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Brincar de criar: o processo de aprendizagem em comunidades de artesãos

Raquel Lara Rezende


No seio da cultura popular, no cotidiano da comunidade, os silêncios, os gestos, os cantos, o jeito de fazer cada coisa tem um sentido quase ritualístico. A forma de se sentar na calçada para bordar, de jogar a rede no rio, de se fiar o algodão… todos esses conhecimentos que fazem parte da vida social, cultural e econômica da comunidade possuem um gestual, uma presença que é como um laço que une as diferentes gerações. A transmissão de saber nesse universo acontece por meio da oralidade em seu sentido mais amplo, se distanciando, nesse aspecto, do conceito da educação formal, associada ao espaço físico das escolas e à estrutura hierárquica onde o professor exerce o papel de educador. Esta é apenas uma possibilidade de processo educativo, mas que foi assumida nos últimos séculos, pelas sociedades ocidentalizadas, como a forma mais efetiva para transmissão de saberes.

Existem, porém, muitas outras estratégias de aprendizado que, no campo da Educação, são chamadas de processos educativos não formais, especialmente na cultura popular e nas comunidades de artesãos. Nesses núcleos criativos, o caderno, o lápis e a carteira dão lugar aos mais diversos materiais, tão múltiplos como o próprio universo da cultura tradicional.

No Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, por exemplo, a argila, o oleio, e a pena de galinha são materiais imprescindíveis para se aprender a o ritual da cerâmica, à beira de um forno à lenha, onde o barro é lentamente transformado em arte. Já em Entremontes, às margens alagoanas do Rio São Francisco, como em muitas outras comunidades que vivem do bordado, o bastidor, o tecido, a agulha e a linha fazem parte do cotidiano de quem quer aprender uma profissão já quase esquecida nos grandes centros urbanos, mas que volta a ser valorizada em um momento em que o feito à mão desperta o desejo de quem quer consumir roupas com propósito e história.

Em inúmeras outras comunidades tradicionais, indígenas, ribeirinhas e quilombolas é com as palhas e as fibras que crianças e adolescentes aprendem brincando a arte de trançar e assim acontece com outras técnicas, materiais e tradições.

Além dos materiais, existem outras diferenças que marcam o aprendizado nesses contextos. O mestre, por exemplo, é uma pessoa que recebe o título não de uma universidade, mas da própria comunidade em reconhecimento ao seu papel de transmissor dos saberes que – de diferentes formas – estruturam a vida coletiva. Ou seja, o mestre artesão é alguém que domina com precisão uma técnica ( seja o entalhe, a cerâmica ou o bordado, por exemplo) e que demonstra um forte sentido de pertencimento de grupo e de coletividade, quando compartilha sua maior riqueza: seu “saber fazer” mergulhado na identidade cultural do seu território criativo.

Como se aprende?

Na maioria das vezes, porém, o conhecimento é dividido no próprio seio familiar. “Quando eu era pequena, minha mãe fazia muito bordado. Ainda faz porque ela é uma das mais velhas da Associação. E a gente queria um bastidorzinho pra bordar também, como brincadeira. Eu queria porque queria bordar. Quando eu não queria brincar, ficava do lado dela pra aprender”, conta Edna Bezerra da Silva, bordadeira da Associação Companhia de Bordados de Entremontes, no sertão de Alagoas.

A doutora em Educação pela UFJF, Gisela Marques Pelizzone, explica que o processo de aprendizagem nesses núcleos é natural. “As crianças vão brincando de fazer aquilo pela repetição, experimentando o que acabaram de ver, copiando minuciosamente o jeito de fazer. Elas vivem isso no corpo, na experiência, desde pequenininhas”, comenta.

È o que constatamos ao conversar com diferentes artesãos de técnicas e de regiões diversas do Brasil, como Adriana Gomes Xavier, ceramista do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais:

“O artesanato é uma tradição da minha família, tanto da família da minha mãe como do meu pai, mas eu aprendi com minha mãe, porque desde que eu nasci eu vi ela trabalhar, né? Porque naquela época a atividade do artesanato era assim, pras mulheres da região, era a única atividade que tinha. E isso veio da minha avó, da minha bisavó (…) então, desde pequena eu já fui assistindo a minha mãe trabalhar, vendo todos os processos e, com 12 anos, eu já comecei a fazer algumas pecinhas, com a minha mãe me ensinando, me incentivando, me ajudando a fazer cada vez melhor”.

Seja com um mestre, seja com a própria família, esse processo de aprendizado a partir da observação e da repetição, é possível porque, na comunidade, como explica Gisela Pelizzone, não existe separação entre o mundo adulto do trabalho e o mundo da criança. “O trabalho é feito no ambiente de casa, então a criança brinca com os retalhos, com o barro que faz parte daquele cotidiano”. Essa realidade é diferente da sociedade urbanizada, onde o trabalho é muito intelectualizado e separado da rotina familiar. Faz sentido que, nesse contexto, a própria educação fique mais restrita a um ambiente exterior à casa e também seja mais intelectualizada.

O fazer manual em uma era tecnológica

A contemporaneidade tem trazido muitos desafios para os contextos comunitários e tradicionais, principalmente em relação aos valores sociais e aos costumes que impactam na questão geracional, já que – por diferentes motivos – a juventude, muitas vezes, se distancia das suas próprias raízes. Perde-se, assim, o link com esse patrimônio imaterial dos mestres que é um conhecimento intuitivo, autoral e mergulhado na identidade cultural brasileira. Para a bordadeira Edna, as rápidas mudanças no âmbito da comunicação, com o acesso à internet, através dos aparelhos celulares, têm tido sensível impacto nessa relação dos artesãos com as gerações mais novas.

“O dia a dia da criança já tá na mente. Acorda, dorme e acorda com o celular: whatsapp, joguinho, desenho animado. Toda criança hoje em dia tem celular na mão. E quando ela tá com celular, ela esquece do mundo”, avalia Edna.

Uma solução encontrada na comunidade para lidar com esse contexto aconteceu em parceria com os designers Humberto e Fernando Campana (do Instituto Campana). Eles idealizaram uma escola na sede da Associação Companhia de Bordados, onde as artesãs ensinam as técnicas do redendê, crochê e tricô. A turma reúne desde crianças de 4 anos até adultos de 72 anos.

A proposta de incentivar o interesse dos mais novos pelo artesanato passa pelo medo do fim da tradição e tudo que ela carrega; memórias, espontaneidade e capacidade criativa. Ariele de Jesus Silva, de vinte anos, rendeira de Divina Pastora (SE) conta que foi com o tempo que compreendeu a importância de aprender a técnica da renda irlandesa. Hoje, a jovem é uma das poucas integrantes da associação local que riscam o desenho sobre o qual as artesãs rendam. Essa era uma atividade feita por apenas uma artesã, a dona Alzira, de oitenta e d ois anos. Um dia, a mãe de Ariele pediu a ela pra tirar um risco e vendo que ela tinha jeito, a incentivou a seguir desenhando.

“O que me motivou foi a história da renda, pela importância que ela tem para a identidade do nosso povo. Eu não vejo apenas como uma forma de ganhar um dinheiro extra, mas também como uma forma de expressão de um povo, da sua cultura, e da sua história”.

O diálogo entre a escola e a cultura popular

Ariele também tem seguido o caminho da educação, cursando Pedagogia. Em 2018 trabalhou em uma escola, dando oficinas de renda irlandesa para as crianças, provando que, quando a educação formal abre espaços de diálogo com a cultura popular, se abrem outras possibilidades de nutrição e de fortalecimento de ambos os saberes.

Essa aproximação entre o artesanato e a escola acontece também através de projetos institucionais como o Arte na Escola que tem como missão incentivar o ensino da Arte por meio de formação contínua do professor do ensino básico. São 50 polos presentes em 22 Estados brasileiros, unidos por um ideal: melhorar o ensino da arte no país. Recentemente o projeto tem se empenhado em levar conteúdo relacionado à arte popular para que os professores dos níveis infantil, fundamental e médio possam repassar aos jovens, sempre estimulando um olhar atento para a produção do seu entorno.

Outros projetos focam na transmissão direta de conhecimento prático do artesão para alunos das escolas. No projeto “Ampliando Saberes”, que acontece em comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco e Alagoas artistas locais ministram oficinas de bordado, entalhe e cerâmica para crianças, adolescentes e jovens da rede pública de ensino.“É muito importante que as novas gerações não percam essas tradições e que enxerguem um tipo de arte comercializável que pode ajudar a fomentar a economia da região e o sustento de suas famílias. Essas comunidades precisam se apropriar da arte que corre naturalmente por eles e começarem a ter o sentimento de pertencimento”, explica Maria Amélia, idealizadora da iniciativa. Outra ação parecida é o projetoMestre dos Saberes. Através dele,mestres da cultura popular de Pernambuco ministraram em 2018 três meses de oficinas para alunos da rede pública, ensinando, na prática, diversas técnicas artísticas como a cerâmica, o trançado, a xilogravura, entre outras. Inserir os mestres nos processos educacionais brasileiros é uma grande conquista do projeto, já que, além de difusão de conhecimento, ele promove a valorização da pessoa do mestre, que muitas vezes não tem instrução formal. Para o idealizador da iniciativa, Afonso Oliveira, porém, esse saber tradicional é fundamental para o desenvolvimento da sociedade, porque não existe inovação sem memória”. Segundo ele, olhar para o passado, para a nossa história e para a nossa memória é uma estratégia indispensável para quem quer se renovar e construir um olhar autêntico e inovador para o futuro.

Por isso, enquanto uma sociedade marcada pela diversidade cultural, quanto mais os saberes tradicionais forem reconhecidos como tais nos espaços institucionalizados, mais fortalecido culturalmente o Brasil será.

Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.