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Laboratório de Inovação Artesanal: construindo caminhos coletivos para inovar o artesanato brasileiro

Iniciativa da Rede Artesol aposta na potência do encontro entre design e artesanato 

Isabel Franke

7 de novembro de 2024


 

Certa vez ouvi uma produtora cultural de um grande festival de cultura dizer que o artesanato tradicional não muda, justamente por ser de tradição. A frase me pegou desprevenida e me levou a refletir como essa percepção ainda persiste, inclusive entre profissionais da cultura.

Mas a experiência prática e pesquisas antropológicas indicam que, quando uma tradição é tornada imutável, na verdade ela está condenada a desaparecer ou se tornar uma caricatura de si própria, pois o mundo – o tempo histórico e o contexto cultural – em que ela surgiu e com o qual se relacionava sempre mudará. Por mais contraditório que possa parecer, uma tradição resiste quando é atualizada, ou seja, quando se reconfigura a partir de uma negociação entre suas práticas e as novas referências e demandas da contemporaneidade.  

Associação Capim Dourado Pontealtense. Foto: Emerson Silva

Na produção do artesanato tradicional não é diferente. Ainda que muitas técnicas se mantenham basicamente as mesmas há mais de 100 anos, é impossível dizer que não tenham sofrido nenhuma mudança ao longo do tempo. Seja com a adição de novas máquinas ou ferramentas ao processo, a criação de novas peças ou a descontinuidade daquelas que perderam a função, o uso de novas matérias-primas frente a escassez das mais convencionais. Dizer que a produção artesanal tradicional deve se manter sempre a mesma significa, implicitamente, negar ao artesão o papel de criador, de autor pensante que tem vontades, ideias, inspiração e busca solucionar questões técnicas, estéticas e de mercado. E, consequentemente, também condená-lo a reproduzir infinitamente os mesmos objetos, como um operário alienado de seu próprio trabalho.

As artesãs e os artesãos brasileiros, conscientes de si e de seu lugar no mundo, sabem que tradição e inovação caminham juntas. E que inovar, sem perder suas raízes culturais, é um motor capaz de impulsionar a melhoria técnica dos produtos, a diversidade de peças e alavancar as vendas, trazendo mudanças significativas para suas comunidades e a valorização dos seus saberes e fazeres. Por isso, uma das demandas desses atores para instituições de apoio do setor é a criação de programas de inovação que qualifiquem os produtos e os próprios artesãos.

Os Rufinos. Foto: Bruna Dias

O projeto Rede Artesol, que faz o acompanhamento contínuo de seus membros, identificou por meio de pesquisas periódicas que entre os artesãos e lojistas especializados havia esse desejo de inovar. Em resposta, criou em 2023 o Laboratório de Inovação Artesanal, uma iniciativa que propõe o trabalho colaborativo entre associações de artesãos e designers qualificados para a criação de coleções de produtos inéditos. A primeira edição contemplou cinco grupos e o catálogo comercial de peças pode ser conferido aqui. Em 2024, a segunda edição do Lab contemplou outros três grupos de e traz mais novidades.

Designer Maria Fernanda Paes de Barros e artesã Ivone Galdino Gonçalves da Associação Arte e Vida Guapiara. Foto: Verônica Volpato

LAB de inovação artesanal: parceria entre artesanato e design

A parceria entre designers e artesãos promove trocas de conhecimentos frutíferas. Se, por um lado, o designer tem a tarefa de colaborar com metodologias de criação, acabamento de produtos e ergonomia, por outro os artesãos contribuem com o campo do design aportando suas metodologias de criação, modos de fazer, conhecimentos sobre as propriedades das matérias-primas e sobre o meio-ambiente em que vivem, citando apenas os exemplos mais óbvios.

Em seu incontornável livro Design + Artesanato: o caminho brasileiro, Adélia Borges discute como a parceria entre design e artesanato pode ter diferentes formatos, seja por causa da grande diversidade das comunidades artesanais e de suas técnicas, seja por causa dos objetivos que motivam esse encontro. No caso do Laboratório de Inovação Artesanal, essa parceria é realizada seguindo alguns princípios metodológicos.

Designer Lucyana Azevedo e artesã da Associação Capim Dourado Pontealtense. Foto: Emerson Silva

Em sua segunda edição, o LAB teve como objetivo produzir três coleções de produtos inéditos do segmento de decoração. Os grupos foram selecionados por meio de edital e precisavam atender critérios, como fazer parte da Rede Artesol, estar com a associação ou a cooperativa em situação regular, emitir nota fiscal e ter um número relevante de artesãos com produção ativa. A escolha dos consultores em design, por sua vez, foi realizada levando em consideração o portfólio dos profissionais, experiência com comunidades de artesãos tradicionais e a afinidade com a produção dos grupos contemplados.

Para atuar junto aos grupos, os designers tiveram como ponto de partida a realização de um diagnóstico para entender as referências culturais locais, as demandas e lógicas de produção, as particularidades das matérias-primas e, não menos importante, os desejos das artesãs. Após seis meses de trabalho, acompanhamento online semanal e realização de duas viagens de campo dos designers, o resultado material é o lançamento de coleções inéditas que contam histórias de suas comunidades e de três biomas brasileiros, capazes de abrir janelas para o passado e portas para outros futuros.

Artesãos do grupo Os Rufinos e designer Rodrigo Lyra. Foto: Bruna Dias

A Associação Quilombola Os Rufinos, de Pombal – PB, e o designer Rodrigo Lyra dedicaram-se a investigar o modo de vida e a história do fazer cerâmico da comunidade. Buscaram inspiração nos objetos de uso cotidiano, como o chocalho do gado e pote de talhar leite, tão emblemáticos em uma economia de subsistência agropastoril, e naquelas peças quase esquecidas, mas que ainda existiam na memória dos hábeis artesãos, como o cobel. À essas formas reinventadas, uniram-se trançados em couro e cambitos de madeira pereiro. A coleção de 15 produtos recebeu o nome de Raízes dos Rufinos, e é curioso como carrega o sentido do Sankofa, adinkra de origem axante que significa “aprender com o passado para construir o presente e o futuro”.

Artesãos do grupo Os Rufinos e designer Rodrigo Lyra. Foto: Bruna Dias

Já a coleção Portal do Jalapão, desenvolvida pela Associação Capim Dourado Pontealtense, de Ponte Alta do Tocantins – TO e a designer Lucyana Azevedo, traduz em cestos trançados com capim dourado e piaçava as formas dos morros e outros relevos que conformam a geografia do município, entrada para as rotas turísticas. Outros elementos da paisagem também inspiraram os 13 produtos, como o céu estrelado e o calor da a luz solar do Jalapão, bem como a vegetação do Cerrado, com suas veredas, buritis e raízes que crescem nos cânions em busca de água. Surpreendentemente, as próprias artesãs nunca haviam visitado vários pontos turísticos da região e a criação das peças motivou, assim, a reapropriação da paisagem por elas, ressignificando a relação com seu próprio lugar.

Artesãs da Associação Capim Dourado Pontealtense e a designer Lucyana Azevedo. Foto: Emerson Silva

A Arte e Vida – Associação de Mulheres Artesãs de Guapiara – SP e a designer Maria Fernanda Paes de Barros percorreram os caminhos que o milho crioulo trilhou até chegar às terras brasileiras. Inspirando-se nos Caminhos do Peabiru, que conectou povos guaranis e incas, as artesãs emprestaram as formas das cerâmicas de antigos povos dos Andes para trançar cestos e potes em palha natural de milho crioulo, cultivado pelas próprias artesãs. As criações são ornamentas com pequenas flores coloridas, também de palha de milho, que remetem às quaresmeiras e manacás que colorem a Mata Atlântica todos os anos. Chamada de Terra sem Males, a coleção de 11 produtos manifesta o desejo de um futuro melhor e de prosperidade.

Artesãs da Associação Arte e Vida Guapiara com a designer Maria Fernanda Paes de Barros. Foto: Verônica Volpato

Para estimular o sucesso comercial, o programa elaborou catálogos digitais dos produtos, disponibilizados para o grande público. Os produtos poderão ser adquiridos diretamente com as artesãs e o valor da venda é revertido inteiramente para elas.

Produtos da Associação Capim Dourado Pontealtense em parceria com a designer Lucyana Azevedo. Foto: Emerson Silva

A caminhada se faz caminhando 

O lançamento de coleções tão potentes é a culminância de uma longa jornada. E tão importante quanto o objetivo final, é o caminho percorrido. Como o Lab de inovação artesanal têm a proposta de ser também um ciclo formativo, nessa edição os grupos receberam uma mentoria personalizada em gestão de negócios artesanais, trabalhando temas como precificação, gestão de produção, associativismo, comunicação e atendimento ao cliente. Helena Kussik, coordenadora do projeto Rede Artesol, explica:

O LAB é um programa formativo especial, onde a criação de peças artesanais é tanto o objetivo quanto o meio para abordar questões estruturais das associações participantes. Além dos aspectos práticos e burocráticos, como precificação, emissão de nota fiscal e embalagens, o programa também foca em questões mais sutis das relações interpessoais, que têm impacto significativo no funcionamento dos coletivos. Observamos a organização interna das associações, as dinâmicas entre as artesãs, a divisão de tarefas e como esses fatores influenciam o fluxo de trabalho e podem ser cuidados. O diagnóstico técnico realizado pelos designers em colaboração com o grupo orienta as inovações propostas, sempre respeitando e integrando os modos de fazer tradicionais. Todas essas reflexões emergem durante o processo de criação da coleção e se refletem no lançamento. Assim, o objetivo é que a coleção seja inovadora e atraente, e que o grupo tenha estrutura e confiança para lidar com os pedidos, sentindo-se preparado não só para produzir as peças, mas também para experimentar e criar a partir de novas referências”. 

Associação Capim Dourado Pontealtense. Foto: Emerson Silva

Os resultados desse processo de aprendizado muitas vezes não são tangíveis, mas refletem impactos positivos, ao mesmo passo em que descortinam grandes desafios do setor. Uma das ferramentas utilizadas no LAB é a criação de uma ficha técnica para cada produto, que especifica a quantidade de matéria-prima utilizada, as horas de trabalho, as medidas e custos. Esse instrumento é importante para a compreensão global da produção da peça, permitindo um cálculo de preço mais justo. No LAB, o valor da hora de trabalho teve como referência o salário-mínimo, um compromisso para alcançar preços minimamente justos para as artesãs. Como consequência, os preços das peças acabaram ficando mais altos que os geralmente praticados.

Ao mesmo tempo em que essa metodologia revela a baixa remuneração das artesãs, infelizmente ainda muito comum no setor, ela também abre outros questionamentos: para o mercado consumidor, existe equivalência entre o valor percebido e o preço justo das peças ou elas são entendidas como muito caras? Caso haja uma compreensão do preço justo, há mercado consumidor para esses produtos? Como inseri-los em cadeias comerciais com intermediários estratégicos, com preços competitivos para os lojistas?

Essas questões, sem respostas fáceis, ganham especial relevância em um contexto econômico em que o poder de compra é cada vez menor. Por outro lado, perceber essas defasagens nos preços e os dilemas do mercado têm impulsionado os grupos a revisarem suas políticas de preços e o posicionamento de seus produtos em busca de uma remuneração mais justa dentro do possível, principalmente para as artesãs da Associação Capim Dourado Pontealtense, que ainda têm o agravante de precisarem pagar preços elevados pelo quilo da fibra.

Os Rufinos. Foto: Bruna Dias

Outro efeito positivo do LAB é o fortalecimento do associativismo. Se para Os Rufinos a nova coleção têm o potencial de atrair de volta para a cerâmica outras pessoas da comunidade, para as artesãs da Associação Arte e Vida a participação no programa teve um impacto ainda mais profundo. Devido a questões internas, o grupo quase se desfez e foi o compromisso com a criação da coleção que motivou o retorno ao coletivo, indo na contramão à individualização, cada vez mais comum na produção artesanal. Como conta a mestre artesã Alice de Oliveira:

Para nós, o Lab não foi só criar uma nova peça, uma nova coleção. Até porque foi a primeira coleção que criamos. Naquele momento, o mais importante foi o resgate de uma associação de mulheres com quase 20 anos de história. Antes de decidir encerrar a associação, a Ivone me disse para esperarmos a Maria Fernanda [designer] chegar para ver o que íamos fazer. E quando a Maria Fernanda chegou, ela, que também é mulher, teve muita paciência para trabalhar esse outro lado nosso e viu coisas que a gente não estava vendo. Cada dia que passava íamos melhorando mais, com dificuldades, e ainda temos algumas coisas para resolver, mas estamos firmes. Por isso o Lab para mim é um encontro de almas, um encontro com a Maria Fernanda e o resgate de um grupo de mulheres que hoje estão sorrindo com a cabeça em pé. Hoje a gente segue com mulheres que pensam ‘eu posso, eu consigo eu faço’. O grupo não pode acabar porque o artesanato é a única fonte de renda delas. Se acabasse elas iam voltar para o serviço da casa e da roça, que elas não ganham nenhum real porque todo o dinheiro é do marido. Por isso eu sou muito grata”.

Apoiando-se mutuamente nos momentos de dificuldade, superaram os desafios e deram um sopro de vida à Associação, agora munidas com as novas ferramentas de gestão aprendidas nas mentorias. As flores que ornamentam as peças já foram ensinadas em oficinas promovidas pelo Sesc e ganham, assim, significado mais profundo, como se simbolizassem o próprio reflorescimento das artesãs.

Artesãs da Associação Arte e Vida Guapiara. Foto: Verônica Volpato

Em sua segunda edição, o Laboratório de Inovação Artesanal se consolida como uma iniciativa de abrangência nacional de impulsionamento da criatividade do artesanato brasileiro, trazendo novos produtos para o mercado. Não sem surpresa, também revela que a inovação, assim como as tradições, demanda ser reavivada por todos nós de forma coletiva: com a promoção de iniciativas que fomentem a troca de conhecimentos entre artesãos e diferentes profissionais para acelerar o surgimento de novas ideias e soluções, que ganham ainda mais impulso quando agentes comerciais praticam preços justos. O consumidor final, por sua vez, também faz parte desse movimento. Ao investir em produtos artesanais tradicionais, torna-se um verdadeiro patrocinador da cultura brasileira e de sua renovação.

Isabel Franke é antropóloga, pesquisadora e educadora. Atualmente trabalha com articulação e pesquisa para a promoção da salvaguarda do artesanato brasileiro de tradição.