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Heranças culturais mais perto de nós

No Pará, o projeto “Replicando o passado”, idealizado pelo Museu Goeldi, estimula a produção de réplicas de peças de cerâmica das culturas Marajoara, Santarém, Aristé e Maracá a partir de uma cuidadosa pesquisa junto ao acervo da reserva técnica do Museu. A proposta é potencializar a produção oleira de Icoaraci (distrito de Belém) inspirada nas referências arqueológicas da Amazônia.

Adélia borges


 

Uma vez li um jornalista a quem admiro escrever que nós brasileiros somos uma civilização pobre de referências históricas, por sermos um país novo, sem lastro. Fiquei encafifada com a afirmação, reputando-a a uma ignorância a respeito de nós mesmos. Não estou apontando o dedo para ele e propositalmente deixo de citar seu nome. Assumo esse desconhecimento eu também. Por isso, o melhor aqui é usar a primeira pessoa do plural. Nós, brasileiros, acostumamo-nos a pensar que passamos a existir em 1500, quando os portugueses aqui aportaram. Chamar de “descobrimento” foi um dos fatos que fez esse passado ficar enevoado, parecendo pouco importante.

O projeto “Replicando o passado”, empreendido pelo Museu Emílio Goeldi, em Belém (PA), pode contribuir para encurtar essa lacuna no que se refere às civilizações amazônicas, através da produção seriada de réplicas de peças do seu acervo. A iniciativa vem sendo gestada desde 2017, numa parceria entre a equipe de arqueólogos do Museu, ceramistas do bairro de Paracuri, distrito de Icoaraci, na capital paraense, e o Liceu Escola Mestre Raimundo Cardoso.

O foco são as culturas Marajoara, Santarém, Aristé e Maracá, que floresceram sobretudo a partir dos anos 1.000 e desapareceram por volta do século 16, todas do baixo Amazonas deixando um legado impressionante moldado no barro. Estatuetas, pratos, vasos, urnas funerárias, tigelas e tangas replicadas a partir dessa produção milenar já estão disponíveis para compra junto aos artesãos.

“Há tantos modos diferentes de fazer cerâmica quantas são as línguas e culturas indígenas, formando um fantástico e complexo mosaico de formas e estilos regionais”, diz a arqueóloga Cristiana Barreto, que coordenou o projeto em conjunto com Helena Lima, curadora do Museu.

Desde os anos 1960 oleiros da comunidade de Paracuri fazem souvenirs com cópias dos estilos locais, destinadas ao mercado de turismo. O maior destaque coube a Raimundo Saraiva Cardoso (1930-2006), conhecido como Mestre Cardoso, que em 1968 iniciou a produção de réplicas artesanais com o apoio de pesquisadores da área de arqueologia do Museu Goeldi. Trinta anos depois, em 1998, uma parceria entre o Sebrae e o Museu possibilitou o curso “Culturas Pré-históricas da Amazônia”, que resultou na publicação “Arte da Terra: resgate da cultura material e iconográfica do Pará”, cujas ilustrações vêm servindo de modelo para muitos ceramistas. A linguagem predominante, contudo, foi se distanciando dos originais e passando a seguir simulacros.

“A inspiração vinda dos desenhos e técnicas das cerâmicas marajoaras, tapajônicas e outros registros arqueológicos, como a arte rupestre, vem alimentando composições cada vez mais complexas e híbridas no artesanato de Paracuri, onde o mercado não deixa de ter também uma forte influência”, afirma um documento do projeto. “Contudo, ao longo dessa história, pouco do conhecimento sobre o passado arqueológico da região vem sendo incorporado nos objetos; os desenhos modificados acabam esvaziados de seus significados originais para se tornarem apenas emblemas de uma identidade amazônica genérica (Barreto 2003; Schaan, 2006).”

A ciência e o saber popular

Por considerar que a produção oleira local constitui um atrativo turístico e comercial com muito potencial para a manutenção de um saber milenar combinada à geração de renda para a comunidade, o projeto “Replicando o passado” procurou fazer uma intervenção positiva nesse processo.

O primeiro passo, em 2017, foi promover o contato direto e cuidadoso dos artesãos com as peças da reserva técnica. Muitos as conheciam apenas por meio de fotos em catálogos ou livros, que nem sempre retratavam todos os lados da peça ou apresentavam uma escala. O compartilhamento de conhecimento teórico abrangeu as diferentes culturas arqueológicas da Amazônia, o legado das culturas indígenas do passado e o contexto das obras. A escolha de quais peças seriam replicadas foi feita de comum acordo entre oleiros e estudiosos, levando em conta critérios como o desejo de contemplar peças ícones do Museu e cobrir a variedade de culturas representadas nas cerâmicas do acervo, coletadas por personagens famosos da arqueologia amazônica, como Emílio Goeldi, Curt Nimuendaju e Betty Meggers. Foram consideradas também as complexidades técnicas e estéticas de cada artefato.

A fase de desenvolvimento técnico foi longa, em busca da fidelidade aos originais. “Quando um objeto de cerâmica é queimado, ele encolhe de forma diferente em cada parte. As cores também se alteram. Um artesão fez uma comparação interessante: uma coisa é pegar um papel, amassar e jogar no lixo; outra é pegar o papel amassado e fazer outro amassado exatamente nos mesmos lugares. Precisou de muita experimentação e pesquisa até chegarmos a resultados satisfatórios”, afirma Cristiana Barreto. Os ceramistas também experimentaram técnicas diferentes de modelagem. Habitualmente, eles usam o torno e passaram a adotar a prática milenar de sobreposição de roletes. Os estudos estimularam o uso de diferentes argilas e antiplásticos, tecnologias que também não eram exploradas nas cerâmicas comerciais de Icoaraci.

Foram eleitas, no total, 21 obras das quatro culturas para serem trabalhadas. Um carimbo foi colocado na base da peça marcando, de forma permanente, que aquela não é um original e sim uma réplica. A comunicação do projeto também inclui folhetos explicativos e etiquetas individualizadas com informações sobre a peça original e a cultura arqueológica de onde ela provém. Esses materiais contaram com um a identidade visual criada a partir da colaboração da designer paraense Lídia Abrahim.

O processo de confecção de duas coleções didáticas de réplicas, uma para o Museu (para uso em ações educativas, exposições em eventos e para acessibilidade a deficientes visuais), e outra para a comunidade do Paracuri (para uso como referência para os ceramistas) está em andamento. Cada peça do projeto passa por uma avaliação final pela equipe do Museu, que gera uma certificação. Os artesãos ficam livres, então, para elaborar miniaturas, sem certificação.

Trata-se, como se vê, de um projeto “redondo”. O trabalho da comunidade oleira é revitalizado e os artesãos têm novas perspectivas econômicas. O Museu Goeldi cumpre sua função de salvaguarda e divulgação de seu acervo de forma inclusiva, criativa e colaborativa. Cabe lembrar que ele é detentor de uma das mais expressivas coleções de arte pré-cabralina do país. O acervo de sua reserva técnica de arqueologia tem mais de dois milhões de itens, e foi tombado já em 1940 pelo Iphan, uma riqueza ainda mais relevante depois da tragédia do incêndio do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

E nós, cidadãos, temos a oportunidade de maior aproximação em relação ao patrimônio cultural amazônico. Pesquisas arqueológicas recentes mostram que temos sim um passado de sociedades complexas na Amazônia. O contato com os europeus gerou a dizimação em massa das populações indígenas, por epidemias, guerras e escravidão. Temos agora a oportunidade de deter o genocídio e de valorizar formas de desenvolvimento sustentável da região que valorizam e reverenciam os conhecimentos milenares de suas populações.

Helena Pinto Lima, pesquisadora titular do Museu e coordenadora do Projeto Replicando o Passado, vê nas cerâmicas arqueológicas e nas réplicas produzidas pelos ceramistas de Icoaraci “uma potencialidade incrível de estabelecer pontes de diálogos entre diferentes pessoas, coletivos e entre diferentes tempos. Seus significados e ressignificações trazem a arqueologia para o presente. Muita gente pensa que a arqueologia está voltada ao passado. Mas, é no presente, ‘no hoje’ que ela acontece. Eu gosto de pensar ainda que que a arqueologia nos ensina lições importantes para o futuro.”

 

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Adélia Borges é crítica, historiadora de design e curadora independente. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo em 1973, tem textos publicados em sete línguas e é autora ou co-autora de 34 livros. Palestrante frequente, já se apresentou em 22 países. Como curadora, fez exposições em várias instituições do Brasil e do exterior. Desde 2016 é consultora curatorial do MASP Loja. Integra também o Conselho técnico consultivo da Artesol. www.adeliaborges.com