ENTREVISTA: Transcendendo rótulos, Hélio Menezes, diretor artístico do Museu Afro Brasil, explica novo momento da instituição
Exposição que comemora vinte anos de museu joga luz sobre a discussão a respeito do conceito de “arte popular” no Brasil
Laura de Las Casas
12 de dezembro de 2024
Ao assumir a diretoria artística do Museu Afro Brasil Emanuel Araujo, em março de 2024, o antropólogo, curador, crítico e pesquisador Hélio Menezes deu início a uma nova temporada. Em um dos mais importantes espaços dedicados à preservação e divulgação da herança cultural e artística do povo negro no Brasil, era hora de reposicionar o conceito do museu como um “espaço vivo de encontros, discussões e provocações”, honrando, assim, o legado deixado pelo idealizador da instituição.
Conterrâneo de Hélio, o artista plástico e museólogo baiano Emanuel Araujo dedicou grande parte de seus 82 anos de vida ao reconhecimento e à valorização da história da arte afrodescendente brasileira e da arte africana. Ao chegar ao novo cargo, pouco tempo após a morte de Emanuel, Hélio avaliou que era hora de pensar e repensar, fazer e refazer o museu. Para isto, decidiu retirar dos espaços de visitação as obras que reencenam as dores da escravidão. “O caráter disruptivo do museu está na sua capacidade de reverter olhares. O museu questiona as narrativas dominantes, centra as contribuições afro-brasileiras, africanas e afrodiaspóricas como pilares da história e desafia estereótipos que por muito tempo limitaram o entendimento do que é ser negro no Brasil e no mundo”, explica o diretor.
A ideia, segundo Hélio, é enfrentar a história por outros caminhos, que não seja revivendo a dor e a violência desses tempos. Um reflexo deste novo momento da instituição é a recente exposição “Popular, Populares – A pluralidade do ‘popular’ nas artes”, inaugurada em outubro como parte da comemoração pelos vinte anos do museu. A mostra provoca o público a pensar sobre a definição do conceito de “popular” nas artes, desafiando as categorizações que rotulam muitas vezes esses artistas como ingênuos ou com pouca formação acadêmica.
No texto curatorial da exposição, Hélio relembra como esse termo assume ares étnicos, regionalistas, além de rótulos que enrijecem e, de certa forma, estereotipam o lugar desses artistas: “Os artistas e as artistas desta exposição são indivíduos cuja produção transcende os rótulos que lhes foram historicamente atribuídos. São criadores que, através de suas obras, expressam narrativas complexas, técnicas elaboradas e uma profunda conexão com suas comunidades e identidades culturais”, explica o diretor. Assim, quem visita a mostra pode vivenciar essa narrativa por meio dos barcos de Exu de Cândido Santos Xavier, pelos retratos e faces esculpidas de Mauro Firmino e pelas esculturas de Resêndio e Manuel Graciano Cardoso, além das carrancas de Mestre Biquiba Guarany, João Souza e Jezo, e dos quadros de Madalena dos Santos, alguns dos artistas presentes na exposição.
O Museu Afro, localizado em um dos pavilhões do conjunto arquitetônico idealizado por OscarNiemeyer na década de 1950 para o Parque Ibirapuera, conta com mais de 8 mil obras. Entre elas, estão pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, documentos e peças etnológicas, de autores brasileiros e estrangeiros, produzidos entre o século XVIII e os dias atuais. Para conhecer mais sobre a história desse espaço e sobre o novo momento que a instituição vive, a Artesol entrevistou Hélio Menezes. Na conversa, ele contou como o acervo singular da instituição consegue explorar temas como identidade, memória e ancestralidade, trazendo à tona questões sociais e históricas que por muito tempo ainda serão pauta na sociedade atual.
O que você destacaria nessa história de 20 anos do Museu Afro Brasil? Por que você o define como disruptivo?
O Museu Afro Brasil celebra 20 anos de resistência cultural e intelectual, atuando como um espaço de arte, memória e transformação social. Ao longo dessas duas décadas, ele, além de construir um acervo inestimável, também instigou debates essenciais sobre arte, identidade, raça e história. O caráter disruptivo do museu está na sua capacidade de reverter olhares. Ele questiona as narrativas dominantes, centra as contribuições afro-brasileiras, africanas e afrodiaspóricas como pilares da história e desafia estereótipos que por muito tempo limitaram o entendimento do que é ser negro no Brasil e no mundo. O museu faz isso ao confrontar hierarquias estéticas, colocando as expressões populares no mesmo patamar das grandes obras ditas eruditas.
O que mudou no conceito do museu, nos últimos tempos, desde a sua chegada como diretor e curador?
Nos últimos tempos, trabalhamos para reposicionar o conceito do museu como um espaço vivo de encontros, discussões e provocações. A abordagem curatorial se afastou de uma narrativa que apenas revisita as dores da escravidão para abraçar também outras dimensões da experiência negra: a criatividade, a espiritualidade e a complexidade cultural. Agora, há um esforço consciente em criar exposições que dialoguem com as questões contemporâneas, conectando o acervo a pautas atuais, como diversidade, representatividade e o papel da arte na construção de novos futuros. Isso se reflete na escolha de obras, na forma como são apresentadas e nos textos curatoriais, que provocam o visitante a pensar criticamente.
Você já afirmou prezar por uma estratégia nas exposições que não reencena as dores da escravidão, mas enfrenta a história por outros caminhos. Como isso se imprime na exposição “Popular Populares”?
“Popular Populares” materializa essa estratégia ao deslocar o foco para a celebração da criatividade e da resistência presentes na arte popular. A exposição valoriza obras que muitas vezes foram desconsideradas, resgatando sua complexidade e sofisticação. Ao invés de reproduzir estereótipos, buscamos destacar como essas produções são fruto de uma história de invenção, oferecendo ao público uma perspectiva mais ampla sobre as contribuições culturais do povo negro e das comunidades periféricas. É um convite para enxergar a complexidade, a beleza e a força que emergem, mesmo em contextos adversos.
Quando pensamos na arte popular brasileira, qual história ela conta? Qual história ela questiona? De que maneira ela mobiliza a memória, a cultura e os símbolos do Brasil?
A arte popular brasileira conta a história do Brasil. Ela narra a trajetória de comunidades que, em diferentes contextos, mantiveram vivas suas tradições. Ao mesmo tempo, questiona a divisão entre “arte popular” e “arte erudita”, expondo como essas categorias, por muito tempo, serviram para marginalizar e hierarquizar produções culturais. Essa arte mobiliza a memória ao recuperar símbolos ancestrais, ressignificá-los e integrá-los ao presente. Por meio dela, vemos as diversas camadas do Brasil: do sincretismo religioso à força das manifestações populares, com uma forte carga de identidade e pertencimento.
A exposição abre com uma obra de Madalena dos Santos, que circula por galerias e em determinado momento deixa de ser olhada como um trabalho popular, tendo sua técnica de alto nível reconhecida como algo incomparável. O que esse tipo de trabalho anuncia e ensina para quem está ali?
A obra de Madalena dos Santos desafia as categorizações tradicionais, mostrando que a genialidade artística não se limita a rótulos ou origens geográficas. Quando sua técnica é reconhecida como algo incomparável, ela nos ensina a questionar os critérios que determinam o que é considerado arte “legítima”. Para quem está na exposição, sua obra é um convite para olhar com profundidade. Ela também anuncia uma quebra de paradigmas: a ideia de que a sofisticação e a inovação estão presentes nas expressões mais ligadas à ancestralidade e à cultura popular. É uma lição sobre valorização e reconhecimento de saberes historicamente desconsiderados.
O que as pessoas podem esperar da exposição “Popular Populares”?
Os visitantes podem esperar uma experiência instigante e desafiadora, que convida à reflexão sobre os limites entre o que chamamos de “popular” e “erudito”. A mostra oferece um mergulho nas raízes culturais brasileiras, apresentando obras que dialogam com questões de identidade, território e resistência.
Qual a importância dessas obras serem revisitadas, debatidas e analisadas à luz do contexto histórico e social relegado às pessoas negras do Brasil?
Revisitar essas obras é um exercício estético; um ato político e também reparador. Essas produções artísticas, muitas vezes ignoradas ou subvalorizadas, carregam consigo complexas técnicas e histórias. Debatê-las à luz do contexto histórico permite expor as desigualdades estruturais que relegaram pessoas negras a posições marginais, enquanto reconhecemos sua centralidade na construção da cultura brasileira. Analisar essas obras também abre espaço para novas narrativas, que desafiam o apagamento histórico e reafirmam a importância de preservar e amplificar as vozes que moldaram o Brasil.
No texto curatorial da exposição, você provoca os visitantes a pensarem: “quem define o que é ‘popular’? A ideia de ‘povo’ ainda é possível em nossos tempos?”. Por quais caminhos podemos ir para pensar nessas respostas?
Essas perguntas nos levam a refletir sobre os critérios de validação artística e a construção de categorias como “popular”. Podemos caminhar por uma revisão crítica dessas definições, pensando no “povo” como um conceito em transformação, que dialoga com questões de diversidade, representatividade e pertencimento.
A mostra questiona o conceito de “popular” como algo atribuído a ares étnicos, regionalistas, além de rótulos que limitam e estereotipam o lugar dos artistas. Pensando nisso, como podemos definir e explicar quem são os artistas e as artistas que compõem essa exposição?
Os artistas e as artistas dessa exposição são indivíduos cuja produção transcende os rótulos que lhes foram historicamente atribuídos. São criadores que, através de suas obras, expressam narrativas complexas, técnicas elaboradas e uma profunda conexão com suas comunidades e identidades culturais.
Como foi pensado o diálogo entre as obras e os artistas presentes na mostra? Todas as obras já faziam parte do acervo? Todas estão sendo expostas pela primeira vez?
O diálogo entre as obras foi cuidadosamente construído para revelar tanto os contrastes quanto as afinidades entre os artistas. A ideia era criar um percurso expositivo que mostrasse não só as singularidades de cada peça, mas também evidenciasse como elas se complementam na construção de uma narrativa coletiva. Todas as obras já faziam parte do nosso acervo. Embora nem todas sejam inéditas, muitas estão sendo apresentadas ao público em novos contextos, com leituras atualizadas que enriquecem sua compreensão.
Como tem sido o retorno do público? Poderiam citar reações comuns, que têm chamado a atenção?
O retorno do público tem sido interessante, carregado de descobertas. Muitos visitantes expressam surpresa ao perceber a complexidade e a sofisticação das obras expostas, destacando a quebra de preconceitos sobre o que é considerado “popular”. Há também relatos de pessoas que se identificam profundamente com as peças, conectando-as a memórias pessoais ou histórias familiares. Reações comuns incluem um sentimento de pertencimento e orgulho, especialmente entre visitantes negros, que veem ali um reflexo de suas culturas e tradições valorizadas em um espaço tão importante. Isso confirma o impacto transformador da exposição.
Laura de Las Casas é jornalista, especializada em comunicação política e educação midiática. Atua na área de conflitos socioambientais e direitos humanos em Minas Gerais e gosta de escrever sobre as histórias que encontra pelas frestas.