Artesanato e território
A jornalista e pesquisadora Adélia Borges fala sobre referências no Brasil e no exterior em que a produção artesanal tem se transformando em uma alternativa para a proteção da sociobiodiversidade, a partir da valorização de matérias-primas que correm o risco de desaparecer com a industrialização agrícola.
Adélia borges
Iniciativas recentes do cenário internacional vêm evidenciando cada vez mais a forte conexão entre o artesanato e o território em que ele é feito. Os programas relacionados à criação e desenvolvimento de objetos têm levado em conta que esses temas existem em profunda relação com o cenário econômico, social e cultural de uma determinada comunidade, não podendo ser considerados em separado. Particularmente importantes para o artesanato são os modelos adotados na produção rural.
A mecanização recente da colheita do milho na região de Olímpia, interior de São Paulo, vem gerando grande dificuldade para a obtenção da matéria-prima, pois as máquinas trituram a palha. Isso ameaça a sobrevivência do trançado estrela, técnica única no país. O complexo e demorado trabalho de dobraduras, que lembra um origami, é um dos patrimônios do artesanato paulista. Olímpia preza a sua história e a memória de sua cultura. A lei federal nº 13.566, de 2017, conferiu ao município o título de Capital Nacional do Folclore. Ali se buscam hoje alternativas de fibras vegetais para continuar o trançado.
Em compensação, em outras regiões do Estado o artesanato em palha de milho está florescendo por estar associado a práticas agrícolas sustentáveis. Dois exemplos brilharam na exposição EntreMeadas, realizada pelo Sesc São Paulo com minha curadoria. [1]
O primeiro é o de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, cujo Sistema Agrícola Tradicional (SAT) foi reconhecido em 2018 como Patrimônio Imaterial Brasileiro e incluído no Livro dos saberes, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Por três séculos os quilombolas vêm desenvolvendo práticas agrícolas que conservam os nutrientes do solo, cultivando alimentos em ambiente florestal. A prática inclui a rotatividade dos plantios, entre outras medidas, e gera matérias-primas como a fibra de bananeira e a palha de milho que vêm sendo muito bem exploradas na produção artesanal.
Em Guapiara, na região de Sorocaba, o trabalho das associadas da Arte e Vida – Associação de Mulheres Artesãs de Guapiara – se inicia no cultivo de espécies nativas de milhos em pequenas propriedades rurais familiares. Em 2017, a associação foi finalista na categoria agroecologia no Prêmio da Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, que reconhece tecnologias inovadoras de impacto social. Em 2019, receberam o atestado de que as espécies que plantam não têm contaminação de transgênicos, assegurado por técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
A variedade das colorações das palhas, em gradações do bege ao marrom e ainda de roxos – vem sendo bem explorada nos objetos feitos por esses grupos. Outra iniciativa digna de nota de preservação de bancos genéticos de plantas é do povo indígena Guarani Mbya da terra indígena Tenondé Porã, no bairro de Parelheiros, em pleno município de São Paulo. Esforço grande tem sido feito para recuperar as cerca de 50 variedades de batatas-doces que havia originalmente no território. E ali se cultivam hoje sete tipos de milho: espigas amarelas salpicadas de grandes grãos roxos, espigas pequeninas avermelhadas, outras quase negras.
“Sin maiz no hay país. Sem milho não há país”
O milho é muito importante na cultura alimentar do mundo. E adquire uma relevância especial no México. Nunca me esqueço da frase que vi estampada numa das paredes do Museu de Arte Popular da Cidade do México, quando o visitei há duas décadas: “Sin maiz no hay pais” (maiz é milho em espanhol). O designer Fernando Laposse desenvolveu um projeto que vem angariando importantes prêmios internacionais. Ele trabalha desde 2016 com um grupo de famílias da comunidade de Tonahuixtla, de indígenas Mixtec, no sudoeste do México. A chegada da agricultura industrial à região e a falta de oportunidades de emprego causaram uma migração em massa, a erosão da terra e a perda de sementes nativas. Tenta-se agora retornar aos métodos agrícolas tradicionais e garantir a diversidade cromática das palhas de milho de espécies nativas do México. Fernando Laposse desenvolveu um folheado feito de palha de milho, batizado de Totomoxtle. A palha é retirada, passada e colada sobre uma pasta de papel ou suporte têxtil. Neste ponto, o material está pronto para ser cortado à mão ou a laser em pequenos pedaços que são remontados para fazer marchetaria para móveis ou superfícies interiores. [2]
Importante lembrar que há hoje no Brasil várias iniciativas também no campo gastronômico. Entre elas, as produções de pimenta Baniwa e de chocolate Yanomami, incentivadas pelo Instituto Socioambiental (ISA), são dignas de respeito e aplauso.
Termino com um último exemplo. A organização não governamental inglesa Sustainable Fibre Alliance (SFA) mostrou na Bienal de Design de Londres em 2018 um lindo trabalho ligado à produção de caxemira (mais conhecida no Brasil como cashmere) na Mongólia. O texto expositivo lembrava que essa produção, praticada historicamente por populações nômades, está em risco devido às atuais práticas de pastoreio para caprinos e aos efeitos do aquecimento global. “A desertificação, a mudança climática e as dificuldades econômicas estão levando os pastores para as cidades ou para aumentar seus rebanhos caprinos de caxemira para níveis insustentáveis. Nesse ciclo vicioso, o sobre pastoreio é uma das principais causas da degradação das pastagens, causando deterioração da vegetação e erosão dos solos. O aumento da desertificação torna as pessoas e o meio ambiente vulneráveis a secas e inundações, e ameaça a saúde e a sobrevivência tanto da pecuária quanto da vida selvagem. Os impactos sociais e ambientais da produção de cashmere não gerenciada podem ser enormes. O tamanho dos rebanhos está aumentando dramaticamente e a mudança climática está afetando a capacidade das pastagens de apoiar os rebanhos, resultando na degradação das pastagens e, eventualmente, na desertificação. Os pastores estão deixando cada vez mais a pastagem para viver nas cidades onde a vida também é muito difícil e os problemas sociais são abundantes.”
Atuei como jurada na Bienal e pude ver que a iniciativa da SFA não se restringe ao desenvolvimento de produtos com esse que é um dos têxteis naturais mais luxuosos e caros, por sua delicadeza e conforto no uso. A instituição articula ações ao longo de toda a cadeia de valor da caxemira, incluindo cooperativas de pastores; fabricantes; ONGs; iniciativas de desenvolvimento; governos; designers de moda; marcas globais, varejistas e, finalmente, os clientes. “Trabalhamos para reunir todas as partes interessadas para apoiar uma cadeia de fornecimento sustentável e competitiva”, afirmam.
A frase poderia servir de mote e inspiração para a compreensão da amplitude das cadeias envolvidas na produção artesanal. Quando falamos de objetos e alimentos artesanais, estamos falando de um universo muito mais amplo – o que está em jogo é o mundo que queremos legar a nossos descendentes.
Adélia borges
Adélia Borges é crítica, historiadora de design e curadora independente. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo em 1973, tem textos publicados em sete línguas e é autora ou co-autora de 34 livros. Palestrante frequente, já se apresentou em 22 países. Como curadora, fez exposições em várias instituições do Brasil e do exterior. Desde 2016 é consultora curatorial do MASP Loja. Integra também o Conselho técnico consultivo da Artesol. www.adeliaborges.com