
Imagens do corpo-terra: a fotografia que reaviva saberes ancestrais e cria possibilidades de futuros menos sintéticos
Leandro Teixeira cresceu no interior de Minas, em uma comunidade onde os artefatos materializam a relação intrínseca entre as pessoas e a terra. Hoje, ele usa a fotografia e a antropologia como ferramentas para documentar e revitalizar a força estética e criativa dessa conexão

Leandro Teixeira
29 de julho de 2024
Sou antropólogo e pesquisador, natural de Ataléia, que fica no Vale do Mucuri, norte de Minas Gerais, e tenho uma relação com a terra que antecede a minha trajetória acadêmica, uma vez que os meus ancestrais dependem dela para coexistirem junto com uma diversidade de vidas.
Cresci e fui criado com pessoas que têm esse elemento natural como referência de suas existências e é nessa relação que fabricam memórias, imagens e suas formas de vida: como a peneira, a esteira, o balaio. A antropologia e a imagem têm se tornado um instrumento de reativação de relações ancestrais entre nós, pois a partir destes diálogos venho estabelecendo formas de reavivar o que somos. Essas imagens se tornam poderosas, pois não são apenas imagens; são imagens-terra que saem do estágio de dormência e possibilitam a reativação de uma maneira de fazer o mundo, compô-lo, escrever uma história. Nesse sentido, a Antropologia tem sido uma importante ferramenta para eu olhar para dentro, para a “casa” e compreender nossas tramas, nossas existências e memórias.

É do sujo da terra que nascem corpos, tramas e memórias
Acredito que somos filhos da terra, somos corpos repetindo experiências-mundo. Para além da matéria, um composto fundamental para a manutenção da vida de plantas e animais, a terra é o que permite a existência, a existência de viventes que têm uma relação intrínseca e vital na constituição do seu ser pessoa.
A terra é a possibilidade de vida, do nosso viver. Sou a semente de gerações que têm a terra como mãe, como força geradora de vida em suas vidas; sem ela, não existiria corpo, memória, histórias. Elas sabiam e sabem o valor da terra para a manutenção e tutela de suas vivências, conhecem os ciclos da natureza, dialogam com o sol, entendem os bichos, dançam com a chuva e choram com as secas.

Sou, portanto, fruto de relações para além de humanos, entre pássaros, folhas, selvas, bichos e histórias de imagens ancestrais sobre diversos mundos, o passado. Como pensar a construção de identidades sem a relação com a terra? Seria possível? Bem, não é o caso da Comunidade Rural “Córrego Bananalzinho”, localizada no município de Ataléia, interior de Minas Gerais. Ali, a vida das pessoas está intimamente ligada à terra.
A terra é como uma extensão vital de si; essas pessoas comem, sustentam suas famílias e se constituem como coletivos a partir desta relação. A terra é o que possibilita o seu caminhar, os nossos relacionamentos. Essa comunidade se coloca como fundamental pela relação que ocupa no entendimento que criei enquanto um “corpo-terra”. Sempre que tenho a oportunidade de traduzir sobre nossos modos de vida e nossa forma de estar elaborando o mundo, inicio falando sobre a importância da terra, da relação que estabelecemos com ela para a manutenção de nossas vidas, de nossa existência, pois é ela a responsável por lançar as nossas trajetórias para o mundo.

Tramas
Entre calçar a bota e trilhar o caminho da roça e pegar o facão e ir até o taboal, são imagens que constantemente perpassam o caminhar daqueles mais velhos da comunidade Baixa Quente. A relação entre pessoas e coisas sempre foi mediada pela terra; ela subsidia essa troca, pois era o que fazia a vida fluir. Os tempos eram outros, onde a fartura, o saber fazer e a ação constituíam uma forma de ser gente, uma forma de se relacionar com a terra muito própria. É nessa trama que os mais velhos faziam esteiras de taboa, faziam peneiras, faziam a roça, faziam tijolos, potes de barro, elaboravam a vida e, junto deles, se faziam.
Tenho me questionado muito sobre a necessidade de reavivar esses saberes ancestrais nestas comunidades rurais que venho passando, não só naquelas que vivem meus avós e meus pais, mas na região. Pois saber tramar com a terra é a condição para saber tramar a vida de diversas gerações. Como bem disse mestre Nego Bispo, grande liderança quilombola do Piauí: “Vamos cuidar da geração neta porque ela é o futuro. Ela é o presente e o futuro, e nós estamos aqui para dialogar. O presente é o interlocutor do passado e o locutor do futuro. Temos que nos defender desta geração sintética e contribuir para que a nova geração também saiba se defender.”

Assim, repensar nossos modos de vida, nossa trama com a terra, a água e o céu, é pensar na taboa que preserva o saber; na peneira que sustenta o pensar; no balaio que compartilha afetos e na terra que elabora o existir. Não são memórias, são imagens-terra Uma vez, um mestre indígena disse que “você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e para onde você vai”.
Isso é importante, principalmente quando se trata de grupos de trajetória, pois não elaboramos nossas formas de vida desvinculadas do nosso lugar; ele é o que guia o nosso caminhar. Esse lugar é a terra, nela construímos nossa referência, nossas imagens. Como imagens que não foram fotografadas, as imagens-terra insistem em contar histórias, se fazerem presentes, estimulando as próximas gerações a construírem outras possibilidades de existências e conexões com o lugar, a memória, mundos outros e a terra.

No caso de uma imagem-terra, o mesmo pensamento/memória que produziu ou que produz essa imagem é o que contempla, a arquiva, fantasia. Talvez não fosse demasiado dizer que o que faz uma imagem dentro desta concepção está longe de ser a câmera em si, mas a relação profunda entre a terra e um eu, e como isso se incorpora, produzindo imagens potentes, imagens germinantes a partir deste lugar e dessas experiências.


Leandro Teixeira é mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS/USP. Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UNESP/Fclar e técnico em Agropecuária pela Cedaf-UFV. É pesquisador no Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA/USP) e no Núcleo de Antropologia da Imagem e Performance (NAIP/UNESP).