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Lira Nordestina: O humor, o drama e a crítica que ganha vida e forma na maior editora de cordéis do Brasil

Conheça a história de Zé Lourenço, um dos maiores xilógrafos do Ceará e do Brasil, que hoje está à frente da Lira Nordestina, uma editora brasileira especializada na produção de literatura de cordel e xilogravura, símbolo da cultura popular do Crato

Williana Silva

21 de agosto de 2024


Tudo começa quando, ainda menina, conheci a Lira Nordestina, um lugar repleto de imaginação e afetividade, onde imagens são plantadas e colhidas nas terras Kariri. A Lira Nordestina surgiu antes mesmo de eu existir. Em 1926, José Bernardo da Silva, um romeiro alagoano e vendedor ambulante conhecido na época como “miçangueiro”, chegou à cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, incentivado pelo Padre Cícero, uma figura influente tanto politicamente quanto religiosamente.

Em 1932, José Bernardo fundou uma das principais editoras do país, inicialmente conhecida como Tipografia São Francisco, que mais tarde passou a se chamar Lira Nordestina. Este marco representou um ponto de encontro para a cultura e a memória do povo nordestino, impulsionando a cultura de cordel pela região e em algumas capitais do Brasil.

A jornada começou com a publicação de folhetos de cordéis apenas, mas logo a xilogravura foi incorporada às publicações por uma necessidade técnica e poética, especialmente para ilustrar as capas. Anteriormente, elas eram feitas com clichês de metais, as famosas zincogravuras, mas devido às dificuldades em adquirir esses materiais, que vinham de Fortaleza (CE) ou Recife (PE), e à falta de casas de fundição em Juazeiro do Norte para produzir os clichês, surgiu a ideia de encomendar capas feitas em madeira aos artesãos locais. Assim, a xilogravura conquistou seu espaço, transformando-se em uma importante ferramenta de expressão para os artistas locais.

As produções eram feitas em papeis baratos, o que resultava em um custo-benefício interessante, permitindo uma maior circulação dos folhetos que disseminavam as histórias e a cultura popular nordestina de maneira acessível e democrática.

Lembro-me das minhas primeiras leituras de cordel, especialmente os exercícios na escola que incentivaram a produção dessa literatura durante as semanas de homenagem a grandes escritores brasileiros, como Leandro Gomes de Barros (1865-1918), paraibano, considerado o pioneiro da literatura de cordel no Brasil. Com uma capacidade de misturar humor, drama e crítica em suas narrativas, tornou seus folhetos populares, fascinando leitores de todas as idades.

Outro nome de destaque nesta cena é o João Martins de Athayde (1880-1959), também paraibano. Além de ser poeta, Athayde foi um dos maiores editores de cordel que existiu. Ele é conhecido por popularizar as capas ilustradas dos cordéis e por ter reeditado e divulgado muitos dos trabalhos de Leandro Gomes de Barros. Sua editora foi uma das mais influentes do século XX, operando entre os anos de 1909 a 1950. Em 1950, João Martins de Athayde vendeu os seus direitos de publicação a José Bernardo da Silva, o fundador da Tipografia São Francisco, também conhecida como Lira Nordestina.

É importante lembrar que esse grande solo de fertilidades poéticas relacionadas à produção de cordel no Nordeste desempenha um papel muito importante na alfabetização da população das pequenas cidades e das zonas rurais na região. Os folhetos de cordel são escritos em linguagem simples e direta, usando rimas e métrica regular, o que ajudava na memorização e compreensão de uma escrita que atravessa as fabulações, encantarias e histórias vividas pelo povo nordestino. Essa conexão entre o barateamento e a popularização em termos de linguagem e materialidade, fez do cordel essa tapeçaria de conhecimentos, o que os tornava uma opção acessível para famílias e indivíduos de diversas classes sociais.

Os cordéis eram comercializados em feiras, mercados e praças, onde aconteciam leituras públicas e também difundia notícias sobre grandes acontecimentos, atuando assim, como uma espécie de jornal.

Os folhetos não apenas promoviam a literatura, mas também atuavam como veículos de comunicação, difundindo notícias sobre grandes acontecimentos, funcionando assim como uma espécie de jornal popular. O cordel documentava eventos históricos, costumes, tradições e hábitos cotidianos da cultura nordestina.

Na Lira Nordestina, a xilogravura encontrou um espaço de grande potencialidade, especialmente com o uso da madeira Imburana, abundante na caatinga brasileira. Essa madeira, com seu perfume característico e sedutor, é de fácil acesso e possui uma textura macia, ideal para gravações detalhadas e precisas. Antes da disponibilidade de ferramentas específicas como goivas, os artistas utilizavam pontas de facas, lâminas de gilete, estiletes e outros materiais cortantes para criar suas gravuras. Essa criatividade e engenhosidade técnica permitiram o desenvolvimento de uma rica tradição de ilustração nos cordéis no cariri cearense, adicionando uma camada autônoma e visual em relação à produção de gravuras no Brasil.

Após a morte de José Bernardo da Silva em 1972, a administração da Lira Nordestina foi assumida por suas filhas até 1982. A partir de então, o Governo do Estado do Ceará passou a gerir a editora. Em 1988, Maria Violeta Arraes, então secretária de cultura do estado, fez um convênio para que a Lira Nordestina fosse gerida pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Quando comecei a cursar Artes Visuais na URCA, a Lira Nordestina ainda funcionava no mesmo prédio e era possível observar o movimento dos artistas realizando entalhes e impressões, com grandes prensas movimentando xilogravuras em larga escala.

O meu contato com um dos artistas da Lira Nordestina, José Lourenço, começou quando ele se tornou meu vizinho de casa. Tivemos a oportunidade de ter breves conversas sobre materialidades e técnicas de gravura. Conhecido como Zé, ele aprendeu sobre gravura com seu avô, que era afilhado de José Bernardo da Silva. Entre os entalhes e as prensas da antiga Tipografia São Francisco, Zé transformou esse espaço em um lugar de encontro, memória e criação. Em uma conversa sobre o espaço, ele mencionou que “A Lira Nordestina anda o mundo”, refletindo a importância dos artistas e da produção estética naquele território. Zé fala que aprendeu a ler fazendo os textos de cordéis, com incentivo do Mestre Expedito Sebastião da Silva e que toda a sua trajetória foi criada dentro da Lira. Ele fala com orgulho sobre o espaço em que vive e dos processos enquanto artista ‘’minha profissão é artesão mesmo, sou artista, sou artesão. Então, nunca tive uma carteira assinada, nem uma empresa, nada disso, nunca trabalhei em outra empresa, nunca tive nenhum contrato com nada, tudo que eu sou… eu devo, a Lira né?!’’ 

Zé fala do seu amor cultivado pela Lira e de como sua vida caminhou dentro daquele espaço.

“Até o fim das minhas forças, quero que esse espaço seja acolhedor, que tenha respeito, que possa receber pesquisadores, alunos, artistas e que eles possam vir aqui para criar suas obras e imprimir seus trabalhos. É assim que a Lira tem toda essa importância para mim. Por isso, insisto e luto muito para manter esse espaço vivo. A importância da Lira não está apenas no meu trabalho, mas nas vidas de várias famílias que dependem de mim, que dependem da Lira, que dependem dessa manutenção. Não é algo simples. Muitas vezes, as pessoas podem até entender que a Lira é um grupo fechado, mas não é assim que funciona. Aqui, muita gente depende do meu trabalho também. Hoje, temos uma distribuição da nossa produção que foi alcançada através da Lira, mas com muito esforço. Falei da importância da viagem que fizemos para Brasília, com apenas 20 reais no bolso. Existem muitas coisas que as pessoas não sabem que giram em torno da Lira e quantas famílias dependem dessa Lira funcionando. Isso tudo é muito importante para mim, no meu trabalho, em todo esse movimento que faço.”

Ao conversarmos sobre a gestão do espaço, ele relatou os desafios relacionados à falta de reconhecimento econômico do trabalho dos artesãos. “Precisamos olhar para a Lira com olhos abertos e com mais respeito com as pessoas. Temos que fazer algo importante dessa história belíssima, porque aos poucos vem diminuindo a produção de cordel. A produção de xilogravura é grande, porém não temos incentivo e apoio’’.

Segundo Zé, apesar de terem exposto trabalhos em importantes mostras ao redor do mundo, a falta de uma renda fixa desestimula os artesãos que hoje atuam na editora.

Essa entrevista me faz refletir sobre a vocação dos artesãos que seguem produzindo, mesmo em meio a muitos desafios, a partir dos saberes adquiridos pela observação, pela artesania, pela manufatura e pela admiração dos mais velhos fazendo. Neste lugar, o fazer artesanal ganha vida, alimentando a alma e o espírito do artista, que se revela como um grande agricultor, semeando suas ideias e pacientemente aguardando o tempo da colheita.

Zé compartilhou com entusiasmo sobre as parcerias que podem ajudar a Lira Nordestina a superar desafios financeiros e administrativos. “Estamos tentando firmar uma parceria com o Centro Cultural do Cariri, que poderia assumir a gestão da Lira Nordestina. Na minha opinião, isso seria muito bom, pois a universidade está desde 1988 tentando, mas até hoje não conseguiu fazer o trabalho necessário. É uma deficiência grande. Para nós, essa parceria seria ótima, é um plano para o futuro que estamos aguardando.”

Além de oficinas artesanais, Zé destacou a importância de se adaptar à era digital “Estamos pensando em criar oficinas digitais, onde as pessoas possam participar de qualquer lugar do mundo, como Japão ou Estados Unidos, e fazer a oficina ao vivo com a gente. Outra ideia é desenvolver um cordel digital, uma poesia digital diretamente aqui da Lira.”

Um dos projetos interessantes que ele vem desenvolvendo são jogos digitais. “Eu e o poeta Chico Bruno vamos ilustrar um jogo para internet, com poesias e xilogravuras. É um projeto com uma empresa de Fortaleza, e estamos animados para começar.”

Apesar dos desafios, Zé expressou seu compromisso contínuo com a Lira Nordestina.

‘’Estamos aqui recebendo alunos, fazendo oficinas e mantendo essa cultura viva. Não deixamos a peteca cair. Os planos para o futuro são tentar resolver esses gargalos de mais de 40 anos e trabalhar melhor no próximo ano. Queremos um espaço acolhedor e funcional, para continuar preservando e difundindo nossa rica tradição cultural.”

A gestão e os desafios enfrentados na Lira Nordestina são muitos e nessa entrevista Zé enfatizou que, embora tenha recebido o título de “diretor artístico” anos atrás, não recebe salário por esse cargo. “Na verdade, não sou um gerente nem um diretor. Esse título foi algo que me deram anos atrás, mas nunca recebi um centavo por isso. Assumi essa responsabilidade após a morte de Expedito Sebastião da Silva em 1996. Como era o mais velho, decidi manter esse espaço vivo, sem depender de universidade, prefeitura ou qualquer outra instituição. Dependo apenas do meu trabalho.” 

A ausência de funcionários remunerados e a falta de apoio financeiro na Lira Nordestina reflete como o Brasil cuida dos artistas e dos artesãos que deixam culturalmente esse país de pé, Zé conta que “Hoje, a Lira não tem funcionários. Somos eu e outros artistas que mantemos o espaço organizado e acolhemos visitantes. Transformamos este lugar em uma sala de aula permanente, onde as pessoas vêm pesquisar e fazer oficinas. Temos cinco artistas aqui regularmente, mas o trabalho é de um grupo maior que frequenta a Lira.” 

Ele falou sobre a importância do espaço e a necessidade de mantê-lo acolhedor e funcional. “Aqui, cada pessoa é recebida com respeito, seja um mendigo ou um doutor. Mantemos um espaço acolhedor e organizado. Temos várias escolas que fazem parceria conosco e sempre voltam.”

A Lira Nordestina, desde sua origem, sempre valorizou profundamente a educação e a formação cultural, sendo um espaço precioso para a comunidade. Ao longo dos anos, inúmeras pessoas e famílias cultivaram suas histórias e produções dentro desse lugar, criando uma dependência econômica significativa para muitas delas. Zé relata que “Este espaço sustenta muitas famílias. Cada obra que vendemos ajuda não apenas o artista, mas também suas famílias. Por isso, a importância de manter a Lira funcionando. Temos cerca de 1.500 visitantes por ano, muitos dos quais vêm para aprender sobre o cordel e a tipografia.”

A tapeçaria de conhecimento que o grupo da Lira tem é gigante, principalmente quando falamos em tipografia e a importância de passar esse conhecimento adiante. “As pessoas que trabalham aqui sabem tudo sobre tipografia, composição de letras, e produção de cordéis e livros. Temos um grupo de cinco ou seis pessoas que podem fazer isso, mas não sabemos por quanto tempo mais teremos esses profissionais. Eles dependem da própria obra para sobreviver, sem apoio de universidades ou do governo.” 

Zé mencionou os planos para o futuro e os desafios enfrentados. “Estamos tentando parcerias para melhorar nossa situação financeira. A proposta do Centro Cultural do Cariri assumir a Lira Nordestina é algo que aguardamos com esperança. Também estamos colaborando com a professora Elis para reformar algumas máquinas e transformar o espaço em uma sala de oficina multifuncional. Queremos fazer intercâmbios com ateliês de todo o Brasil e criar oficinas digitais, para que pessoas do mundo inteiro possam participar ao vivo.”

Ele finalizou com uma reflexão sobre a necessidade de incentivo público e a importância da Lira Nordestina para a cultura local. “Recebemos muitos estudantes universitários, mas ainda falta incentivo público para movimentar a Lira Nordestina. É uma história de resistência e batalha, mas estamos felizes de fazer parte desse espaço, apesar das dificuldades.”

A Lira Nordestina possui um acervo impressionante de máquinas, cada uma com sua própria história e importância. Uma das principais é a impressora elétrica que pertenceu a João Martín de Ataíde, trazida para cá por José Bernardo da Silva em 1950. Originalmente manual, ela foi modificada para funcionar eletricamente e ainda está em uso, passando por reformas para mantê-la operante.

Além dessa, há a Guilhotina manual, também trazida em 1950, que ainda é utilizada manualmente e foi uma ferramenta essencial para o avô de Zé. Outras máquinas importantes incluem linotipos, offset e novas aquisições como a Heidelberg, que são usadas em oficinas de tipografia.

Manter essas máquinas operacionais é um desafio, especialmente pela dificuldade de encontrar peças de reposição e pela necessidade de refazer componentes antigos. Zé destaca a importância de restaurar e conservar essas máquinas para continuar a tradição e oferecer oficinas educacionais, mantendo viva a rica história da Lira Nordestina.

Além desse acervo único, a editora guarda uma história ligada muito importante para a comunidade. Ao longo dos anos, muitos artesãos mantiveram sua produção criativa ativa através da editora. “Este espaço sustenta muitas pessoas. Cada obra que vendemos ajuda não apenas o artista, mas também suas famílias. Por isso, a importância de manter a Lira funcionando. E mais, temos cerca de 1.500 visitantes por ano, muitos dos quais vêm aqui para aprender sobre o cordel e a tipografia. É uma história de resistência e batalha, mas estamos felizes de fazer parte desse espaço e poder fazer planos para para o futuro com novas parcerias e projetos”, finaliza.

Zé, com seu compromisso e paixão pela Lira Nordestina, continua a lutar para manter viva essa rica tradição cultural, enfrentando desafios com resiliência e criatividade. A Lira desenha no Nordeste um leque de possibilidades estéticas, potencializando a descentralização dos eixos culturais e das produções artísticas. A antiga Tipografia São Francisco, agora Lira Nordestina, reforça a ideia de que este espaço não é apenas um centro de preservação e criação de cordel, mas também um lugar de inovação e difusão cultural, impactando na cultura do Cariri, do Nordeste, do Brasil e do mundo.

é de Juazeiro do Norte no Ceará, atua como Artista Visual, Educadora e Pesquisadora. Gosta de pensar a respeito das relações de corpo, memória, gênero e sexualidade no âmbito teórico e prático da arte.