Exposição Criativos Por Tradição
Antonio Arantes A exposição “Criativos por Tradição”, que aconteceu durante o “Festival Artesol” de novembro de 2018 a janeiro de 2019, reuniu cerca de 300 peças de artesanato – criadas […]
Antonio Arantes
A exposição “Criativos por Tradição”, que aconteceu durante o “Festival Artesol” de novembro de 2018 a janeiro de 2019, reuniu cerca de 300 peças de artesanato – criadas com técnicas ancestrais e uma estética própria dos povos tradicionais, além de objetos de design, arte popular e artes plásticas criados com técnicas artesanais. A estética dessas peças traduzia a relação dos autores com os biomas do país, com suas memórias e saberes ancestrais, com símbolos da sua fé, com suas fantasias e afetos. A proposta de dedicar uma exposição inteira ao fazer artesanal em seu amplo contexto surgiu da necessidade de valorização dessa prática que nasce em rituais coletivos de socialização como expressão criativa, envolvendo saberes e fazeres ancestrais na perspectiva de repasse de conhecimentos que são um patrimônio cultural imaterial no nosso país.
Entre as peças estavam telas com rios inteiros bordados, pássaros criados a partir de galhos retorcidos da caatinga, brinquedos que representam a fauna amazônica, potes de cerâmica inspirados na arte rupestre do país, gibões e sandálias de couro, santos católicos, noivas, grávidas e igrejas de barro, trançados das mais diversas espécies vegetais, bichos realistas e figuras míticas esculpidas em madeira. Muitas dessas obras que traduzem em matéria e forma tantas peculiaridades da identidade cultural brasileira nasceram em casas de pau a pique em meio ao calor do sertão, ou em construções erguidas em palafita na Floresta Amazônica inundada. Os artistas, em geral, são dotados de talento, criatividade e uma incrível expressividade autoral que foi valorizada na exposição. Leia abaixo o texto curatorial do professor Antônio Arantes. (Em breve confira aqui o link do catálogo virtual da Exposição)
Artesãos, artesãs: criativos por tradição
Nascido na seca é a frase que melhor descreve as origens do Programa Artesanato Solidário. Ela se refere aos primeiros projetos de valorização de saberes locais – sobretudo do artesanato – para o enfrentamento da pobreza em pequenas vilas e cidades do semiárido nordestino, na grande seca de 1998. Forjava-se assim o DNA da ArteSol.
Cocriação
Esta mostra, idealizada e construída de forma colaborativa, apresenta o artesanato no Brasil a partir da intersecção de várias perspectivas. Entre elas, consideramos a diversidade étnica e socioambiental; o imaginar e o saber fazer, com qualidade; a autoria; a continuidade, a transmissão e o aprimoramento de conhecimentos; o equilíbrio entre sentidos locais e dinâmicas de mercado; e a sustentabilidade. Permeando tudo, no rastro da expansão da vida urbana, destacamos as tecnologias de comunicação e de informação que, nas últimas décadas, passaram a integrar – para o bem e para o mal – o cotidiano dos artesãos.
Redes translocais
Não só nos usos, não apenas nas trocas materiais, mas também na proteção patrimonial, o artesanato adquire novos valores à medida que participa das relações econômicas e políticas que articulam diferentes escalas da vida social: o nível local, a região, o país, a esfera internacional. Agentes locais conectados com organizações as mais variadas – governamentais ou não, nacionais ou internacionais – participam dessas articulações, de tal modo que atividades originárias de repertórios tradicionais, desenvolvidas por famílias, grupos de vizinhos ou em pequenas manufaturas, passam a integrar nichos importantes da vida contemporânea.
Os objetos exibidos nesta mostra ilustram como artesãos e artesãs interpretam, em suas obras, esse universo de trocas materiais e simbólicas. Atenta à sustentabilidade socioambiental desses processos translocais e ao comércio justo: eis a visada que a ArteSol adota em suas ações.
Criadores, mestres, executantes
Artesãos e artesãs não poderiam deixar de estar em primeiro plano neste evento. A força simbólica e estética de seu saber-fazer é apresentada em obras de mestres, como Espedito Seleiro, Vitalino, Isabel do Jequitinhonha, Paneleiras de Goiabeiras, Rendeiras de Divina Pastora. Essas criações, como tantas outras, tornaram-se matrizes das quais derivam inúmeras interpretações, inclusive as assinadas por designers, mestres em outras linguagens. Outros artefatos – talvez de autoria desconhecida, mas de origem segura – são produzidos em grandes números e há décadas em diversas localidades.
Seja como expressão de subjetividades ou testemunho do saber-fazer com qualidade, seja confeccionado para o uso próprio ou para a venda em eventos promocionais, lojas ou feiras livres, por ambulantes ou marchands e, mais recentemente, por meio do comércio eletrônico, o artesanato feito no Brasil habita os mais variados ambientes, veste e adorna pessoas em toda parte, está em nossas casas.
Barro, fibras, fios, madeira, couro e imaginação
O espaço expositivo desta mostra está estruturado em cinco salas, criadas em torno de cada uma das seguintes matérias-primas: barro, fibras, fios, madeira e couro. Em cada uma delas, destaca-se também um aspecto do artesanato, sem perder de vista o fato de que essas vertentes formam, no conjunto, um todo articulado presente em cada peça, em todas as salas:
- diversidade étnica e ambiental, focalizada através do trançado de fibras vegetais;
- diálogo com cotidianos em transformação, mostrado pela indumentária e pelos acessórios de couro de vaqueiros ou de motoqueiros do sertão;
- trânsitode repertórios técnicos e estéticos no espaço/tempo – entre povos e estratos sociais, entre saberes locais e design artístico, em reinterpretações –, exemplificado por tecidos, rendas e bordados;
- funcionalidade e força expressiva, que saltam aos olhos nas peças de barro; e imaginação, que se manifesta na plasticidade das madeiras.
Criatividade e tenacidade são as forças motrizes da transmissão e da constante renovação do saber-fazer artesanal. Referências tradicionais amalgamam-se a novidades de um mundo em transformação, que se amplia em espaços virtuais. Os objetos expostos celebram, assim, a inserção de saberes e fazeres de longa data no mundo contemporâneo.
O avesso
Fragmentos sonoros e imagens do cotidiano ambientam o espaço expositivo.
Painéis trazem à cena algumas das – infelizmente – poucas informações disponíveis sobre artesãos e artesanato no Brasil, inseridas nesta narrativa como notas de rodapé. São dados fragmentários sobre as condições de vida dos artesãos, a participação do artesanato na renda familiar, ações de salvaguarda e promoção implementadas pelo Estado, parcerias com designers.
Mapas apresentam a diversidade etnolinguística e a biodiversidade que constituem este universo. Indicam também a localização dos sítios de onde provêm as peças expostas, e outros onde habitam artesãos que têm sido parceiros da ArteSol desde 1998.
Tais referências formam, por assim dizer, o avesso de nossa exposição que, não por acaso, tem lugar neste Jardim Botânico. O diálogo entre criação artesanal e natureza, que resulta deste generoso acolhimento, homenageia três pilares da vida: diversidade, continuidade e transformação.
Antonio Arantes
Antropólogo (UNICAMP), Ex-Presidente ABA, IPHAN, Condephaat, Vice-Presidente do Comitê Científico Internacional do ICOMOS sobre o Patrimônio Imaterial