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Fé no barro: Irinéia e a memória do quilombo como resistência

Artesã Patrimônio Vivo de Alagoas Irinéia tem trajetória de reconhecimento como uma das mais importantes ceramistas brasileiras e será uma das artistas a expor suas obras na próxima edição do evento Arte dos Mestres, em São Paulo (SP).

Morena Melo Dias

17 de Junho de 2024


Fotos: Alagoas Feita à Mão e Theo Grahl

Toda imagem é uma memória de outras memórias. Há algo que se preserva e que se anuncia nessas reelaborações. No povoado Muquém, remanescente do Quilombo Zumbi dos Palmares, localizado em Alagoas, a Mestra Artesã Patrimônio Vivo de Alagoas, Irinéia Rosa Nunes, conta histórias a partir do barro, em esculturas que ficaram conhecidas em galerias e museus ao redor do mundo.

As cabeças, peças mais conhecidas da artesã, têm os traços quilombolas desenhados no rosto da artista. Um símbolo da presença que resistiu através dos tempos e do processo de escravização que marcou a história do Brasil, último país da América Latina a abolir o sistema escravagista, em maio de 1988. A história de Irinéia com o barro começou cedo e de maneira despretensiosa a partir da inspiração de sua mãe que fazia panelas, assim como muitas mulheres no povoado Muquém cujo barro é uma das principais atividades.

“Eu gostava de pegar o barro e fazer bonequinhas. Também fazia panelinhas pra brincar de cozinhado”, conta Irinéia, se referindo a uma brincadeira muito comum no interior do Nordeste, em que as crianças pegam folhas e sementes para brincar de cozinhar. 

Tempos depois, a brincadeira se tornaria ofício e Irineia faria história como artesã. Em mais de 40 anos de trajetória trabalhando com o barro, ela expôs em mostras de arte reconhecidas internacionalmente, como a Expo Milão, que reúne artistas de 140 países na Itália. 

De brincadeira para atividade artística, com traços autorais que impressionam, a história de Irinéia seria moldada à mão, aos poucos, com firmeza e uma dose de fé. É que o costume de oferecer aos santos esculturas de barro com partes do corpo para pedir por cura e saúde acabou transformando a vida da artesã.

“Depois comecei a ajudar minha mãe com as encomendas, chegava encomenda de panela, mas às vezes chegava encomenda de uma mão, um pé, que era pra o pessoal fazer promessa. Foi aí que um dia eu recebi a encomenda de uma cabeça”, conta Irineia. 

Para a artesã, o desdobramento da encomenda em obra de arte aconteceu naturalmente, por desejo e expressão. “Eu gostei de fazer a cabeça, depois da encomenda comecei a fazer por conta própria, depois a desenhar cabelos diferentes e assim foi se fazendo as cabeças de Irinéia”, fala orgulhosa.

Além das esculturas de cabeças, a artesã também faz a jaqueira de pessoas, peça criada pela ceramista depois da enchente que atingiu o Muquém em 2010, como conta a sua filha Mônica Nunes. “A jaqueira salvou 52 pessoas da cheia, inclusive eu e o meu irmão. Todo mundo que conseguiu subiu na jaqueira e ficou lá até a água baixar”. Uma escultura de memória, que traz, assim como as cabeças, a reelaboração da resistência da sua comunidade. Uma espécie de fé que se tem no barro e na vida, como conta a artista. “Você sabe, minha filha, casa de ferreiro, espeto de pau. Eu nunca fiz nenhuma peça minha para pagar promessa não, como o pessoal encomendava antigamente. A minha fé é outra”, explica.

A memória do beijo

A terceira escultura de Irinéia que se destaca nos salões de arte popular ficou conhecida como “O beijo”. Uma obra criada por ela com o parceiro na arte e na vida, Antônio Nunes, o Toinho. “Ele era muito beijoqueiro e por causa disso a gente criou essa peça”, conta Irinéia.

A peça ganhou uma versão gigante, em homenagem à artista, instalada na orla de Maceió, capital de Alagoas. A obra faz parte do Circuito Alagoas Feito à Mão que também conta com réplicas gigantes de peças de outros mestres artesãos Patrimônios Vivos alagoanos, como André da Marinheira e João das Alagoas. O beijo, antes feito pela artista em parceria com Toinho, agora se tornou memória do amor e segue sendo moldado por Irineia depois que seu marido faleceu, em 2020. 

Arte dos Mestres

Com a segunda edição prevista para o segundo semestre de 2024, a Exposição e Feira Arte dos Mestres vai reunir artesãos de todo país, em São Paulo. Irineia é uma das artistas participantes. “Estou muito feliz com o convite. Vou estar lá com Mônica, para falar com as pessoas e mostrar a nossa arte”, disse a ceramista que já está trabalhando nas peças que levará para o evento. 

Na primeira edição do evento, mais de 8 mil pessoas estiveram presentes para prestigiar o trabalho de 21 coletivos e mestres artesãos de todo o Brasil. Para essa edição, Irineia prepara esculturas das suas reconhecidas cabeças e, também, o beijo, em homenagem à memória de Toinho. Sua filha, Mônica, que hoje assina as suas próprias peças, vai acompanhar a mãe na exposição. E assim novas memórias seguem sendo construídas. 

Morena Melo é jornalista, publicitária e apaixonada por arte popular. Mestra em Comunicação pela UFPE, atualmente desenvolve pesquisa sobre música e gênero em intersecção com os estudos decoloniais, no doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia.