Colecionadores de arte popular: a jornada em busca de talentos extraordinários em lugares comuns
Com forte impulso criativo, muitas vezes os artistas populares dão forma a mundos imaginários no intervalo do trabalho na lavoura, alheios ao valor simbólico e às complexas dinâmicas do mercado da arte. É nesse contexto que os colecionadores, com seu olhar aguçado, por vezes, fazem a mágica acontecer: colocam holofotes na sensibilidade extraordinária camuflada em…
Camila Fróis
Amanda Porfirio
06 de Março de 2024
Os colecionadores de arte fazem parte de um grupo social importante no mundo da arte. Pelo menos desde os anos 40, a prática de colecionismo no Brasil, motivada tanto por questões estéticas, políticas, sociais, comerciais, ou simplesmente pela paixão, contribuiu para o enriquecimento do patrimônio artístico do país, além de fomentar o mercado de arte e inpirar um novo olhar para essa produção antes estigmatizada.
Independente do propósito que os impele, esses colecionadores se embrenham em obstinadas jornadas rumo ao interior do Brasil em busca do realismo mágico e da criatividade extraordinária de artistas cotidianos. Muitos desses artistas são encontrados em meio a rotinas comuns, se alternando entre a despretensiosa produção criativa e o árduo trabalho no campo, alheios às referências estéticas, cânones artísticos do seu tempo ou às complexas dinâmicas de valoração do mercado da arte.
São lavradores, cortadores de cana, motoristas, carpineiros e tantos outros trabalhadores que, no intervalo do trabalho, conseguem dar forma ao imaginário, aos seus delírios, memórias e sonhos com uma criatividade e capacidade técnica que surpreende pelo pouco acesso à educação formal. Atuam em meio às oficinas dos pais, modelando o barro do quintal, ou imitando os pais artesãos dedicados a produções utilitárias. Quando são retiradas do contexto ordinário onde são produzidas, suas criações costumam ser reconhecidas como objetos de arte e design, que preservam dimensão simbólica, religiosa e lúdica. São peças esculpidas em madeira, moldadas em cerâmica ou tramadas com fibras naturais, muitas vezes em formatos de animais, exus, ou gente com feição do povo.
Elas podem ser decoradas com grafismos ou coloridas com pigmentos naturais e costumam misturar sátira, poesia, figuração, abstração e fé. De forma geral, elas espelham o universo cultural e a cosmologia dos grupos que os criam e acabam por conquistar o olhar atento dos colecionadores que garimpam sensibilidades fora do comum.
Identidade, estética e valor simbólico
Por isso, esses colecionadores exercem um importante papel na pesquisa e reconhecimento de autores que atuam inicialmente no anonimato com soluções plásticas autênticas, dando forma a objetos que funcionam como um referencial para a criação de uma identidade de um lugar, de um tempo, de um povo, de um país. Podem ser potes gigantes, cachorros esqueléticos, aves multicoloridas, figuras míticas ou antropomórficas, bancos-esculturas, painés bordados, mantos holísticos. Cada produção traz em si um sentido e um modo de interpretar o mundo.
Alguns desses colecionadores, depois de anos juntando pra si achados nobres, acabam se tornando galeristas, compartilhando com o mundo seu “infinito particular”. Passam a atuar então na construção de um mercado de arte que mantém viva a produção artística em diferentes comunidades e territórios criativos do país que enfrentam muitos desafios econômicos. Essa é uma das questões mais sensíveis no universo do colecionismo. Qual o valor econômico de uma produção simbólica em um contexto marcado pela escassez? Como dimensionar a importância do trabalho do colecionator – que atua nesse deslocamento de contexto de uma obra produzida no meio rural para os mais prestigiados circuitos de arte? Como fazer isso sem se furtar de valorizar a autoria e protagonismo dos artistas?
No artigo “As artes populares no mundo contemporâneo”, o antropólogo Artur Lins explica que são os museus e as exposições que possibilitam a legitimação das artes populares, negociando o valor simbólico de autenticidade e fomentando uma apreciação estética dos objetos. “A dinâmica relacional dos variados elos que compõem o circuito das artes populares – artistas, intermediários, instituições e consumidores – é responsável pela construção social de um gênero artístico de apreciação, marcado por um segmento econômico específico e por um cânone alternativo que disputa simbolicamente o reconhecimento oficial no campo das artes brasileiras. Essa dinâmica relacional, entretanto, não está isenta de conflitos. Assim como no alto segmento artístico observamos assimetrias entre os agentes, as relações desiguais de poder permeiam o circuito das artes populares. E nessas relações, como sabemos, é o artista popular que costuma ser o elo mais frágil. Por isso a importância de protegê-lo e valorizá-lo, principalmente através do reconhecimento de sua autoria e da remuneração justa do seu trabalho”, afirma o autor.
Apesar da complexidade relacionada à comercialização da arte oriunda de contextos ainda marginalizados, a valorização da produção plástica popular no Brasil passa, necessariamente, pelo trabalho de colecionadores, que, mesmo inicialmente dedicados à construção de acervos privados, passaram a contribuir para a circulação da arte popular em exposições nacionais e para a divulgação dessa produção na imprensa e no circuito comercial, o que é essencial para que a produção siga pulsante.
Histórias de vida entrelaçadas às obras de arte
Há quem tenha tido contato com a arte popular em rápidos momentos durante a vida e há aqueles que vivem dela e por ela. Do colecionador ao galerista, passando pelo curador, o que esses profissionais têm em comum é o encantamento. Nenhum deles passou indiferente pela capacidade criativa dos artistas que conheceu ao longo da vida.“Conhecermos as histórias, a obra, como ela é feita. A história do artista, o que ele passou. As cores, os traços, a pluralidade, os movimentos. A arte popular tem vários encantos. Ela toca”, afirma André Malta, hoje proprietário da Galeria Brasileirinho em Tiradentes (MG).
André Malta se apaixonou por arte popular desde a infância, entre uma andança e outra com o pai, que vendia artesanato brasileiro para algumas galerias. “Às vezes, meu pai me pegava, me levava na loja e fazia uma vendinha aqui, outra ali. E eu observava, né? Achava aquilo bonito”, conta. Como um assíduo e sensível observador, André passou a se interessar por aquele universo singular. Foi na juventude que aconteceu o seu grande encontro com a primeira obra que viria a selar o seu destino.
A família Julião, notadamente conhecida por produzir sofisticadas esculturas em madeira, fez parte do início da trajetória de André como colecionador. “Em meados dos anos 80, eu trabalhava no Banco Bamerindus e estava dando uma passeada no horário de almoço e me deparei com uma exposição da família Julião na sede da Vale do Rio Doce. A família Julião é daqui, de Minas Gerais, de Prados, onde eles fazem bichos de madeira. E aquilo me deixou extremamente feliz, porque eu já conhecia o trabalho deles”, relata.
Foi deles que André adquiriu sua primeira obra pessoal e deles que depois passou a adquirir esculturas para vender para lojas do Rio de Janeiro. “No início dos anos 2000, fiz uma viagem para Prados (MG), onde comprei algumas peças para vender para um cliente, a Chácara Tropical, uma loja muito tradicional do Rio de Janeiro. Chegando lá, não se interessaram em comprar, mas me cederam um espaço para deixar as peças consignadas numa exposição de Bromélias, que contou com a presença de pessoas ilustres, como o músico Roberto Menescal. As vendas das peças de artesanato foram um sucesso e despertassem o interesse nos proprietários em abrir uma loja de arte popular, a Empório Tropical. Foi uma parceria com a gente que foi um sucesso. Colhemos vários frutos”, lembra André.
Essa relação de encantamento, historicamente entre os lojistas e as obras, tem sido substancial para a projeção da produção artesanal e artística de fora do “eixo”. A jornada de André como colecionador foi alcançando outros artistas e obras e galerias de outros estados. “Minha paixão começa a surgir porque a gente conhece a arte, as histórias da região, né? Que me encantavam, me seduziam. Eu via além de de um negócio. Era algo extremamente valioso, porque eu também estava ajudando os artistas populares a aparecerem mais no mercado, né?”, avalia.
A dinâmica de estar presente em expposições do setor o estimulou a ampliar o negócio. “Em 2008, já casado com minha esposa Priscila Costa, que também se apaixonou pelas obras, decidimos fazer as malas e tentar uma nova experiência: viver em uma cidade pequena em busca de qualidade de vida e um contato mais intenso com a arte”. A partir de uma sociedade, André e Priscila inauguraram em Tiradentes a primeira loja Brasileirinho, que seria referência na cidade, que se tornou um importante polo criativo no sul de Minas Gerais.
Outro colecionador que foi enfeitiçado pela arte popular e transformou paixão em profissão é Marco Aurélio Pulchério, criador da MARCO500, empresa que comercializa produtos para decoração assinados por designers brasileiros. Há pelo menos 20 anos, Marco atua com pesquisa, curadoria e comercialização de objetos de arte e design, tendo empenhado um imporante papel na exportação de trabalhos brasileiros para países como Portugal, França, Suíça e Inglaterra. Como curador, o profissioonal ainda foi responsável pela projeção de obras dos artistas dito populares em grandes produções audiovisuais do país, como novelas e séries, contribuindo, assim, pra a visibilidade e valorização do universo artesanal como um todo. Apesar do forte apelo comercial do seu trabalho, Marco também relata a importância da relação afetiva e de admiração com os objetos que descobre, coleciona e, por vezes, comercializa.
“Minha coleção, o propósito dela é a paixão, ela é puramente paixão. Se eu me encantei, se aquilo me diz algo, passa a fazer parte do meu dia a dia. Eu não tenho uma grande coleção, mas tudo o que eu tenho, tem importância. Em especial, que é o que eu acho mais válido, importância pessoal.” Marco sempre trabalhou com atacado e passou a integrar obras de artistas de arte popular dentro do seu portfólio. “O volume maior nós fizemos com a arte feita no Cariri, no Centro de Cultura Popular Mestre Noza, focado em entalhe. Então, a gente teve Francisco Graciano e vários autores de lá. Nós lançamos uma grande coleção deles, isso tem uns 14 anos”, relata.
Por isso, Marco entende o seu papel, também como colecionador, no fortalecimento da cultura. “O curador, o galerista, o profissional que atua fazendo essa interlocução mestre-público, ele é de suma importância, porque ele dá visibilidade. Ele faz um recorte, ele ajuda o público leigo a entender e perceber sutilezas que não obrigatoriamente seriam percebidas de uma forma orgânica. Então, esses recortes, em especial, que são feitos pelas curadorias e, consequentemente, pelas galerias, são os que estão ajudando a contar essa história de uma forma mais ordenada. Eles ajudam a ordenar a percepção e a compreensão do tema”.
Arte e brincadeira
Esse fascínio que parece acometer os corações dos colecionadores independe de idade, gênero e região. Maria Amélia é uma colecionadora e galerista alagoana, que teve na brincadeira de infância o seu primeiro contato com obras de arte popular.
“Todo sábado, a minha mãe levava a gente para a feira, que ficava bem longe da Fazenda onde morava. Ficava num município rural um pouco mais longe. E aí eu convivia com potes de barro, com boneca de pano, com utensílios, com aquelas coisinhas miúdas. Aquilo me fascinava muito, sabe? […] Tínhamos brinquedos de uma marca chamada Estrela, que eram caros, eram bonecas caras que meu pai comprava pra gente, mas, eu só me interessava pelas bruxinhas da feira. Aí pedia para a costureira fazer as roupinhas para ela, para trocar. Eu deixava para lá as bonecas caras”, lembra.
A paixão à primeira vista pelas obras de arte popular em formato de brinquedos, despertou na menina um apego que carregou por toda a vida. Ela passou a colecionar alguns deles, até que ganhou de presente um em especial, que considera a primeira grande obra da sua coleção. “Eu não sabia nem o que era, nem de onde era. E eu amei aquele macaco, eu amei aquela peça que me acompanha até hoje. Aquilo me trouxe uma alegria tão grande, quando eu fiquei com esse macaco. E a história dele é fantástica, né? Esse macaco é nada mais nada menos, do que uma peça do Nino, um artista super importante de Juazeiro do Norte (CE)”, conta a Amélia que compartilha sua paixão com o marido e artista visual Dalton Costa, seu sócio na galeria Karandash, em Maceió (AL).
João Cosmo Félix (Nino) foi um dos grandes artistas do Cariri, que se tornou conhecido em todo o país por esculturas de animais em madeira. A “descoberta” do Nino fez parte de um dos grandes marcos de Maria como colecionadora e, posteriormente, galerista. Para ela, o mais importante é que cada obra adquirida tenha um significado maior. “Eu não compro nada que não seja pensando na coleção. Eu posso até vender, porque eu sou hoje também uma galerista, mas se eu não vender não tem problema algum, porque aquela obra pode fazer parte da coleção, e ela vai enriquecer a coleção”, afirma.
Para ela, um dos maiores propósitos de sua vida como colecionadora e galerista é fortalecer e divulgar a arte popular de Alagoas, que há pouco tempo tinha pouco destaque e era até desconhecida no resto do país. Para isso, o seu trabalho vai além de apresentar as obras. “Além da parte física da coleção que a gente tem das obras, a gente também tem vídeos documentários, que falam desses artistas, temos inúmeros vídeos documentários, que com entrevistas e mostrando a obra dos artistas, onde ele tem a fala desse artista primordial. É primordial para que a gente conheça a história de vida dele e a produção dele, para que se torne tudo muito mais forte e verdadeiro.”
Apesar de enxergar um trabalho árduo ainda a ser feito para fortalecer ainda mais a arte popular no país, ela reconhece o avanço que se teve nos últimos 10 anos. “Parcerias foram feitas com galerias, exposições, proojetos nas redes sociais e isso foi transformando também a visão da sociedade. Antes, as pessoas que tratavam as obras como objetos mrenores, usados nas casas de praia, longe da moradia principal, agora enxergam um valor maior nos objetos e nos artistas que o produziram”.
O crescimento do interesse, porém, também desperta uma preocupação na colecionadora. Segundo ela, a grande demanda estimula uma produção em grande escala pautada na repetição que limita em certo aspecto a inventividade dos autores. “Um recurso precioso para o artista é o tempo da imaginação e esse tempo parece ficar escasso”.
Para a galerista, porém, o mercado tem espaço para diferentes tipos de produção, seja o artesanato ou as produções autorais ou de artistas que demandam tempo para experimentar técncias e processos nos seus ateliês. “Esse é o papel do do curador: continuar indo na casa de todo mundo, identificar e valorizar artistas poderosos, incríveis e poéticos. Eu vou na casa de todos ainda”, conta.
Camila Fróis
Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.