Flor do Barro: as mulheres na arte figurativa do Alto do Moura
O barro deixa rastros no chão de cimento batido, onde as crianças sentadas, bem junto à barra da saia da mãe, imitam seus movimentos precisos e delicados, modelando seus brinquedos […]
Raquel Lara Rezende
O barro deixa rastros no chão de cimento batido, onde as crianças sentadas, bem junto à barra da saia da mãe, imitam seus movimentos precisos e delicados, modelando seus brinquedos de barro. Essa é uma cena viva na memória de quase todas as artesãs do grupo Flor do Barro, em Alto do Moura o famoso bairro de Caruaru que concentram alguns dos mais icônicos artistas populares de Pernambuco. Como conta a artesã Drielle Silva, “toda criança do Alto do Moura, o primeiro brinquedo que ela tem em casa é um pedacinho de barro, porque é o que tá na mão da mãe”.
O polo conhecido como a cidade do barro, traz logo na entrada um portal que marca a chegada em um universo diferente: “Bem-vindo ao Alto do Moura, o maior centro de artes figurativas das Américas”, diz o letreiro. E de fato, ao caminhar pelas ruas do lugar, é possível se sentir transportado para outro universo. Ao passar pelas tantas lojas e oficinas de artesanato, o olhar cruza com os olhos pintados dos bonecos e das bonecas de barro. Olhos de barro que refletem muitas vidas forjadas junto ao fazer e ao criar.
Uma das artesãs e poeta, Cleonice Otília, conhecida como Nicinha, se refere ao barro como “ouro negro, minha caneta sem bico, porque com ele eu escrevo o que eu quiser, a poesia que eu quiser”. Para ela, Mestre Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), um dos percussores do barro figurativo no Brasil, foi seu professor e sua Faculdade e seu diploma, um bolo de barro com o qual segue criando e se descobrindo, enquanto artesã, artista e poeta.
Mestre Vitalino nasceu na zona rural de Caruaru e começou a modelar animais, como boi e burro, com os restos do barro utilizado por sua mãe, Josefa Maria da Conceição, na produção de utensílios domésticos. Passou a moldar figuras que representavam seu cotidiano e o seu imaginário, desenvolvendo habilidades e técnicas únicas.
A brincadeira tornou-se seu ofício e o de mais de 700 pessoas, homens e mulheres que hoje vivem do barro, no Alto do Moura, para onde se mudou em 1948, e se fez Mestre, no sentido mais genuíno que esse título traz, pois além de dedicar toda sua vida ao artesanato, passou o seu saber a quem quer que tivesse interesse em aprender, sempre com muita humildade.
No bairro, assim como em muitas outras localidades de Caruaru, já muitas mulheres trabalhavam como louceiras e conservavam as técnicas indígenas herdadas. Em muitas etnias indígenas, é a mulher quem tem permissão para fazer a extração do barro e manipulá-lo. E na região de Caruaru, também era a mulher quem pegava o barro, pisava, peneirava e o moldava, para fins domésticos, sendo uma atividade restrita a elas e às crianças. A partir do início do século XX, a produção se transformou em uma fonte de renda familiar que se fortaleceu ainda mais, com a popularização da Feira de Caruaru, registrada em 2006 como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Após a chegada de Mestre Vitalino ao Alto do Moura, a configuração econômica e cultural do bairro mudou bastante, e a produção do barro figurativo passou a fazer parte da vida de cada vez mais famílias. A partir de 2003, com as políticas públicas para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, muitos Mestres foram reconhecidos, como Zé Caboclo, Manuel Eudócio, Luiz Antônio, Galdino, seu Elias, entre outros. Entretanto, as mulheres não receberam o mesmo reconhecimento, embora também trabalhassem com o barro, ajudando inclusive os esposos, pais e irmãos.
“Eles foram sendo reconhecidos e as mulheres não, embora tivessem um trabalho maior que faziam de casa e eles saíam. As mulheres trabalhavam em casa e os homens é que saíam com o artesanato. Acredito até, que pelo pensamento do tempo, de ser o homem o responsável por prover a casa, eles não falavam que a esposas trabalhavam em casa também. Não tinha essa chance da mulher se mostrar e ganhar o seu valor. E foi assim por muito tempo”, conta Drielle Silva.
Apenas dona Ernestina, contemporânea de mestre Vitalino, e considerada a primeira mulher em Pernambuco a confeccionar cerâmica figurativa para fins comerciais, recebeu o título de Mestra, antes das políticas públicas para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. A criação do Grupo Flor do Barro tem como propósito mudar essa realidade e trazer à luz as tantas mulheres que vivem do barro e com ele criam sua arte e sua alegria. Além disso, a união das artesãs também tem o intuito de fortalecer o repasse da tradição aos mais novos.
Desabrochar das Flores do Barro
Socorro Rodrigues, filha do Mestre Zé Caboclo, conta que as mulheres começaram a se reunir umas nas casas das outras e assim foram dando forma, corpo e alma ao grupo. O nome surgiu aos poucos, com o desabrochar do coletivo e das mulheres artesãs, formando um “lindo jardim de flores do barro”, como gostam de brincar. Muitas delas têm nomes de flores, como Carmélia, Margarida, Rosa, entre outras.
“O grupo é pra gente se fortalecer mais como mulheres e nós que trabalhamos, cuidamos dos filhos e ainda ajudamos os maridos a pintar as peças deles, e quando se fala do artesanato, mais se fala dos artesãos”, diz Socorro. Nerice, também artesã do Flor do Barro, fala do grupo com muita alegria, por ser um espaço onde as mulheres assumem outro lugar, para além do papel de mães e esposas. Ali elas são mestras, artistas, artesãs, “seja como você quiser chamar. É mulher sim, mãe sim. E também somos artesãs”.
Assim, em 2014 nasceu o grupo Flor do Barro, com 14 mulheres. Hoje elas já são mais de 20 artesãs dedicando-se a mostrar que as mulheres também “estão com o poder da arte”, como afirma Socorro. Em maio de 2019, o grupo concretizou o sonho de ter um espaço para fazer o repasse do saber, local oferecendo oficinas de modelagem de barro para crianças e adultos. Além disso, o espaço está aberto para outros grupos artísticos de Caruaru de música, dança, poesia que expressem a cultura local.
Mesmo com pouco tempo de existência, o Flor do Barro já recebeu importantes prêmios estaduais, como o Prêmio Ariano Suassuna em 2019 e o Prêmio de Cultura Popular em 2018; além de já ter participado de várias feiras nacionais e exposições em galerias e espaços culturais. A primeira exposição retratava o cotidiano de Alto do Moura com peças de vendedores de quebra-queixo, carrinho de rolimã, as louceiras e várias brincadeiras infantis.
Cada uma das artesãs, por sua história e pelas marcas que trazem com ela, trazem um olhar, uma perspectiva única sobre a vida no Alto do Moura e traduzem no barro diferentes aspectos de seu universo. Juntas, elas constroem uma história múltipla e rica acerca da vida e da cultura local. Nerice Otília, por exemplo, gosta de retratar as profissões que as mulheres têm ocupado como as de pipoqueiras, caminhoneiras, juízas, jogadoras de futebol, entre outras; Cleonice Otília já traz um olhar mais para os aspectos político-sociais de Alto do Moura e do Brasil, de forma geral, e também se dedica, assim como Carmélia Rodrigues e Ivanise Silva, às festas populares, como o São João, Reisado, Maracatu, Mazurca, Novena, entre outras.
Socorro conta que produzir a cerâmica é uma forma de manter viva as suas memórias de infância. “A minha avó, a minha tia, tudo fazia, a minha bisavó fazia brinquedinho de criança. E é isso que nós também queremos resgatar, pra não deixar morrer. Que nem as brincadeiras de crianças, os pais olham e lembram, porque as crianças hoje não brincam mais. No atelier eu coloco o peão de madeira pra vender, porque os pais mostram pros filhos e levam pra casa, as bolinhas de gude também”.
Mestra Marliete ficou conhecida por moldar a cena de sua avó contando histórias para os netos.“Tudo o que a gente vivenciava, a gente retrata com o barro. Quando a gente tinha que pegar água pra tomar banho, porque não tinha água encanada, e a gente tomava banho de cuia. Tudo isso, eu moldo no barro, o passa anel, o passarás, que é uma brincadeira que a gente se brincava muito de criança. Também faço a menina pulando corda, que a gente gostava muito de pular corda, a amarelinha que a gente riscava no chão pra brincar”, conta.
Cleonice Otília, a Nicinha, diz que se considera uma “barreira”. “Vou pra barreira do barro, cavuco e trago o barro na cabeça, amasso com o pé”. E esse é um legado que lhes foi deixado pelos mestres e mestras que passaram por Alto do Moura e que elas querem repassar para os que estão chegando. “Porque todo mundo passa, mas a história fica. E a história é muito importante pra que venham os outros e conheçam nossa história, nossa arte”.
Rede Artesol
Raquel Lara Rezende
Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.