
Nei Xakriabá e a arte que reelabora a memória, aproxima mundos e afirma direitos de um povo que há séculos luta por suas terras no sertão mineiro
Na sua trajetória entre a terra indígena Xakriabá, a universidade e o circuito cultural do país, ele tem usado a cerâmica como ferramenta de preservação da memória dos mais velhos, educação dos jovens da aldeia e afirmação política na cena artística contemporânea.

Camila Fróis
30 de junho de 2024
A afirmação identitária de populações nativas do mundo inteiro tende a passar cada vez mais pela visibilização da sua cultura, de sua autenticidade e vitalidade. Por isso, em sua dissertação de mestrado na UFMG, “Arte Indígena Xakriabá: com um pé na aldeia e outro pé no mundo”, Nei, que foi um dos artistas que assinaram a mostra Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea, na 34ª Bienal de São Paulo, discute como a arte constitui uma nova arena na luta dos povos indígenas por visibilidade, tanto em termos políticos como estéticos. Os Xakriabá pertencem ao segundo maior tronco linguístico indígena do país, o Macro-Jê, e vivem no entorno do território hoje conhecido como Parque Nacional do Peruaçu, famoso por sítios arqueológicos com pinturas rupestres que remontam à milenar ocupação do território.
Apesar da relação intrínseca com a terra, a etnia tem uma história marcada pela intensa luta contra fazendeiros, políticos, pistoleiros e grileiros do sertão mineiro que, ao longo de décadas, invadiram suas terras e iniciaram conflitos violentos, que culminaram em assassinatos de lideranças indígenas.
Em diferentes períodos dos 400 anos de contato com os não indígenas, foi proibido praticar seus costumes e de falar sua língua Akwë. Esta situação se acirrou na medida em que os Xakriabá avançavam nas ações de autodemarcação até que conquistaram a homologação oficial de boa parte de suas comunidades em 1987, mas muitas aldeias ainda seguem na luta pela demarcação.

Desde 1997, com o desenvolvimento das escolas indígenas, a educação está direcionada ao fortalecimento das práticas tradicionais. Hoje, as escolas têm seu próprio calendário, onde a arte e a cultura foram inseridas. A cerâmica ganhou força a partir das conquistas. Hoje, a etnia tem se tornado cada vez mais conhecida na cena cultural do país pela atuação de ativistas, artistas e políticos que levam suas causas para diferentes espaços de debate. Além do próprio Nei, esse é o caso de Célia Xakriabá, primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais, e do fotógrafo e antropólogo Edgar Xakriabá, um dos vencedores do Prêmio Pipa em 2022.
Em comum, os três começaram sua atuação como professores em escolas indígenas em suas comunidades. Hoje, eles levam os saberes e as causas indígenas para além das fronteiras da aldeia, promovendo a aproximação entre indígenas e não indígenas.
Nessa arena, Nei defende que a perpetuação das técnicas tradicionais como a cerâmica é fundamental para a cultura Xakriabá, mas recusa categorizações simplificadoras do seu trabalho, que transpõe fronteiras entre o dito popular e o contemporâneo. Na entrevista que segue, o artista conhecido por suas moringas com grande densidade simbólica, afirma a importância de ocupar espaços de visibilidade, articulando discussões interseccionais entre arte, ancestralidade, coletividade, história, memória, política e ecologia.

Você pode se apresentar?
Meu nome é Nei Leite Xakriabá. Eu moro no norte do estado de Minas Gerais, em São João das Missões. Minha aldeia, Barreiro Preto, está localizada na margem esquerda do Rio São Francisco, na Terra Xakriabá, onde vivem aproximadamente 12.000 pessoas. Quando o território foi demarcado em 1987, éramos menos de 4.000. Desde então, realizamos retomadas e anexamos terras, resultando em 40 aldeias distribuídas pelo nosso território. Sou pesquisador ceramista e atuei na escola da minha aldeia por um bom tempo. Atualmente, não estou mais na escola, mas continuo ensinando os jovens na nossa oficina de cerâmica da comunidade.

Como surge a sua relação com o barro?
Minha relação com o barro começou quando eu era criança e via minha mãe modelando bichinhos. Ela fazia isso desde quando era pequena, para brincar com seus primos e irmãos. Embora ela não tenha aprendido a queimar as peças, pois a cerâmica Xakriabá já estava em declínio nessa época, isso me deixou marcado. Quando fui escolhido para ser professor na aldeia, busquei aprender com ela as técnicas de modelagem, pois, nessa escola, as lideranças nos orientaram sobre a importância de fortalecer as práticas tradicionais, integrando-as ao ensino.
Então, minha mãe me ensinou a fazer dois bichinhos e eu os levei para a escola, compartilhando com os alunos o que ela me ensinou. Essa experiência me fez despertar de vez para a cerâmica. No início, os objetos que eu criava eram como planos de aula: eu modelava em casa e repetia o processo com os alunos.

Como são as disciplinas de uma escola indígena? Qual a diferença em relação a uma escola tradicional?
A disciplina em que atuei era uma das matérias que a gente chamava de “disciplinas diferenciadas”, que abrangem práticas culturais, uso do território, saúde, direito, arte e literatura indígena. No passado, os professores eram da cidade, mas eles não achavam que esse tipo de conhecimento era legítimo. Por isso, em 1995, a escola passou a ter apenas professores do próprio povo, após um programa de implantação de escolas indígenas em Minas Gerais. Para ser professor, era necessário fazer a Formação Intercultural para Educadores Indígenas na UFMG.
Inicialmente, a escola era municipal, mas havia conflitos com o prefeito, que dizia que não iria contratar pessoas incompetentes (os indígenas). Por isso, ela acabou sendo transformada em uma escola estadual e foi ampliando sua atuação. Hoje, temos 11 escolas em terras do povo Xakriabá, onde, além de práticas medicinais e artísticas, ensinamos a língua Akwẽ. Essa língua havia sofrido um processo de apagamento e foi, inclusive, proibida em nosso território.

Os fazendeiros queriam que falássemos português para que eles pudessem entender, então, quem era visto falando a língua nativa enfrentava ameaças. Além disso, os missionários que chegaram a São João das Missões (o nome da cidade não é aleatório) também popularizaram o português.
Então, tivemos que fazer um processo de resgate com a ajuda de pessoas da comunidade que colaboraram com a transmissão de conhecimentos. Elas nem sempre eram alfabetizadas, mas possuíam saberes valiosos não só sobre a língua, mas também sobre plantas medicinais e práticas artísticas, que eram narrados, registrados e transmitidos pelos professores da escola para os alunos.
Essa língua, que foi proibida em nosso território, passou por um processo de apagamento. Os fazendeiros queriam que falássemos português, e muitos que foram vistos falando a língua nativa enfrentavam ameaças. Missionários que chegaram a São João das Missões também contribuíram para a perda do nosso idioma. Na escola, pessoas que ajudavam na transmissão de conhecimentos nem sempre eram alfabetizadas, mas possuíam saberes valiosos sobre plantas medicinais e práticas artísticas, que eram narrados e registrados pelos professores.

Como foi essa experiência de resgatar o conhecimento dos mais velhos?
Quando entrei na licenciatura, me envolvi profundamente com a cerâmica. Conversei com pessoas que dominavam a técnica no passado e que não praticavam mais. Também aprendi os processos em oficinas realizadas durante a construção de um espaço cultural em uma aldeia vizinha, a Casa de Cultura da Aldeia Sumaré I, onde os anciãos compartilhavam seus conhecimentos com quem estava ali. Esse resgate foi vital, pois a prática da cerâmica estava prestes a ser extinta com a morte dos mais velhos, mas eles estavam muito interessados em contar suas histórias e repassar suas técnicas.

Como se consolidou o seu processo criativo com as moringas, que hoje são conhecidas em todo o Brasil?
Tradicionalmente, a cerâmica na aldeia era utilitária. A maior parte da produção eram pratos, potes, moringas e vasos, mas com o acesso a produtos industrializados, o interesse por esses objetos diminuiu. Decidi, então, trazer os bichos que minha mãe fazia na infância para as moringas, criando peças inspiradas na fauna do cerrado e da caatinga e que chamavam a atenção das pessoas da própria comunidade.
Daí a visibilidade do meu trabalho foi crescendo à medida que comecei a participar de feiras e a explorar a minha identidade artística. No início, eu não assinava minhas peças, pois eu tinha um conflito com essa questão, pois não considerava a cerâmica como minha, mas como fruto de um conhecimento coletivo. Depois eu tive a ideia de assinar o meu para que isso sugerisse uma assinatura coletiva. Aí, durante minha pesquisa de mestrado, eu conheci o Jaider Esbell (artista indígena contemporâneo) e fui convidado para participar de uma exposição na 34ª Bienal de São Paulo, em que ele era um dos curadores.

Hoje, como você vê o reconhecimento em relação à arte indígena no país?
É importante ressaltar que a nossa arte é frequentemente rotulada como artesanato, com o intuito de menosprezar.
A gente sabe que se uma determinada classe social produz um trabalho, ele é considerado arte; se outra classe social produz o mesmo trabalho, ele é considerado artesanato. Então, durante o mestrado, fui percebendo a importância de ocupar outros espaços e, inclusive, assumir a produção não só de objetos, mas também de textos críticos.

Qual foi sua motivação para entrar no mestrado?
Na minha licenciatura, ao invés de um ensaio de conclusão de curso, eu tinha decidido fazer uma exposição e um manual da cerâmica Xakriabá, que circulou entre as escolas indígenas, mas não saiu das aldeias, porque não tinha uma versão online.
Mas, no mestrado, eu me conscientizei da importância de escrevermos e atuarmos em produções mais críticas e mostrar para o mundo nossa realidade, porque os outros já falaram pela gente há muitos anos, né? E muitas pessoas acabam cometendo equívocos, porque nunca pisaram no nosso território e desconhecem nossa história.
Então, acabam reproduzindo preconceitos e estereótipos. Senti que o texto, a dissertação, poderia alcançar lugares que talvez o objeto não alcance, porque se eu ficasse só na produção das peças, talvez o público tivesse acesso à escultura, mas não a sua história. Então hoje vejo que a dissertação pode ser um material de pesquisa não só para os indígenas aqui do meu território, mas para outros povos e não indígenas.

O que é ter um pé na aldeia e outro no mundo?
É fazer esse trânsito entre as realidades, porque hoje em dia, essa relação melhorou um pouco, mas as escolas, a universidade e a mídia costumavam ignorar nossa cultura. É comum que na sala de aula do município onde a gente vive, as crianças conheçam mais sobre cultura e arte europeia do que sobre a nossa que está ali do lado. Então, talvez uma forma de melhorar essa dinâmica é a gente mesmo ocupar esses espaços (da educação), mesmo que a gente tenha que sair da nossa área de conforto, deixar nossa família por um tempo, para poder mostrar nossa realidade lá fora.
Quando as pessoas têm contato com nossa história, muitas acabam mudando de opinião e se tornando nossas parceiras. Então, nossa arte é pedagógica e política e tem que estar em todos esses espaços: sejam museus, galerias, universidades. E foi isso que me encorajou a fazer o mestrado.

E o que tem mudado a partir da ocupação de novos espaços que não era acessíveis aos indígenas?
Ao ocupar esses lugares, aumentamos o número de aliados em nossa luta. Por isso, sigo acreditando que a arte é uma ferramenta poderosa. Por exemplo, minha moringa em formato de peixe traz uma narrativa sobre a luta pelo nosso território e nossas águas e as violências que temos sofrido, pois o povo Xakriabá era conhecido como “bom de remo”, pela tradição de ter muitos canoeiros que navegavam longas distâncias no São Francisco, mas fomos perdendo acesso à terra e aos rios. Atualmente, estamos a 40 km do rio e a água que consumimos é coletada da chuva, que é escassa, pois não passa nem um curso de água na nossa terra. Se quisermos comer peixe, temos que comprar.
Então, acho que quando os indígenas ocupam o Congresso, as exposições, as universidades, tudo isso significa uma política mesmo de resistência, porque são espaços que nos foram negados por muito e, quando a gente não ocupava esses lugares, eles eram ocupados por outras pessoas que criavam narrativas que iam fomentando ódio aos povos indígenas.
Aí, quando a gente começa a levar para esses lugares as nossas narrativas, criamos oportunidades pedagógicas de formar as pessoas, porque o preconceito ainda existe porque a sociedade não conhece nossa relação com a terra e com a natureza e acredita que o indígena é um empecilho para o desenvolvimento do país. Então, precisamos conquistar parceiros que se aliem à nossa causa e se envolvam no movimento indígena.

Como você observa a recepção da sua arte no contexto atual?
Nos últimos anos, a arte indígena ganhou visibilidade e teve até um certo “boom”, mas eu tenho hesitado em participar de exposições individuais, pois prefiro incluir mais pessoas na divulgação do meu trabalho. Nossa arte é coletiva e os agentes dos circuitos de arte ainda têm dificuldade de entender isso.
O mercado ainda não compreende totalmente a lógica de produção indígena. Às vezes, têm lojistas ou galeristas que acham que, porque eles têm dinheiro, eles podem comprar qualquer quantidade e exigir um prazo irreal que desconsidera a nossa dinâmica. Mas por trás da peça, tem todo um processo que depende, inclusive, da fase da lua. Eu, por exemplo, se eu pegar firme, eu produzo 10 moringas por mês, trabalhando até nos finais de semana, que não é a relação que quero ter com meu trabalho.
Eu quero fazer cerâmica no meu tempo, respeitando todos os ciclos da terra, aguardando a lua adequada e também me envolver com outras coisas. Quero brincar com meu filho, plantar minha roça, me envolver nos projetos da comunidade, mas aí o lojista quer que você produza no tempo dele e dê desconto no atacado.

Eu não quero ser funcionário de lojista. Eu quero me envolver aqui na minha comunidade, quero ensinar os mais jovens na nossa oficina para que esse conhecimento não se perca, porque é uma prática que fortalece nossa identidade, né?
E quanto mais a gente se envolve nessas práticas artísticas e espirituais aqui no território, mais a gente vai estar fortalecido como povo, coletivamente, né? Até para enfrentar todas as ameaças que vira e mexe voltam como o tal marco temporal. O que eles querem é que a gente abandone nossas práticas para depois dizerem que a gente não é mais indígena e não tem mais direito ao território.
Mas não vão conseguir nos apartar das nossas práticas, porque elas seguem conectadas com a terra e as tradições. Antes de retirar o barro, canta-se e reza-se, pedindo licença e agradecendo à natureza. Como a terra é mãe, o barro também tem um parentesco com o nosso povo. Segundo dizem os mais velhos, o barro é um parente ancestral, pois traz em seus elementos as forças dos antepassados. O barro sente vibrações, escuta, conecta e se desconecta do próprio corpo do artista. Na verdade, é o barro quem conduz o trabalho do artista durante a modelagem.

Camila Fróis é jornalista e mestranda no Programa de Cultura e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Escreve sobre cultura, arte, direitos humanos, sustentabilidade e viagens originais pelo Brasil.