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Brinquedos de miriti: patrimônio imaterial, biodiversidade amazônica e fé

Com a palmeira típica de áreas alagadiças da Amazônia, os artesãos de Abaetetuba dão formas ao imaginário ligado à maior floresta tropical do mundo. A cada ano, produção dos artesãos colore as ruas da capital paraense no Círio de Nazaré, uma espécie de apoteose epifânica

Camila Pinheiro


Cidade antiga do Pará, fundada no século 18, Abaetetuba fica à margem direita do rio Tocantins, em frente à baía de Marapatá. Com mais de 50 ilhas em sua extensão, está imersa na Floresta Amazônica e é berço abundante de um povo bom e brincante. Abaetetuba é a Capital Mundial do Brinquedo de Miriti, um ofício que ganhou título de Patrimônio Cultural Imaterial do Estado. Os artefatos entalhados que colorem as ruas paraenses há séculos são reflexo do universo ribeirinho, e retratam mitos, flora e fauna, trabalho, relações cotidianas, festejos populares e manifestações culturais locais.

Os artefatos entalhados que colorem as ruas paraenses há séculos são reflexo do universo ribeirinho, e retratam mitos, flora e fauna, trabalho, relações cotidianas, festejos populares e manifestações culturais locais.A origem histórica do brinquedo de miriti é incerta, mas a tradição da oralidade nos remonta aos rios e igarapés da região, áreas alagadiças onde se desenvolvem os miritizais, desde tempos imemoriais. Conta-se que os brinquedos foram criados pelas próprias crianças ribeirinhas do território ao observarem os restos da leve bucha vegetal da palmeira miriti – também batizada de ‘árvore santa’ – flutuando nas águas, após a retirada da tala para a construção de objetos utilitários da época. Os pequenos criadores construíam, dali em diante, seus próprios brinquedos-natureza, a partir daquele material macio de latente intimidade com o universo lúdico infantil. E se tornou um símbolo da cultura regional, depois de gerações e gerações de artesãos repetirem prática e palavra.

O reconhecimento oficial dos brinquedos, porém, se dá com o Círio de Nazaré – uma espécie de ‘apoteose epifânica’ em devoção à Nossa Senhora de Nazaré, padroeira dos paraenses. Foi no ano de 1793, durante o primeiro Círio registrado, que se pressupôs as peças apareceram pela primeira vez na festa através da figura do Girandeiro: um artesão-vendedor que expõe os brinquedos na girândola, estrutura de 2 metros em formato de cruz com braço duplo, também feita do mesmo material, onde penduram dezenas de brinquedos prontos para cair nas mãos de crianças e adultos, turistas e colecionadores, formando um painel ambulante de grande beleza visual. A tradição se mantém viva ainda hoje, séculos depois. E, quando criador e criação coexistem, artista e arte se fundem na própria identidade: o Girandeiro virou também brinquedo, uma representação em miniatura do próprio ofício do saber-fazer-vender, compondo uma coleção de signos.

Os objetos, além de expostos e comercializados durante o Círio, também marcam presença simbólica durante a romaria como um elemento-ritual intrínseco à fé. Casas, barcos, diplomas, órgãos do corpo humano e toda sorte de imagens esculpidas em miriti são carregadas durante a procissão como uma espécie de ex-voto: um agradecimento e reconhecimento às graças alcançadas, em promessa à ‘Nazinha’, como é chamada carinhosamente a padroeira pelos paraenses. Uma das maiores procissões culturais-religiosas do Brasil e do mundo, o Círio foi intitulado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, e se repete todo mês de outubro na capital. Em 2018, foi a minha vez de me juntar aos mais de 1 milhão de fiéis em Belém do Pará.

Outra inesquecível manifestação cultural paraense onde vivenciei o miriti ocupando posição de destaque por lá é o Arraial da Pavulagem. Criado em 1987, o grupo segue um repertório com ritmos regionais como o boi, carimbó, xote, e toadas de cortejos tradicionais. Foi consagrado como Patrimônio Cultural do Estado e tem este nome derivado de “arraial”: local onde se realizam as festividades dos santos, e de “pavulagem”: neologismo originário de pavão, que na linguagem popular representa “o que gosta de aparecer”. O Arrastão da Cobra Grande, um dos maiores cortejos do Arraial da Pavulagem, acontece às vésperas do Círio de Nazaré, e seus brincantes carregam imensos e coloridos barcos e cobras feitos de miriti, homenageando as criações de Abaetetuba.

Dessa forma, o miriti da Amazônia demonstra sua pluridimensão de funções socioculturais – educativa, sagrada, estética e artística – uma vez que o brinquedo pode cumprir seu papel original – lúdico e pedagógico – perante às infâncias brasileiras, em geral massificadas no plástico, eletrônicos e estimuladas por referências importadas e totalmente desassociadas de suas raízes culturais. Mas também conquistou importante espaço com outros públicos, apaixonados pelo artesanato tradicional brasileiro. Ainda acredito que o material percorra um longo caminho de descobertas em si mesmo, com potencial para criações e produções diversas como: o papel a partir de seus resíduos, embalagens sustentáveis, cenografias e estruturas, insumo de design, decoração e infinitas possibilidades estéticas.

“O brinquedo em si não tem valor. Valioso é o que as pessoas fazem com ele: brincar.” me presenteia Valdeli Costa, mestre artesão, liderança e referência abaetetubense.

Ele afirma orgulhoso que, depois de tantos anos de trabalho pesado, hoje é muito mais feliz, porque “trabalha brincando, com a leveza do miriti”.

Rede Artesol

Camila Pinheiro é uma comunicadora sensível à identidade brasileira. Divide sua atuação em três pilares inter-relacionados: a pesquisa cultural, o desenvolvimento social e a economia criativa. Idealizadora do projeto MÃOS – Movimento de Artesãs e Ofícios, Camila percorre comunidades rurais e urbanas que possuem o artesanato como patrimônio material e imaterial, co-criando possibilidades inclusivas com mulheres artesãs pelo país.