A reinvenção do ritual da cerâmica
Camila Fróis
“A cerâmica é uma poesia que se escreve com o barro”, afirma o artista, músico e cineasta Gilberto Jardineiro, com as mãos lambuzadas de argila no seu elegante ateliê com paredes de vidro e grandes janelas que deixam entrar o frescor da farta Mata Atlântica do quintal. Foi ali, no pé da Serra da Bocaina, mais especificamente na bucólica cidade de Cunha que ele e outros ceramistas de diferentes partes do Brasil, Portugal e Japão resolveram fincar raízes no final dos anos 70, liderando uma verdadeira revolução artística no destino que ficou por décadas esquecido no fim da antiga Estrada Real.
Organizados através de uma associação que ganhou da Prefeitura uma rústica oficina coletiva, eles se uniam para reinventar, com traços autorais, um dos saberes mais antigos do mundo – uma arte ancestral que expressa uma forma de se relacionar com a natureza e com o cotidiano.
Na cerâmica, desde a pré-história, os quatro elementos – terra, água, fogo e ar – se unem durante um ritual que vai da extração da argila da natureza à queima das peças. Em alguns casos, a temperatura dos fornos pode chegar a até 1.300 graus, como na cerâmica noborigama produzida por Alberto Jardineiro e outros artesãos de Cunha.
Seja no charmoso ateliê de Jardineiro no interior paulistano, ou entre os jovens artesãos que se inspiram nas pinturas rupestres do Parque da Serra da Capivara, no sertão do Piauí, a técnica da cerâmica tem ganhado contornos contemporâneos e adeptos de todo o Brasil nas últimas décadas. Cada grupo no seu próprio contexto e com seu estilo particular ajuda a manter viva a tradição que surgiu há cerca de 8 mil anos, quando o homem deixava a vida nômade para se fixar em determinadas regiões do mundo. Nessa época, foi a necessidade de utilizar recipientes para guardar sementes para a próxima safra e preparar seus alimentos que motivou a criação de objetos de barro – que, desde então, foram sendo aperfeiçoados a partir de diferentes métodos de modelagem da argila. Ao longo da história da humanidade, ela serviu, também, como elemento de troca entre povos e facilitou o intercâmbio e o comércio de produto entre tribos e clãs de todas as partes do globo. Hoje, a cerâmica é utensílio, expressão religiosa, elemento de design e manifestação artística.
A tradição indígena
Segundo a jornalista Andreia Rosa, autora do livro-reportagem “Barro e Fogo”, no Brasil, a tradição da cerâmica é longa e surgiu – como era de se imaginar – com os povos nativos. As várias nações indígenas existentes, do Xingu ao Tapajós, entre tantas outras regiões do país, produziram uma cerâmica de alta qualidade com particularidades de cada etnia que representavam bichos, deuses, símbolos sagrados e personagens estilizados nas peças com grafismos próprios.
Para o pesquisador Jean-Jacques Vidal, pós-doutor em Artes Visuais pela UNESP, nas culturas indígenas esse tipo de arte vai além da dimensão material. “È uma atividade que se insere em um universo maior, que inclui as relações sociais, a relação com a natureza e com a sobrenatureza”, avalia.
Entre os índios suruí, por exemplo, são as mulheres que se embrenham na mata para retirar a casca das árvores para a queima, além da extração da argila, que depois é sovada até ficar no ponto de preparo. Para Vidal, de forma geral, o resultado dessa arte se manifesta na alegria doméstica utilizando as cerâmicas para comer, beber e festejar.
Os caprichos do fogo
Hoje, a cerâmica deixou de ser instrumento para a celebração e se tornou o próprio motivo da festa. È o que acontece nos eventos de “Abertura dos Fornos” realizados regularmente em Cunha, quando os artesãos convidam o público para contemplar e festejar a última etapa de criação da cerâmica – a retirada das peças do forno de depois da última queima. Essas aberturas são acompanhadas por momentos de grande expectativa e suspense e significam uma verdadeira cerimônia, o reencontro do artista com sua criação após o breve intervalo em que o resultado de um longo trabalho foi submetido aos caprichos do fogo.
O ritual que transforma o barro em arte começa muito antes. O barro é recolhido no fundo dos mangues da região, socado no pilão, peneirado, modelado e é aí que o fogo entra em ação pela primeira vez. A peça modelada chamada biscoito segue para a primeira queima a 850ºC durante 24 horas. Uma vez resfriada, a cerâmica é retirada do forno e adquire revestimento ao ser imersa em esmaltes de cinzas de eucalipto e casca de arroz e de minerais decantados. Acontece então a segunda fornada a até 1.350ºC, quando o forno noborigama age fundindo argilas e cinzas contidas na emulsão do esmalte que cobre a cerâmica. Gilberto Jardineiro diz que é exatamente essa fundição que torna as peças inéditas. “Conforme as cinzas vão se solidificando na cerâmica vão surgindo desenhos incríveis.
São 48 horas nessa última queima, mas é necessário esperar o esfriamento das peças para abrir o forno – do contrário, as peças se quebram. No total, só depois de cinco dias os artistas conferem como ficaram os trabalhos, compartilhando a descoberta com os visitantes em animados coquetéis. “O resultado é sempre surpreendente”, diz Kimiko Suenaga, ceramista, esposa de Jardineiro. “No final, é o fogo que assina a peça”, ressalta a artista, fazendo referência a esses efeitos que a chama pode criar na tonalidade do esmalte. Pequenos defeitos podem ser qualidades. “Algumas imperfeições individualizam a peça, criam nuances, conferem beleza e originalidade”, arremata a ceramista.
Saiba mais
O Ateliê de Cerâmica Suenaga & Jardineiro, em Cunha, SP, a 227 quilômetros da capital do estado, realiza a abertura dos fornos para mostrar aos turistas todo o processo de elaboração da cerâmica. Oevento, que ocorre desde 1988, apresenta desde a extração da argila até a queima final. Asfornadasocorrem aos sábados, durante quatro eventos ao longo do ano. Acesse a página oficial paraa conferir as datas www.ateliesj.com.br
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Camila Fróis
Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.