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Criativos por tradição, uma exposição-manifesto

Camila Fróis

Raquel Lara Rezende


Fotos: Ricardo Pimentel/Artesol

Cercados pelo exuberante acervo natural do Jardim Botânico carioca, os quatrocentos metros quadrados da exposição “Criativos por Tradição” com curadoria da Artesol revelam objetos da cultura popular que nascem desde a floresta tropical até o sertão brasileiro, passando pelo enorme litoral do país.

Ao todo, o Museu do Meio Ambiente, um elegante casarão que se ergue na entrada do Jardim, está recebendo cerca de 300 peças de artesanato – criadas com técnicas ancestrais e uma estética própria dos povos tradicionais. Essa estética traduz a relação dos autores com os biomas do país, com suas memórias e saberes ancestrais, com símbolos da sua fé, com suas fantasias e afetos. A exposição é dividida em salas temáticas focadas nas matérias-primas com que as peças foram criadase é ambientada por imagens de fotógrafos que capturaram cenas do dia-a-dia dos artesãos. A visita a esses ambientes é embalada por uma trilha sonora autoral inspirada nos elementos naturais das comunidades e inclui fragmentos de falas de alguns mestres e artesãos e artistas populares. Os recursos audiovisuais levam os visitantes de forma sutil para o ambiente das oficinas dos escultores do Cariri, para a beira do Rio São Francisco, onde nascem o bordado boa-noite, para os rituais indígenas que inspiram os grafismos da cerâmica do Xingu, entre tantos outros territórios criativos.

Apesar desses estímulos, o primeiro plano da exposição – cuja expografia é assinada por Pedro Mendes da Rocha – definitivamente é o objeto artesanal. É ele que traz à tona diferentes referências dos artesãos: as formas retorcidas da caatinga, o preciso ponto de bordado criado no ritmo lento de uma região inóspita, as texturas da Amazônia no trançado ribeirinho e outros elementos lúdicos que surgem na contemplação e convivência do homem com a natureza em suas mais diversas matérias e formas. No lugar do museu, variados objetos que surgem dessa relação ganham status de arte cotidiana, sejam eles toalhas de renda, panelas, cestos, mantos, esculturas de noivas, cachorros, santos, lagartos, pássaros ou igrejas.

Por que uma exposição sobre artesanato?

A proposta de dedicar uma exposição inteira ao fazer artesanal em seu amplo contexto surge da necessidade de valorização dessa prática que nasce em rituais coletivos de socialização como expressão criativa, envolvendo saberes e fazeres ancestrais na perspectiva de repasses de conhecimentos que são um patrimônio cultural imaterial no nosso país.

A exposição se torna, assim, uma espécie de manifesto para o fortalecimento do artesanato brasileiro como expressão cultural que aborda um universo diverso de técnicas e territórios onde a atividade artesanal garante o sustento dos moradores e guarda conhecimentos muito particulares. Celebrar o objeto artesanal é, portanto, celebrar essa identidade e a beleza que ritualiza o cotidiano e conecta com fios invisíveis os fazeres mais básicos, como a colheita e a pesca através das peças de cestaria de tucumã, piaçava ou arumã, por exemplo. Ou que permite a preparação do alimento e a partilha do mesmo a partir da prática da produção da cerâmica, moldada manualmente e tingida com signos próprios de cada comunidade.

O artesanato tem, dessa forma, uma importância não apenas econômica, mas também social e cultural. Ele está ainda presente nas experiências místicas e espirituais em algumas comunidades, principalmente nas indígenas, mas não apenas nelas. Entre as peças do artesanato brasileiro existem vários objetos de devoção criados para aproximar o homem do seu “deus”, de suas figuras míticas, divindades ou de seus representantes: oxum, tupã, padre Cícero, São Francisco. É assim com os ex-votos: esculturas de madeiras que funcionam como uma manifestação artístico-religiosa doados às divindades em agradecimento por um pedido atendido: proteção contra catástrofes naturais, cura de doenças ou de sofrimentos amorosos, entre outros. A dimensão da espiritualidade também se mostra nos grafismos indígenas, dotados de profundos sentidos, nas referências a aspectos do catolicismo popular ou a seres encantados da cultura ribeirinha. Outro exemplo é a tela bordada “Mulheres coletoras do São Francisco”, do grupo Matizes Drumond, que evoca figuras do universo mítico do Rio São Francisco.

Ao trazer essas narrativas na forma de objetos a exposição abre uma janela para que a percepção do artesanato – de sua história e da própria noção de cultura imaterial – revele os contornos dos saberes populares que os sustetam.

O lugar e o tempo do autor

Outra reflexão que guiou o processual curatorial foi o lugar da autoria já que nesse ambiente, muitas vezes, o objeto final é privilegiado, sendo desconsiderados seus criadores. Diferentemente do segmento da arte, em que a autoria é central, no artesanato, se construiu uma noção de que a autoria seria menos importante pelo fato do artesão – em geral – ser uma pessoa dotada de conhecimento não formal.

A “Exposição Criativos por Tradição” vem dizer que a autoria no artesanato importa sim. E, mais que isso, que ela é central para se tratar do tema com a coerência e as complexas dinâmicas que o envolvem, já que o “saber fazer” do artesanato é quase sempre resultado de um processo de transmissão de conhecimento geracional. Nesse sentido, optamos em construir uma narrativa que evidencia o sujeito agente do artesanato buscando aproximar o visitante de seu mundo, através do viés do tempo. Não um tempo fragmentado, linear que avança, virando as costas para o que ficou para trás, mas o tempo próprio das dinâmicas da ancestralidade e da tradição. Nesse tempo em espiral ligado a todas as gerações antecessoras, a prática do fazer artesanal não necessariamente se repete de forma igual, pois a perspectiva de tempo traz a dinâmica da reinvenção e da inovação. É nesse tempo que as memórias milenares de povos indígenas e outras memórias tão antigas de povos africanos convivem com diferentes movimentos sociais contemporâneos.

O artesão é o agente que transita por esse tempo próprio da tradição, permeado pelas lembranças do convívio social, comunitário e educativo e das memórias impregnadas nos territórios onde vive, nas manifestações culturais e religiosas das quais participa. A partir delas ele se entrega ao próprio tempo do seu fazer, o “tempo das mãos” que, segundo a designer Paula Dib, é o tempo mais real. “A beleza do fazer artesanal começa no tempo, que é outro. É o tempo da mão, do homem, e portanto não pode haver lugar mais real. Seja no campo ou num ateliê, o dia de trabalho de um artesão não é ditado pelo tic-tac de um relógio de ponto ou pelas necessidades da produção, mas por um ritmo que tem mais a ver com o corpo e com sua sensibilidade”, afirma a designer-articuladora. O grande convite da Exposição “Criativos por Tradição” é que os visitantes consigam entrar nesse outro tempo, para entender processos produtivos cheios de vida, emaranhados com a natureza pulsante de cada lugar do Brasil.

Rede Artesol


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Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.