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Jasson e a fantasia talhada no sertão

Por: Artur André Lins, sociólogo pela UnB, mestrando em sociologia na Unicamp. Atualmente, dedica-se a um projeto de pesquisa sobre o mundo da arte popular e do artesanato brasileiro, com foco no litoral e sertão de Alagoas, onde investiga a conexão entre a cultura popular, o território onde ela está inserida e o mercado contemporâneo. 01/08/2019

Artur André Lins


A poucos quilômetros da calha do Rio São Francisco, no estado de Alagoas, passando por uma sinuosa estrada de terra, em um pequeno povoado chamado Monte Santo, no perímetro que abrange o município Belo Monte-AL, vive um homem humilde, sereno e curioso. Jasson Gonçalves da Silva, nascido em 1954, figura hoje entre os artesãos brasileiros cujas peças são cobiçadas por colecionadores, lojistas e galeristas de todo o país.

Intérprete, não procura imitar a realidade, nos ensina a ver ao fantasiá-la através de golpes na madeira. Inquieto, desperta antes de o sol nascer e põe-se fora da cama para laborar em formas o imaginário que se expressa em suas esculturas. Se talhar deixa calos nas mãos, considere o quanto criar pode gastar o cérebro: “a gente quebra a cabeça”, afirma o artista.

Contar a história de um indivíduo e sua criação, nesse universo vasto e complexo do artesanato e da arte popular brasileira, nos coloca uma pergunta central: como surge um artista popular? Por óbvio, não existe uma fórmula única que sirva de resposta a esta indagação. O pressuposto, nesse caso, é o predicado “popular” que se segue ao substantivo “artista”, muitas vezes criticado por reduzir um fenômeno da sensibilidade ao seu lugar de origem. À parte esta polêmica de nomenclatura, estamos falando da atividade de autores procedentes das camadas pobres da sociedade, geralmente de origem rural, por vezes com trânsitos pelo meio urbano, e que desenvolvem habilidades características de ofícios ligados ao trabalho manual.

Jasson, desde criança, viveu e se criou na roça, junto com os seus pais e familiares dedicado ao trabalho braçal pesado sob o sol quente do sertão. Além do manejo da terra e da criação de animais, a rotina na roça exige o aprendizado de manufatura rudimentar, como a produção de carros-de-boi, cercas feitas com mourão e estacas de madeira, elaboração de ferramentas – chibata, enxadeco, machado, foice – , construção de casas, tradicionalmente de taipa, em que se cobre o telhado manualmente, entre outros conhecimentos repassados de geração em geração. Jasson comenta, inclusive, que seu finado avô era mestre em construir o fuso da casa de farinha, tecnologia antiga feita a partir do entalhe da madeira.

“Eu nasci e me criei pelejando com a madeira. Na hora de partir para a obra de arte não teve mais tanto sacrifício”, afirma Jasson.

Em dado momento, já na vida adulta, Jasson se mudou para Camaçari-BA, município da Região Metropolitana de Salvador. Lá, passou a trabalhar como servente, desempenhando atividades diversas, depois como carpinteiro, soldador, mecânico e pedreiro. Nessa época, produziu muitos móveis, bancos, armários, mesas de escritório, fôrmas de pilar e lajes feitas no madeirite. Ele relata que passou cerca de 15 anos na Bahia, quando decidiu retornar para sua terra natal.

As trocas culturais entre o campo e a cidade através da arte popular

Alguns anos após o seu retorno, em 2012, recebeu uma provocativa visita de um casal de galeristas de Maceió, Maria Amélia Vieira e Dalton Costa. Proprietários da Galeria Karandash, os dois artistas e colecionadores garimpavam potenciais artistas populares por ocasião de um projeto cultural desenvolvido com comunidades ribeirinhas da região do Baixo São Francisco. Depararam-se com um homem à época entretido com moldes em gesso e cerâmica e o desafiaram a criar esculturas em madeira. Jasson se lançou à missão, primeiramente, de criar imagens religiosas – São Francisco, São Jorge, São Sebastião, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Aparecida –, obras feitas sob encomenda. Com o passar do tempo, as imagens de santo deram vez a maletas, garrafas, cajados e, posteriormente, carrancas muito originais.

Esse primeiro estímulo à produção do artista suscita um aspecto importante da realidade: a presença dos mediadores: galeristas, lojistas, negociantes, colecionadores, divulgadores, designers, pesquisadores, curadores, fotógrafos, agentes de governo e do terceiro setor, os quais permitem a passagem do mercado local à metrópole, muitas vezes quebrando a condição de isolamento da vida rural. A arte popular, portanto, pode ser uma arte de relação entre o campo e a cidade, situada em uma zona de contato nem sempre tranquila, mas assimétrica em muitos casos, havendo atritos frequentemente observáveis. Nessa ponte entre lógicas e mundos distantes, trocas materiais e simbólicas proporcionam o que na literatura especializada nomeou-se de “circularidade cultural”, o intercâmbio entre diferentes camadas da sociedade.

Devido ao encontro com os galeristas da Karandash, a partir de 2015 Jasson se inseriu no circuito da produção artesanal do sertão de Alagoas ao lado de outros nomes como Aberaldo Sandes, Petrônio Farias, Valmir Lessa, Zé de Tertulina e Chico Cigano no Projeto Encontro de Mestres. Em 2016, integrou o projeto “Afluentes”, desenvolvido pelo Grupo Design Armorial apoiado pela Universidade Estadual de Alagoas. Ambos os projetos foram sediados em um povoado chamado Ilha do Ferro, dentro dos limites do município Pão de Açúcar-AL, às margens do Rio São Francisco. Na ocasião, os designers Rodrigo Ambrósio e Rodrigo Almeida convidaram Maria Amélia e Dalton para criarem em coautoria com quatro artesãos: Jasson, Petrônio, Zé Crente e Valmir, o que resultou em uma exposição na Galeria Legado Arte, durante a Design Weekend, em São Paulo. Segundo a curadora dessa exposição, Beta Germano, a ideia era “unir a estética bucólica e naif – no melhor sentido da palavra – de quatro criativos que moram na beira do Rio São Francisco às linguagens de quatro designers embebecidos de signos urbanos”. A comunicação entre esses mundos ganhou expressão sensível na fusão de materiais: a madeira em interação com o alumínio, o vidro, o cobre e o aço. Em co-criação, Dalton Costa e Jasson Gonçalves produziram duas luminárias e uma instalação intitulada “Pássaros do Sertão”.

A natureza rude da Caatinga ressignificada em cores vibrantes

Nesse trânsito de influências, ao perceber a reputação que o mobiliário da Ilha do Ferro passou a desfrutar, Jasson se empenhou no novo desafio de criar cadeiras ornamentadas, inventando um estilo próprio. A partir do encaixe de galhos retorcidos de árvores típicas da caatinga – timbaúba, algarobeira e imburana –, reaproveitando restos de madeiras secas descartadas, ele procede a uma composição criativa e detalhada, justapondo figuras no corpo do móvel – humanos, animais, quimeras, carrancas, flores e frutas –, e aplicando uma pintura fortemente colorida e muitas vezes pontilhada, com contrastes que capturam os olhos mais distraídos. Em alguns casos, nota-se a criação de formas por meio de vãos intencionalmente projetados; em outros, o preenchimento de espaços do encosto com cordas que enlaçam galhos e figuras. “Eu me inspiro em mim mesmo. A realidade é que eu trabalho na cadeira toda ela diferente, mas pelo motivo da madeira, porque a madeira não se arruma por igual, porque isso aí é coisa da natureza, e pela madeira não ser igual, eu faço a montagem de cada uma diferente da outra”, diz Jasson.

Após anos dedicados ao trabalho criativo, as peças de Jasson começaram a conquistar espaço cada vez mais longe. Em 2017, ganharam destaque na MADE – Mercado Arte Design –, uma importante feira internacional de design colecionável sediada em São Paulo. Integrando a programação da feira, a exposição intitulada “Natureza: matéria e forma”, curada por Beta Germano em parceria com a Galeria Karandash, incluiu duas cadeiras e uma enorme carranca de 2 metros de altura, assinadas por Jasson.

No alvorecer de 2018, outra visita repentina no sítio de Jasson daria novo impulso ao seu trabalho: o publicitário e colecionador, Renan Quevedo, idealizador do projeto “Novos Para Nós”, que atua com a divulgação de artistas populares por meio de uma plataforma digital. Depois do primeiro contato, ele deu início a uma relação com o alagoano, facilitando o seu contato com apreciadores, lojistas, galeristas e colecionadores país afora. Foi através de um empréstimo de Renan que duas cadeiras de Jasson figuraram na sala da madeira da exposição “Criativos por Tradição”. A mostra, com curadoria do antropólogo Antônio Augusto Arantes, aconteceu durante o Festival Artesol sediado no Museu do Meio Ambiente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

O efeito dominó dessa circulação logo se fez sentir e o artista teve seu trabalho exposto em agosto de 2018 em um estande da empresa MARCO500, que comercializa objetos de design e decoração autorais, quando chamou atenção de Joice Joppert Leal, diretora executiva da Associação Objeto Brasil, que se disse impactada com o que viu. Seria o ponto de partida para a curadoria da exposição “Brazil: essentially diverse”, ocorrida em abril de 2019, durante a Semana de Design de Milão, reconhecida como a vitrine global mais importante do setor moveleiro e do design. (Ver matéria sobre evento).

No salão de entrada, a cadeira de Jasson, rodeada por suas garrafas suspensas, foi posta ao lado da cadeira Red & Blue de Rietveld, sugerindo o que poderia ser o embate entre mundos distantes ou então o nexo inaudito entre os mesmos. Joice Joppert Leal, responsável pela curadoria de “Brazil: essentially diverse”, justifica a sua proposição: “O artesão alagoano Jasson, antes de produzir, sonha. Inconscientemente, sua inspiração na fauna e flora local encontrou o holandês Gerrit Rietveld, figura-chave do De Stijl. O movimento holandês, acontecido nas primeiras décadas do século XX, antecipou em apenas alguns anos a Bauhaus e tinha uma filosofia muito similar, uma volta aos fundamentos estéticos do design. A cadeira Red & Blue de Rietveld é de 1917. Jasson, no século 21, sonha, relembra e reinventa as revoluções históricas do design. Assim como o Brasil, país que reúne sonhos novos e antigos – os holandeses outrora ocuparam o sertão nordestino onde Jasson hoje produz. A terra prometida brasileira é raiz imemorial e é sonho de criações de todos que por aqui passaram”.

Talhando o inconsciente

A estratégia de Jasson, segundo conta, é suscitar a curiosidade e subverter o óbvio, como na serpente que brota da flor ou no peixe que sobrevoa fora d’água. Pela feição dos galhos possibilita novos seres, criaturas quiméricas como no relato de uma carranca que ganhou sete pés, cada qual inspirado em animais distintos – boi, cavalo, onça, pássaro, etc. A pintura atrai pelo detalhe e também pelo lúdico, os bichos apresentam cores inverídicas. Jasson confessa ser guiado, em sonho, por uma névoa onírica que o inspira soluções criativas.

“Eu fiz uma carranca aqui com nove bocas, com um só pau. Uma imburana só e eu consegui fazer nove carrancas. Na pintura, dividi carranca por carranca. A pessoa chegava de longe e olhava assim… um negócio quase como o fuso da casa de farinha feito rosca! Mas quando se aproximava, aí dava para ver a diferença.” – diz Jasson.

Quem poderia duvidar da sensibilidade daquele agricultor rural e outrora trabalhador do setor de construção civil? Este caso desmorona qualquer estereótipo do homem sertanejo rude.

Quando olhamos para este mundo das artes populares e do artesanato, vemos a sua dinâmica, a sua reinvenção cotidiana e as suas interfaces com outros segmentos antes incomunicáveis, bem como nos deparamos, inevitavelmente, com novos atritos que esses contatos e contágios motivam. As feiras e os sofisticados ambientes de decoração, as co-criações entre artesãos, designers e artistas contemporâneos e os recentes projetos de curadoria expositiva mostram que esse universo comporta misturas que dão origem a híbridos culturais inéditos.

Essas misturas, consequência das relações de fronteira, questionam as narrativas da pureza e desatam os nós das amarras essencialistas, colocando água no moinho da inovação. Estamos diante de um arranjo moderno em que o saber-fazer artesanal não se encontra escondido como uma prática confinada ao passado que já se foi. Por outro lado, a globalização confirma, contraditoriamente, um renovado interesse pela cultura local como antídoto à massificação. Havemos de estar sempre atentos quando nos voltamos para essas relações. Temos o desafio constante de não transformar em simples modismo passageiro aquilo que mobiliza e torna sustentável a atividade inventiva dessas formas de vida, as suas tradições e bens culturais.

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