Histórias entalhadas na madeira
As esculturas esculpidas em diferentes tipos de madeira pelos artesãos brasileiros revelam a potência criativa e o apuro estético dos povos tradicionais de territórios como o Parque indígena do Xingu, o sertão baiano, ou o Pantanal mato-grossense. Elas trazem pra decoração contemporânea não apenas as histórias de onde vieram, mas uma expressão lúdica que nos conecta com nossas raízes e nossa identidade.
Lilian Caminha
Sabe aquela peça na estante, que, mesmo cercada de vários outros objetos, chama atenção pra ela e faz você se aproximar e conferir mais de perto os detalhes? Entre livros, objetos e arranjos florais, as peças entalhadas em madeira esbanjam personalidade e nos despertam a curiosidade sobre sua história, seu processo de criação, seu material e tudo o que ela nos pode contar.
Por isso, tenho a certeza de que, se você já passou por uma obra do mestre Marcos de Sertânia, foi atraído para mais pertinho paracontemplar as expressões de seus cachorros logelíneos. Artista de Sertânia, interior de Pernambuco, o artista é conhecido por suas esculturas muito magras, que retratam a realidade da vida no semiárido. O mestre tem como inspiração mais especificamente a cadela Baleia, do livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. A referência é um reflexo da própria vida do artista que já sofreu com a seca e ajudou diversas vezes a mãe a buscar água em açudes longe de casa. Hoje, sua produção artística é a garantia de renda digna para sua família. E sim! Suas peças contam essas histórias!
O objeto artesanal é fruto do olhar do artista para o mundo e para a realidade que o cerca que se expressa através de matérias-primas, formas, cores, desenhos e texturas. Desde a escolha de um galho de madeira caído até os pequenos e precisos gestos que o transformam em bichos realistas, poltronas-troncos, santos ou outros personagens míticos, tudo faz parte de um ritual que torna cada peça única. Quando inseridas na ambientação de um espaço, elas não são apenas decorativas, pois trazem consigo história, cultura e tradição.
Uma questão que muitos apaixonados pela arte popular costumam trazer para os escritórios de decoração é: como usar, de forma contemporânea, essas peças nos ambientes urbanos? Uma boa dica é misturá-las com outros elementos naturais de diferentes texturas que trazem aconchego e conforto para o ambiente. Pense em uma sala composta por um sofá confortável, uma poltrona de design, uma marcenaria moderna, um tapete aconchegante e um banco indígena, por exemplo. Essa mistura destaca a peça artesanal e compõe de forma leve e contemporânea toda a decoração.
As peças esculpidas em madeira podem ser usadas de diversas formas, na composição de uma estante, no aparador próximo à mesa de jantar, na mesa de centro ou na cabeceira da cama. Já as peças maiores podem ter ainda mais destaque, seja num hall de entrada ou no piso ao lado de um vaso, são inúmeras opções de inserir essas obras na nossa casa.
O aconchego durante o isolamento
Esse cantinho aconchegante da casa da administradora de empresas Larissa de Moraes Moreiraconta várias histórias. Sempre apaixonada por artesanato, ela adquiriu as peças do Marcos de Sertânia durante uma viagem a Pernambuco. “Sempre gostei de artesanato. Guardo lembranças de minha avó e suas irmãs crochetando sapatinhos e mantas em minha infância. As cores, texturas e a delicadeza dos trabalhos me encantavam, trazendo até hoje sensações de bem-estar”, conta Larissa, que sempre que visita um lugar novo, procura peças artesanais que representem a viagem e criem memórias afetivas.
“Hoje, admiro as pessoas por trás das peças, suas histórias, origens e sua cultura. Cada artesão imprime um pouco de si mesmo em sua obra. Um exemplo é o próprio Marcos de Sertânia. Lembro-me dele contando que aprendeu sozinho a fazer esculturas, mexendo nas ferramentas de seu avô. Observava o avô fazer pequenas peças para vender e começou a fazer as suas. Percebeu que adorava fazer tudo alongado e comprido e identificou anos depois que essa seria sua marca pessoal ao esculpir em madeira”, conta a administradora.
O desejo de criar cantinhos repletos de memórias e afeto tem se tornado mais forte durante a pandemia. È comum sentirmos essa necessidade de acolhimento, em meio a tudo o que estamos enfrentando coletivamente, pois nunca vivenciamos nossa casa tanto quanto agora.
“Minha casa é meu refúgio, meu lugar de refazimento. Recentemente, mudei para um apartamento em Botafogo (no Rio de Janeiro) e minha decoração foi pensada com o escritório Nanquim Interiores para refletir minha paixão pelo natural e artesanal. O projeto mistura luminárias em palha feitas por artesãs de Alagoas, esculturas em madeira do Marcos, cabeça de barro de Cida Lima, tapete de tear e móveis contemporâneos ou vintages, como uma cadeira dos anos 50 que pertenceu a meu tio-avô. Ele tinha uma oficina de restauro no mesmo bairro de Botafogo, no meio do século passado”.
“Acredito que a casa precisa refletir nossa história, nossos afetos, nossa identidade. Hoje e cada vez mais, as casas precisam acolher, abraçar e até mesmo curar seus moradores”, defende Larissa.
Um único objeto tem o poder de transformar um ambiente, ao mesmo tempo que pode contar uma história e refletir aquilo que experienciamos. Cada arte em minha casa reflete quem sou e o que amo”, complementa.
Nos mais sofisticados projetos residenciais, cada detalhe faz toda a diferença. A iluminação, por exemplo, tem um papel essencial na decoração. Ela é a alma do ambiente e valoriza ainda mais o mobiliário, os revestimentos, os materiais e as peças decorativas, além de trazer conforto e aconchego para o espaço, quando bem pensada.
Ter um foco de luz sutil ou uma iluminação indireta pensada exclusivamente para destacar uma peça artesanal pode aguçar ainda mais o olhar para os seus detalhes e tonar a ambientação mais elegante. Em espaços comerciais ou em locais por onde passam muitas pessoas, essas peças também podem ganhar destaque na decoração. É o caso do Verdegreen Hotel, localizado em João Pessoa, na Paraíba. O projeto de arquitetura e decoração do espaço é assinado pela renomada arquiteta pernambucana Janete Costa (1932 – 2008), que sempre valorizou a arte popular e o artesanato brasileiro em seus ambientes.
Em uma das áreas comuns do hotel, a obra “Canoa”, do artista Mestre Fida está posicionada em uma parede de tijolo aparente, ficando em evidência com uma iluminação especial. Os revestimentos mais rústicos também contribuem para valorizar as peças de artesanato ou arte popular.
Quando o regionalismo encontra o design
Na Casa Cor de Pernambuco de 2019, o Estúdio Noi projetou um espaço bem especial para: a Varanda do Salão, um espaço bem aconchegante, com muitas cores, plantas e obras artísticas. A ideia do escritório Estúdio Noi Arquitetura, composto pelas arquitetas Anely Camarotti, Flavia Ebrahim e Roberta Reis foi criar um ambiente contemporâneo e aconchegante, buscando explorar as diversas possibilidades de vivência para esta área.
“A Varanda do Salão possui 40m² e nela foi possível distribuir um espaço para contemplação envolto em uma área verde e áreas de convivência, com um ambiente de estar mais sofisticado e o tão almejado espaço gourmet. O mobiliário escolhido traduz um ar descontraído em alguns pontos e todo requinte necessário para reunir a família. O tom verde folha que foi utilizado nas paredes e teto e a presença de produtos naturais valorizam a natureza para nosso ambiente, que destaca mobiliários, quadros e coleções de obras de arte com um estilo regional que dão a identidade ao nosso projeto”, conta Roberta Reis, arquiteta do Estúdio, localizado em Recife, Pernambuco.
“Em relação às peças artesanais, sempre buscamos valorizar nossa terra, escolhendo artesãos locais aqui de Pernambuco, ajudando assim a economia local. Buscamos também trazer uma variedade de estilos, como cerâmica crua e envernizada, madeira entalhada, com o intuito de mostrar nossa diversidade de modelos e estilos”, conclui Roberta.
Outro escritório que investe nas produções manuais e nas técnicas artesanais em seus projetos é o Baka Studio Design, que desenvolve no Brasil um trabalho em parecia com algumas famílias de indígenas da tribo Kalapalo e Waura do Xingu, e com artesãos do centro-oeste, norte e nordeste do Brasil.Além disso, em São Paulo, o estúdio realiza um projeto de capacitação de mulheres de baixa renda e imigrantes africanos, desenvolvendo produtos de costura, tricô, crochê e bordado.
Através da iniciativa, produzem peças, ministram cursos e ainda fazem trabalhos de produção de espaços para arquitetos ou para a divulgação dos próprios objetos.“Fotos ambientadas são muito importantes paras as pessoas visualizarem como usar um produto étnico, por exemplo, na decoração de suas casas”, conta Alice Maria Gianini Buratto, fundadora do Baka Studio Design.
Se inspirar nesse tipo de projeto de ambientação que valoriza elementos da brasilidade de forma harmônica e moderna é uma boa dica para começar a inserir o artesanato na sua decoração. Mas a dica mais importante na decoração é que não há regra mais importante que a sua criatividade ou o seu afeto por objetos e elementos que tenham significado para você e sua família. O nosso convite é para você deixar cada cantinho da sua casa te lembrar de histórias, afetos, sensações, cheiros, viagens e momentos.
Rede Artesol
Lilian Caminha
Jornalista, designer de interiores, arquiteta em formação e apaixonada por transformar os espaços e a vida de quem os ocupa