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Arte dos Mestres e as fronteiras estéticas na cena contemporânea

Em entrevista exclusiva para o portal Artesol, a antropóloga Ilana Goldstein fala sobre como as fronteiras movediças da arte têm se reconfigurado e destaca o papel de eventos inovadores como o Arte dos mestres na ampliação do conhecimento e valorização de artistas dito populares

Camila Fróis

29 de agosto de 2024


 

Doutora em Antropologia Social e professora no Departamento de História de Arte da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, Ilana Goldstein compartilha, nesta entrevista, uma reflexão sobre um movimento da Antropologia, da Museologia e da História da Arte, que, paralelamente às novas práticas curatoriais, têm questionado as categoriais gerais de artes. Esse movimento surge da reivindicação de muitos pensadores, curadores e artistas que acreditam que o sistema de arte contemporâneo precisa problematizar os cânones históricos e epistemológicos europeus para possibilitar a abertura de espaços a outros saberes e potencialidades criativas que foram marginalizadas durante séculos.

A partir dessa discussão, ela contextualiza a importância do evento Arte dos Mestres, que, em sua segunda edição, transporta o público até uma experiência contemporânea e inovadora neste universo. Ao todo, a programação envolve uma Exposição-Feira com trabalhos de 15 mestres artesãos do país, uma série audiovisual sobre suas extraordinárias histórias, além de rodas de conversa com os próprios artistas e especialistas do universo da cultura popular e do design.

Com expografia arrojada, o evento pretende proporcionar um potente encontro não só com o trabalho, mas com os próprios artistas e suas subjetividades em meio a uma narrativa envolvente. Valoriza, assim, seus ofícios milenares, mas também suas perspectivas de mundo, proporcionando novas leituras sobre produções que conectam material e imaterial de forma emocionante – e que durante muito tempo só estavam acessíveis em museus etnográficos e folclóricos.

Camila Fróis: Você acredita que eventos como o Arte dos Mestres nos ajudam a transpor as fronteiras simbólicas estabelecidas entre artesanato, arte popular e arte contemporânea? Como?

Ilana Goldstein:  Sim, pelo menos em parte. Mostrar essas criações e esses saberes em meio a uma bela expografia, contextualizados com informações precisas certamente contribui para sua valorização. Reunir peças de todo o país em um mesmo espaço permite notar a diversidade e a pujança dessa produção. Eventos assim tornam as chamadas artes populares acessíveis a um maior número de pessoas. Arte dos Mestres tem ainda o mérito de promover conversas e trocas com artistas e pesquisadores – o que é fundamental, pois o material e o imaterial são inseparáveis. Mas se acrescentei “em parte”, no começo da minha resposta, é porque as fronteiras e os preconceitos são antigos e arraigados. Seriam necessários muitos eventos, muitas ações educativas, mais políticas públicas e ações de combate às desigualdades e ao racismo para atenuá-los.  

O que é contemporâneo, na sua perspectiva? 

Essa não é uma resposta simples. Vejo algumas maneiras concomitantes de se referir à ideia de contemporâneo. Uma primeira, mais geral e imediata, é a cronológica, ou seja, refere-se a pensamentos e obras que existem na atualidade, no tempo presente. Outra concepção considera como arte contemporânea, ou antropologia contemporânea, aquilo que é fruto de uma ruptura com a tradição moderna. Se a antropologia moderna descobriu a pesquisa de campo como modo de se aproximar de outros povos, a antropologia contemporânea passou a questionar a autoridade do antropólogo ao representar os outros e a existência de outras formas de conhecimento além da acadêmica. Se a arte moderna realizou revoluções formais, saindo para fora das molduras, testando novos materiais e incorporando objetos cotidianos na arte, a arte contemporânea colocou em xeque as próprias definições de arte e artista. Estou simplificando muito os processos, para caber numa resposta de poucas linhas, mas essa segunda acepção de contemporânea tem a ver com ir além do moderno, propor rupturas mais radicais.

Agora, nem sempre o que é contemporâneo cronologicamente é contemporâneo em termos de proposta e poética. Pode acontecer de uma obra de literatura, música ou ciência produzida no século XXI estar mais próxima a convenções e tendências de décadas anteriores. Ao mesmo tempo, temos Marcel Duchamp que, 100 anos atrás, fazia algo super contemporâneo. É interessante que um dos pontos mais discutidos pelos artistas contemporâneos, que é a aproximação entre arte e vida, muitas vezes pode ser observada nas artes indígenas e nas artes ditas populares. 

Como você vê a realização de um evento dedicado aos mestres artesãos brasileiros acontecendo paralelamente à SP–Arte, um dos principais eventos de arte contemporânea do país? 

Os mestres artesãos brasileiros querem e merecem reconhecimento e uma maior penetração no mercado. Organizar um evento desse porte paralelo à SP–Arte é uma aposta interessante. Só fico me perguntando se um dia os dois espaços poderiam se fundir… Também me pergunto se um mestre tradicional ou periférico que queira vir à SP–Arte conseguirá arcar com o valor da entrada e do transporte. Como mencionei na primeira resposta, há tensões sociais que não desaparecem num passe de mágica, mas é claro que devemos fazer o máximo para tornar as fronteiras menos impermeáveis.

Na sua perspectiva, o que significa decolonizar o universo das artes? 

Não costumo trabalhar com a teoria decolonial propriamente dita, mas sou formada em uma tradição disciplinar – as Ciências Sociais, em especial a Antropologia – que vem problematizando o monopólio do discurso científico e a hegemonia da visão de mundo Ocidental há algum tempo. Creio que a discussão decolonial tem pontos de contato com essa problematização. No universo das artes, talvez um exemplo de tentativa de decolonização, no Brasil seja a emergência de artistas e curadores indígenas no circuito comercial e expositivo, especialmente a partir de 2013. Porém, o reconhecimento da pluralidade ainda me parece mais discursivo do que estrutural. Parte da programação das instituições tornou-se mais inclusiva, mas, via de regra, o mesmo não ocorre com suas instâncias decisórias. Tampouco se consolidaram novos mecanismos de legitimação artística. A arte global pode até abranger uma variedade maior de trabalhos, linguagens, nacionalidades e etnias do que a arte moderna, mas continua sendo avaliada e precificada majoritariamente pelos mesmos agentes. O próximo passo seria diversificar o perfil das pessoas e instituições com poder para reconhecer, validar e valorizar as artes.

O que a curadoria do evento Arte dos Mestres tem a revelar para o Brasil? 

As escolhas curatoriais de Arte dos Mestres, em 2024, me parecem acertadas por ao menos três motivos: a variedade de tipologias e suportes selecionados, que ajudam a quebrar clichês e dão um panorama da diversidade da produção popular; a combinação de mestres mais conhecidos com criadores menos famosos em São Paulo, fazendo com que o caráter de documentação e memória se alie à descoberta e à surpresa; e a presença de conjuntos que são fruto da transmissão se saberes e fazeres de uma geração a outra.

Feira-Exposição
Arte dos Mestres 2024


Serviço

De 28 de agosto a 1º de setembro

Visitação: 28.08 das 13h às 19h
de 29.08 a 01.09 das 10h às 19h

Local: STATE – Avenida Manuel Bandeira, 360
Vila Leopoldina, São Paulo/SP

Entrada gratuita

Para obter seus ingressos gratuitos, mais informações e a programação completa, acesse www.artedosmestres.org.br