero ficar na companhia de alguém que trouxesse vivências e tivesse um olhar apurado para a arte”, conta Carolê. Samuel entrou para Fundação Casa Grande aos oito anos de idade, onde trabalhou com tv, rádio e fotografia. Hoje, ele realiza diferentes trabalhos de documentação pelo nordeste e foi indicado ao Prêmio Jabuti, maior prêmio da literatura brasileira, pelas imagens do livro “Terra de Cabinha”, que retrata a infância no Cariri.

O Cariri de Samuel e de muitos xilogravuristas, escultores e rendeiras autodidatas é conhecido pelas referências visuais de pinturas rupestres, pela fé inabalável dos devotos do Padre Cícero e por esse palavreado único que transforma menino em cabinha, mulher em cabocla,homem em “caba” ou “meu rei”.

Um canto do Brasil encantado ainda pela estética da civilização do couro estampada em gibões e sandálias multicoloridas do famoso mestre Espedito Seleiro, pela exclusividade da renda das artesãs de Santana do Cariri, ou pela força simbólica das esculturas dos discípulos do mestre Noza de Juazeiro, que talham na madeira, santos, bichos da caatinga e outras criações fantásticas que refletem o imaginário popular.

Menina Rendeira

Esse particular roteiro escolhido por Carolê não foi por acaso. Graduada em Desenho industrial pela UFRJ, ela, desde muito nova, se interessava mesmo era pelas artes visuais e pelos fazeres manuais. “Eu ficava admirada observando a minha avó fazendo crochê, decorando os pontos e laços que ela fazia”.

Foi em homenagem a ela que a designer começou o projeto #MeninaRendeira. A proposta é realizar intervenções artísticas durante suas viagens, quando as rendas das suas pesquisas e desenhos vão parar em grandes paredes de casas, associações e outros espaços através de pinturas que chamam atenção de transeuntes e enchem os moradores de autoestima. “A pintura em escala com traços de síntese traz um olhar mais contemporâneo para as técnicas tradicionais como a renda. Gosto de usar essas intervenções para valorizar as identidades regionais e despertar o interesse para a beleza desses trabalhos artesanais”, explica a artista.

Para o fotógrafo Samuel, a interação de designers, estilistas e artistas visuais que têm desembarcado no sertão pra conhecer os mestres da cultura popular local é muito positiva. “Esses mestres têm muito conhecimento para compartilhar. A linguagem deles que já foi considerada rústica e relegada a um saber simplesmente local por muito tempol hoje tem se tornado rerência para grandes marcas no mundo da moda, da arquitetura e das artes. Isso pode estimular um interesse dos jovens locais em se envolver mais nessas produções artísticas e artesanais”, avalia Samuel.

“Desenhar rendas é uma paixão que foi crescendo quando comecei a me aprofundar em pesquisas e viagens pelo Nordeste Brasileiro. O Brasil se transformou no meu objeto de estudo e a renda também. A rendeira virou minha musa inspiradora”, conta Carolê.

Antes de desembarcar na Paraíba, Carolê já havia passado por Itaparica (PE) onde, ela resolveu pintar, pela primeira vez, uma trama de crochê em uma casa.

Durante as suas pesquisas no Cariri, três paredes ganharam os contornos de Carolê: uma casa na estrada entre Crato e Nova Olinda, a casa do Mestre Antônio da Rosa, em Santana do Cariri, e a ONG Beatos, no Crato. Segundo Carolê, em geral, quando ela propõe de pintar a casa das pessoas, elas têm certa resistência por conta da vergonha da construção ser de pau a pique ou ter um acabamento simples. “Depois do trabalho pronto os relatos são recompensadores. A pintura estimula um orgulho e um afeto pelo lugar e pela técnica que está ali ilustrada. Muita gente para pra fotografar e interagir com os moradores e isso gera troca interessantes”, conta Carolê.

Mais do que intervir nos espaços onde passa, a artista tenta investigar também as particularidades e potencialidades de cada trabalho artesanal. Em Santana do Cariri, por exemplo, as mulheres usam linhas mais grossas, próprias para o crochê, ou mesmo barbantes para fazer o bilro, criando um trabalho bem diferente das rendeiras do litoral. “O mais fascinante de conhecer a história e o modo de fazer dessas mulheres rendeiras é reparar como um trabalho feito com tanta resistência e força produz resultados tão delicados”, conta Carolê.

A designer que a maior valorização dos trabalhos manuais por parte dos consumidores, grandes estilistas e marcas nacionais já se reflete no modo que as rendeiras veem o próprio trabalho. “Hoje a gente já percebe que elas dão outro valor para suas criações, sabem cobrar preços justos e têm uma dignidade na maneira de se posicionar”, avalia.

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Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.