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Do contemporâneo ao popular: mostra costura narrativas femininas em Belo Horizonte (MG)

A mostra dá visibilidade a diversas produções feitas por mulheres no território das artes visuais.

Laura de Las Casas


Fotos: Laura de Las Casas

São mais de vinte bordados dependurados na Galeria Mari´stella Tristão da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte, parte da mostra “Narrativas Femininas – Sou aquilo que ainda não foi”. Os panos cor de terra parecem flutuar em uma sala escura com uma iluminação impecável que joga luz nos detalhes dos tecidos trabalhados. Não se sabe qual é a frente e qual é o verso, tamanho o capricho das Bordadeiras do Curtume, lá do Vale do Jequitinhonha, donas de obras de arte contadoras de histórias. Nos estandartes estão cenas do cotidiano e do imaginário delas: um homem jogando milho para as galinhas, os sanfoneiros coloridos, o presépio, a vegetação e os bichos do cerrado, as anjas-da-guarda voando… “Esse trabalho é muito simbólico para nossa exposição. Essas mulheres ficavam sozinhas em casa enquanto os maridos viajavam para ganhar a vida. Os projetos sociais levaram a possibilidade do bordado a elas, e isso acabou unindo uma a outra durante os encontros, trazendo autoestima e força. É exatamente isso que buscamos nessa mostra: unir generosamente trabalho de mulheres em diferentes linguagens, deixando que eles se misturem e se potencializem”, diz a curadora Uiara Azevedo.

A mostra, com quatro exposições integradas, faz parte do projeto Arteminas, que desde 2015 busca dar visibilidade e reconhecimento a artistas mineiros, tendo um recorte diferente a cada ano. O tema escolhido para essa edição, segundo Uiara, partiu de uma reflexão sobre o próprio acervo da Fundação. “Fizemos um levantamento e reconhecemos um número bem maior de homens compondo nossa coleção. Dentro dessa urgência em dar visibilidade para as artistas mulheres, partiu nossa ideia de trazer uma exposição coletiva com diversas linguagens e perfis, que conta, inclusive, com a Galeria Pedro Moraleida toda dedicada a artistas mulheres do nosso próprio acervo”, explica. E o título da mostra já começa falando sobre o tema das narrativas construídas por elas. “Sou aquilo que ainda não foi” é o verso de Teresinha Soares artista plástica mineira e escritora que abarca em sua produção o universo feminino de forma transgressora e antipatriarcal. O que não foi, aqui, diz sobre um processo do passado, do presente e do futuro de luta feminina, de um porvir que já é, porque a consciência desse potencial é algo vivo nas mulheres do mundo.

Pela primeira vez na história, a Fundação teve suas paredes grafitadas na Galeria Aberta Amilcar de Castro. O espaço dá lugar à “Efêmera”, uma das quatro exposições que compõem a mostra. Ali, uma das paredes foi estampada com o rosto de Maria da Penha, uma moradora em situação de rua conhecida da artista Ártemis Garrido. Com expressões fortes e um véu na cabeça, a mulher desenhada é vista imponente, olhando para quem passa.

Ao falar sobre a origem dessa ideia, Ártemis resgata sobre seu trabalho como arte educadora no Consultório de Rua, do Sistema Único de Saúde, um projeto que busca criar vínculos entre pessoas em situação de rua e o sistema público de saúde. “Um dia eu estava acompanhando a Maria da Penha em um tratamento na área hospitalar e na volta eu propus da gente entrar na Fundação para ver uma exposição. Ela me contou já ter dormido diversas vezes na porta, mas nunca ter tido coragem de entrar. Por coincidência, a exposição que vimos eram retratos de pessoas pobres, todas muito tristes, e aquilo mexeu com ela. Naquele dia, Maria desabafou se incomodar com o fato de sempre ver as pessoas pobres retratadas de forma triste, como se elas não tivessem alegria, como se elas não brincassem e sorrissem”, relembra. Quando foi chamada para participar da mostra, a muralista, então, se lembrou dessa situação e resolveu levar, mais uma vez, Maria da Penha para dentro do museu. Só que agora em forma de obra de arte. Com seu desenho estampando o rosto de Maria em uma das paredes da Fundação, quem sabe mulheres como ela não se sentissem mais à vontade para entrarem e estarem em lugares como um museu?

Na parte externa, também estão obras de Isabel Saraiva, Maria Clara Cheib e Amanda Vilaça (Mona), variando entre desenhos, lambes, murais e grafite. Cada uma dessas artistas imprime nas obras diferentes questionamentos que permeiam, devido ao suporte artístico, a noção da curta duração, do breve e do transitório.

Os trabalhos de arte urbana antecedem as Galerias Genesco Murta e Arlinda Corrêa, onde fica a exposição “Híbrida”, com produções contemporâneas de Carolina Bortura, Giulia Puntel e Julia Panadês. Alí, é possível ver os quadros impressionantes de Giulia, artista mais nova do grupo, com uma riqueza de informações típicas da vida de uma jovem vivendo em 2019. A tinta grossa colore os cenários complexos que também ganham complementos para além da pintura, como garras e cabelos. “Eu gosto de levar humor para minha arte. Por isso, durante meu processo eu costumo deixar rolar, fazer livre associação de imagens, usar outros elementos. Faço isso pra tirar um pouco a seriedade da pintura, abandonar essa forma de olhar pra ela de forma deslumbrante e intocável”.

Logo a frente, no centro da sala branca, um vestido pendurado no teto chama a atenção. Ele é longo, e chega até o chão, formando uma espécie de cabana aconchegante. Nas bordas, um poema de Ana Cristina César foi bordado por Panadês: “Cartilha da cura: as mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”. Muita gente que visita a exposição se sente convidado a entrar dentro desse vestido-cabana, onde diversos dizeres foram escritos em linhas no tecido. Os trabalhos de Julia carregam a singeleza e a coragem da mulher. Falam do medo, assim como falam da coragem. Escancaram nas parede tecidos em formato de vaginas, em diversas cores, como quem anunciasse que aquele é um mundo particular. Das mulheres.

Já Carolina Bortura promove um diálogo entre o feminino e o masculino, com um trabalho que, segundo a curadora Uiara Azevedo, pode ser definido como uma contemplação ao amor. “Com tudo que ela nos apresenta em forma de pintura, instalação e escultura, é possível trazer um pouco para nossa mostra essa relação com a reprodução e com a afetividade entre os dois gêneros”, diz.

De volta à Galeria Mari´stella Tristão, é possível ver de perto as produções de diversas artistas populares de Minas, em esculturas, bordados e bonecas que esboçam os inúmeros papéis desempenhados pelo feminino. Ao lado de cada trabalho, um texto na parede registra a biografia de cada artista responsável pelas obras. Elas transitam da representação da maternidade até as mais variadas funções do dia a dia de uma mulher do interior. “A arte popular é muito intuitiva. O artista não é tão apegado à técnica. Tem uma relação com o desprendimento. É livre. Nas nossas pesquisas, fomos adentrando o processo criativo delas e vendo que os trabalhos eram simplesmente uma continuação daquelas vidas, contavam a história daquelas vidas. Por isso, optamos em trazer essas histórias ao lado das obras, porque faz muito sentido o público entender essa conexão”, explica Uiara.

E faz mesmo. Quem passa pela galeria tem a chance de conhecer um pouco mais sobre Divone, Altina, Dilurdes, Lena e Marlene, mulheres sem-terra integrantes do Coletivo Mariquinhas.Toda semana elas se encontram em uma creche da capital mineira para bordar histórias varridas pelas enchentes que levaram embora suas casas. Além dos bordados, a exposição conta com trabalhos em barro como o de Ana do Baú. De forma impecável, ela esculpia com naturalidade as cenas do cotidiano em esculturas feitas em parceria com sua irmã Natália. A cerâmica também está presente em obras como as de Maria de Lourdes, artista que gosta de amassar o barro enquanto canta sentada na beira da rua. Suas “figuras”, como gosta de chamar o próprio trabalho, fogem da estética simétrica comum da região onde mora, em Córrego de Santo Antônio, do Vale do Jequitinhonha. Da mesma região de Maria de Lourdes, as cerâmicas de Rosana Pereira podem ser vistas entre as artistas populares da mostra. As peças feitas por ela exploram de forma lúdica cenas existentes no imaginário: a dança dos bichos, os encantos, os contos de fada e as magias do mundo.

Outro destaque da exposição é a mestre Maria Lira Marques Borges, conhecida como Lira, nascida em Araçuaí. A artista traz para suas obras em argila sobre papel suas duas maiores inspirações: o índio e o negro. Além de ceramista, Lira é também pesquisadora, se interessa pelas etnias do povo brasileiro, especialmente do Vale do Jequitinhonha.

Com suas artes entrelaçadas e costuradas entre as galerias da Fundação Clóvis Salgado, as narrativas femininas ganham força e recebem olhares diversos. Há quem se encante pelos murais desenhados. Há quem se envolva nas palavras bordadas. Também tem quem se emocione com as cores e formas das tintas na tela, e quem goste de olhar cada detalhe das esculturas expostas junto aos bordados. A verdade é que as narrativas femininas foram, de fato, costuradas para contar muitas histórias.

Serviço


Período das exposições: 29 de novembro a 8 de março Endereço: Av. Afonso Pena, 1537 – Centro, Belo Horizonte Horário: Terça a sábado, das 9h30 às 21h. Domingo, das 16h às 21h Classificação: livre Entrada gratuita

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Jornalista especializada em comunicação digital. Escreve sobre cultura e meio ambiente para fazer chegar mais longe as dores e belezas de Minas Gerais.