Bumba meu boi: o artesanato como manifestação simbólica na indumentária
Camila Pinheiro O Maranhão é representado por uma das maiores manifestações populares do Brasil, o Bumba-meu-boi. Devido à sua complexidade cultural, a tradição ultrapassa o ciclo junino e se mantém […]
Camila Pinheiro
O Maranhão é representado por uma das maiores manifestações populares do Brasil, o Bumba-meu-boi. Devido à sua complexidade cultural, a tradição ultrapassa o ciclo junino e se mantém presente no cotidiano do povo maranhense que, por instinto e devoção, não cansa de ecoar sua história. Metáfora que flutua entre lenda e realidade, o festejo apresenta por meio de uma rica linguagem narrativa e visual a impermanência de vida-morte-vida: o boi nasce, morre, e ressuscita como uma estrela, em noite de São João. Revelando o encontro do sagrado e profano, nessa miscigenação particular de nossa cultura, a brincadeira carrega uma grande carga simbólica na representação do próprio ciclo vital do universo, sendo reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil desde 2011 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), A festa é palco para personagens fruto do imaginário popular, entre seres humanos, animais e espirituais, que vivem num cenário performático cheio de cores, formas, sons e origens: Pai Chico, Mãe Catirina, Boi, Patrão, Vaqueiros, Índios, Índias, Caboclos e Cazumbás.
Em suas danças, são incorporados por corpos brincantes que ganham vida através de um figurino simbólico materializado graças ao saber-fazer de artesãos, sobretudo mulheres, que tecem, costuram, crochetam e bordam as inspirações desse rito-rítmico, fundamentados na devoção aos santos católicos, em divindades de cultos de matriz africana e na cosmogonia ancestral da região.
O Bumba-meu-boi do Maranhão se destaca dos festejos similares de outros estados do país por seu processo criativo compreender uma variedade de estilos, sotaques, grupos e, principalmente, estabelecer uma relação única e profunda entre fé, festa e arte, o que inclui uma indumentária própria que remete à sua natureza local.
A segunda pele artesanal do boi
Para a confecção das peças artesanais utilizadas no Bumba-meu-boi geralmente são utilizadas variadas técnicas e materiais, desde os de origem vegetal aos industrializados. As peças podem ser confeccionadas de algodão, couro, veludo, cetim, chitão e frequentemente são bordadas com missangas, canutilhos, penas e fitas. Para além do objetivo funcional do vestir ou estético do decorar esse tipo de indumentária dos festejos populares funciona principalmente como proteção: uma segunda pele que conecta quem cria com quem veste. Nos tempos primórdios do festejo, eram essas duas a mesma pessoa: o próprio brincante produzia sua fantasia. Por conta da grandiosidade que festa alcançou, hoje as companhias de dança contam com o esmero exclusivo de mãos e mentes de costureiras e artesãs. A indumentária – entre roupas, máscaras e ornamentos – é um dos elementos fundamentais para a identidade de uma festa popular e as mulheres colaboram ativamente para a salvaguarda da manifestação, como se elas carregassem a impressão digital de todo um povo.
Cultura e território maranhense
Uma reflexão importante desse processo é que, assim como o ciclo universal de vida-morte-vida representado pelo Boi, natureza e cultura também são elementos impermanentes. A impermanência tem sido, aliás, uma forte sensação e fonte de inspiração durante meus trabalhos ao lado de artesãs maranhenses. Às margens do Rio Preguiças, ao norte do Estado, está o município de Barreirinhas, porta de entrada dos Lençóis e também nossa morada durante os últimos trabalhos do MÃOS – Movimento de Artesãs e Ofícios, projeto de fortalecimento de mulheres artesãs que coordeno. Os Lençóis fazem parte de um território que marca nossos sentidos pelo improvável encontro entre dunas, lagoas e matas, distintas vegetações que se inter-relacionam com o poder do tempo: a cada sopro de vento, se revela uma nova cena a ser apreciada e guardada na memória, que involuntariamente mudará todo o tempo, o tempo todo.
Tão impermanente quanto as formas deste bioma é a cultura local: também resultado de encontros, a cultura de um povo é reflexo de manifestações coletivas que se movimentam entre a preservação da tradição e a aceitação do fluxo das mudanças que o tempo traz àquela sociedade.
E é nesta cidade do Maranhão onde vivem mulheres de fibra que mantêm uma forte relação – afetiva e produtiva – com natureza e cultura. Estes dois elementos se encontraram no tempo, nos papéis de ferramenta e finalidade.
São mulheres artesãs que, há muitas gerações, têm como ofício ancestral tecer a palha da mais abundante palmeira da região, o buriti, hoje têm o privilégio de ver essa fibra se tornar matéria-prima para vestir o mais tradicional festejo de seu Estado, o Bumba-meu-boi, especialmente da Companhia Barrica, sedeada na capital São Luís.
A companhia Barrica e a reinvenção da cultura popular
A Companhia Barrica trata-se não especificamente de um grupo tradicional de bumba-meu-boi, mas sim de um grupo parafolclórico que, criado nos anos 80, alia ritmos, sotaques e coreografias ao se utilizar das principais brincadeiras do Maranhão, incluindo os espetáculos junino, carnavalesco e natalino. Durante um trabalho do MÃOS com a Cooperativa de Artesãs de Barreirinhas (ARTECOOP), a Companhia Barrica foi mencionada pelas mulheres – junto a importantes fatos históricos, políticos e econômicos do Maranhão – como um dos principais marcos na linha do tempo de seu território.
Todos os anos, centenas de peças de fibra de buriti são crochetadas por elas especialmente para o festejo do Boi Barrica e depois finalizadas pelas bordadeiras da Companhia, na Casa Barrica, em São Luís. “Acredito que a ideia do grande mentor da Cia. Barrica, José Pereira Godão, de utilizar-se de uma fibra natural, a do buriti, para ser a base das indumentárias de certo só agregou valor à proposta do grupo em montar um espetáculo que apresenta a riqueza cultural e natural maranhense, valorizando assim o primoroso ofício das artesãs barreinhenses, responsáveis pela produção inicial da indumentária Barrica”, declara a bailarina Euricelia Coqueiro, que integra a companhia.
Nesse contexto, a Companhia Barrica simboliza a potência que a cultura carrega a partir de sua impermanência: o encontro da tradição à inovação, demonstrado aqui na escolha de unir os seculares bordados do Bumba-meu-boi à conterrânea, porém inesperada, superfície de crochê de buriti como uma nova alternativa têxtil para dar identidade própria à sua indumentária.
A planta é considerada uma das mais úteis da flora brasileira por se utilizar quase que a totalidade de seus componentes (tronco, fruto, polpa, folhas, espigas, broto, raízes, óleo e fibra – sendo esta última a principal matéria-prima do artesanato em todo o Estado do Maranhão). È também essencial fonte de renda para mulheres, fruto de autonomia feminina e, agora, também símbolo de uma das mais importantes manifestações culturais do Brasil.
Rede Artesol
Camila Pinheiro
Comunicadora sensível à identidade feminina brasileira. Divide sua atuação em três pilares inter-relacionados: a pesquisa cultural, o impacto social e a economia criativa. Idealizadora do projeto MÃOS – Movimento de Artesãs e Ofícios, percorre comunidades rurais e urbanas que possuem o artesanato como patrimônio material e imaterial, co-criando possibilidades inclusivas com mulheres artesãs pelo país.