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Buriti no artesanato é vereda no cerrado

Prenúncio de água no sertão, as veredas são símbolo de resistência, fonte de vida e um manancial de matéria-prima para os artesãos do noroeste mineiro que utilizam sua madeira com o cuidado máximo para que o sustento que vem delas não falte, mas sofrem com o avanço do agronegócio na região. A colaboradora da Rede Artesol, Raquel Lara Rezende, visitou os grupos da Central Veredas e traz uma provocação necessária sobre os modos de ocupação desse “sertão molhado”.

Raquel Lara Rezende


Fotos: Tom Alves, Francisco Moreira e Raquel Dias

“O buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo”.

Guimarães Rosa

Quem caminha pelo sertão mineiro costuma ouvir que onde tem buriti, tem água. As veredas e os buritizais são elementos centrais na vida dos veredeiros, os sertanejos do sertão molhado, como é conhecido o sertão do noroeste de Minas Gerais. A importância do ecossistema está na presença da água e do uso da palmeira do buriti. Buriti vem de “mbiriti”, de origem tupi-guarani, que significa “árvore da vida”. E não é a toa que essa palmeira é considerada árvore da vida por várias etnias indígenas. Dela tudo se aproveita, desde os frutos, ricos em vitaminas e de onde também é possível extrair o óleo vegetal, usado principalmente com fins medicinais, até as suas folhas, usadas no artesanato tradicional. Enquanto as folhas muito finas, conhecidas como a “seda” do buriti, são usadas por muitos artesãos para a costura e a tecelagem manual, as mais velhas – que já estão para ser descartadas pelas palmeiras – servem para a produção da fibra que se transforma em trançados diversos.Já a casca provê a a talinha, uma lasca parecida com a de bambu. O miolo, fibroso e leve, é lixado e transformado em brinquedo e caixas.

Esse conhecimento herdado de diferentes etnias indígenas está presente em comunidades e grupos que trabalham com o artesanato na Amazônia, no Pará, no Tocantins, no Maranhão, na Bahia, em Goiás e em Minas Gerais, principalmente, onde a presença do buriti, ou miriti, como é chamado no Norte, é marcante.

O manejo sustentável

A sustentabilidade é um conceito recente, mas presente há muito tempo nas práticas de manejo tradicionais. Para AlineOrtenblad, proprietária da marca Casa Berlarmina, que idealiza e produz objetos de decoração em parceria com os artesãos locais, o fazer artesanal é o ponto forte das comunidades que integram a Central Veredas e deve ser valorizado como um atividade sustentável capaz de preservar o bioma local. “Oprimeiro encontro entre a Casa Belarmina e a Central Veredas ocorreu em novembro de 2016 depois que descobrimos a cooperativa na Rede Artesol. Fomos até lá e conhecemos uma importante cultura que sobrevive geração após geração. As peças nascem das mãos dessas artesãs, que colhem sua matéria-prima nas palmeiras típicas das paisagens das Veredas a partir de uma extração realizada de maneira muito consciente”, avalia a empreendedora.

Quando coleta a planta, o artesão respeita o tempo de recuperação do buriti, quando retira as folhas novas, entende os ciclos reprodutivos da palmeira que depende das águas, responsáveis por transportar os frutos para outras margens, semeando buritis por onde correm. A prática do artesanato tradicional, assim, ensina como manejar corretamente o buriti e mostra que é possível usufruir dos recursos disponíveis no ecossistema, sem degradá-lo. A artesã Wanderlúcia Martins Soares, da Associação dos Artesãos de Urucuia, um dos grupos da Central Veredas, fala da importância do cuidado no manejo da palmeira para que a atividade artesanal continue sendo possível nas novas gerações.

“A importância da preservação das veredas para nós significa tudo porque sem as veredas, não tem artesanato. Por isso que a gente tira o material com bastante atenção, pra não prejudicar a vereda (…). Os “olho” do buriti (folha nova) que a gente pega, a gente tem que ter o maior cuidado porque a partir da hora que a gente tira, ele só vai recuperar a partir de 6 meses. Então, é por isso que a gente pode tirar somente a conta que a gente vai usar pra trabalhar, pra não ficar armazenando material em casa e as veredas sendo prejudicadas”.

As veredas e a água

A presença dos buritis não indica necessariamente a existência das veredas. Elas estão presentes no encontro dos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Trata-se de um território que se encontra à margem esquerda do Rio São Francisco, onde estão as principais fontes de abastecimento hídrico do rio. A palavra vereda significa, caminho, sentido muito empregado no sertão. Além disso, vereda na linguagem popular faz referência à nascente de rio ou buritizal. Juntando os dois sentidos, chega-se aos caminhos de água, uma imagem marcante da região de vereda.

No noroeste mineiro, as veredas são caracterizadas como de planalto, longos vales rasos a pouco profundos onde se encontram cursos d’água margeados por buritis. Junto às palmeiras estão, geralmente, campos de gramíneas que se desenvolvem em condições de umidade permanente. Nessa região, as folhas do buriti são utilizadas pelas comunidades tradicionais para a produção de esteiras, além de forrarem as casas e as camas. A presença do buriti é primordial tanto para o ecossistema das veredas, como para a vida dos veredeiros.

A raiz do buriti é uma raiz singular, pois é muito fina e se ramifica como nenhuma outra, chegando a quatro metros de profundidade. Suas pontas possuem o formato de um gancho que lhe permite exercer uma função parecida com a de um conta-gotas. Embaixo da terra, as raízes se entrelaçam com as dos outros buritis, formando assim um grande reservatório de água. Durante a estiagem, a água guardada é liberada aos poucos, o que mantém a vazão dos córregos, ribeirões e lagoas marginais, responsáveis por alimentar os grandes rios, como o Urucuia, Pardo e Pandeiros, que integram a bacia do São Francisco. As veredas cumprem, portanto, um papel central no sistema hidrográfico da região, com um grande coração que recebe as águas das chuvas, as armazena e bombeia de acordo com a necessidade..

A ameaça do do agronegócio

Justamente por se tratar de um ecossistema de planalto com vales de fácil acesso que são fontes abundantes de água, a região passou a ser, por um lado, cobiçada e ocupada por grandes fazendeiros de monocultura de soja, milho, capim e eucalipto, além dos criadores de gado nelore, o que tem provocado um quadro sério de degradação do ecossistema, com seu desmatamento e exploração hídrica da região sem o controle estatal adequado. Por outro lado, o território é também alvo da legislação de caráter conservacionista que entende que preservar significa isolar a área ambiental, proibindo a presença e a ação humanas.

Acontece que em muitas áreas de vereda encontram-se comunidades tradicionais que possuem práticas sociais próprias na interação com o ecossistema e que revelam o entendimento de integração com o meio que rompe com a ideia de separação do ser humano do meio ambiente, como é o caso dos artesãos de Urucuia. Assim, os veredeiros são parte do ecossistema das veredas e sua relação possui vínculos mediados por mitos e pela religiosidade popular.

A resistência das comunidades tradicionais

Damiana Campos é artista e educadora e trabalha no Instituto Cultural e Ambiental Rosa e Sertão, ONG situada em Chapada Gaúcha que realiza trabalhos voltados para a valorização dacultura e do meio ambiente. Ela fala da importância das comunidades tradicionais como pontos de resistência do ecossistema das veredas.

“Se eu pudesse extrair o sentimento veredeiro é se sentir parte, sabe? Quando a gente vai falar com um veredeiro ele não fica falando da beleza das veredas, porque eles são aquela beleza. E é tão bonito, tão bonito e sensível.E demanda cuidados que são dados por essas comunidades”, afirma Damiana. Em janeiro de 2018, uma lei que flexibiliza o corte do buriti foi sancionada pelo governador do estado de Minas Gerais, Fernando Pimentel. A nova Lei, nº 22.919/2018, altera a Lei nº 13.635, de 2000, que declarava o buriti de interesse comum e autorizava o corte apenas em casos de utilidade pública, permitindo a partir de sua vigência o corte do buriti no caso de interesse social – que inclui projetos de irrigação do setor privado e expansão imobiliária em áreas urbanas e rurais.

300 anos por 300 reais?

Segundo o jornalista Vinícius Carvalho, que trabalha no LEI.A, um observatório de leis projetos de lei, temas e discussões ambientais em Minas Gerais, a nova Lei aprovada com unanimidade preocupa pela ausência de planejamento ou pesquisas em torno do manejo do buriti. Segundo o projeto, o corte da palmeira seria compensado com o plantio de duas a cinco mudas de buriti, por cada pé derrubado, ou pelo recolhimento de R$ 325. A grande questão é o tempo necessário para o crescimento dessas novas árvores. Esse, inclusive, foi o tema escolhido como chamada na tentativa de sensibilização dos deputados em relação à derrubada do buriti: “300 anos por 300 reais?”.

A nova Lei deixa claro o interesse em facilitar a realização de empreendimentos do agronegócio e do setor imobiliário na região do noroeste mineiro, em detrimento de uma ocupação social, ambiental e culturalmente responsável que garanta os direitos das comunidades tradicionais de usufruto dos territórios que ocupam há muitos anos. Isso seria imprescindível para a preservação do ecossistema, tão primordial para a sustentação da bacia hidrográfica do Rio São Francisco.

A falta de pesquisas em torno da situação de preservação/degradação das veredas, bem como do impacto real do avanço do agronegócio na região tanto para o ecossistema das veredas, como para todo o semiárido mineiro, reafirma a urgência de revisão dos valores e interesses que pautam as políticas voltadas para o meio ambiente e também para as comunidades tradicionais. Nesse caso, o conhecido ditado casa de ferreiro, espeto de pau é pertinente para se pensar o contexto do sertão molhado, em que os veredeiros que conhecem profundamente os ciclos e ritmos das veredas, são os menos escutados no processo de proposição de políticas de proteção e de incentivo à ocupação agrícola.

Saiba mais:

Rede Artesol

Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.