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Lyara Cavalcanti e o legado dos mestres alagoanos, que atravessa origens, gerações e categorias da história da arte

Em Alagoas, uma jovem artista visual esculpe histórias que revelam a influência dos mestres de sua terra, com traços da criatividade individual e coletiva

Luísa Estanislau

10 de julho de 2024


 

Alagoas, território desenhado entre o Atlântico e o Rio São Francisco, é um estado de abundâncias geográficas e culturais. No que se refere à arte da madeira, alguns (e são muitos) dos principais destaques são os artistas Antônio de Dedé (1953-2017), André da Marinheira (1969), Fernando Rodrigues (1928-2009), Aberaldo Sandes (1960) e Petrônio Farias (1967). Eles compartilham, além do uso da madeira, o fato de serem homens, com origem no interior, nascidos até 1970, considerados mestres e reconhecidos nacionalmente (e, alguns, internacionalmente). Os três últimos são naturais da Ilha do Ferro, um povoado localizado a 266 km de Maceió, pertencente ao município de Pão de Açúcar, e cravado entre a vasta Caatinga e o lendário Velho Chico. Uma ilha que não é uma ilha, pois não se isola nem no aspecto geográfico, nem simbólico, tendo em vista que sua potência artesanal inspira escultores, designers e estilistas de outras partes do estado e do país que se conectam com o espírito inventivo do lugar.

Lyara em atividade em seu ateliê, 2021. Foto: Leopoldo de Castro.

Com cerca de 500 habitantes, entre eles muitos dedicados ao entalhe ou ao bordado Boa-Noite, o povoado é um centro vital de criação popular, levando a fama de ser o lugar com mais artistas por metro quadrado do Brasil. O imaginário da ilha é marcado ainda pela estética de um peculiar conjunto arquitetônico formado por casas com fachadas coloridas e ornamentadas com desenhos e outros detalhes (as famosas pinturas e platibandas). Por isso, a vila tem atraído visitantes interessados em perambular pelos ateliês, vivenciar a sua hospitalidade e autenticidade e se entregar ao tempo da natureza. Entre os artistas que se são influenciados por suas referências, a maceioense Lyara Cavalcanti (Maceió/AL, 1995) tem chamado a atenção.

Ela não é a única, mas é uma das poucas mulheres jovens do estado que se dedicam a à madeira. Além dela, merecem destaque a herdeira do mestre Fernando, sua neta Camille Souza, que vive na própria Ilha do Ferro, e Aline Caju, de Belo Monte, famosa por suas esculturas inspiradas na flora e na fauna do semiárido alagoano. 

Lyara Cavalcanti, 2021. Foto: Leopoldo de Castro.

As fronteiras entre artesanato, arte popular e contemporânea

Neste texto, contudo, gostaria de destacar os diálogos entre artesanato, arte popular e arte contemporânea que se revelam mais especificamente no trabalho de Lyara. Aqui vale abrir um parênteses para situar brevemente os leitores sobre este debate.

Os conceitos de arte e artesanato estão em constante revisão, confronto e negociação. Essas classificações revelam os vieses de quem historicamente detém o poder de definir, classificar, hierarquizar conhecimentos e produções artísticas (a branquitude*). De forma simplificada, insuficiente e reducionista, a produção considerada popular costuma ser associada a artistas autodidatas, sem formação artística formal, geralmente pessoas negras, indígenas, pobres e/ou periféricas. Já a arte contemporânea tende a incluir aquelas que passaram por universidades ou escolas de arte, onde predominam pessoas brancas e que geralmente ocupam os melhores lugares na pirâmide socioeconômica. Em ambas as categorias, há a questão da autoria individual, enquanto o artesanato é associado à coletividade e à reprodutividade.

Lyara Cavalcanti, 2022. Foto: Leopoldo de Castro.

Nos últimos anos, no entanto, têm se consolidado novas práticas curatoriais e debates que desafiam e tensionam as categorias da História da Arte, culminando na chamada Virada Decolonial na arte brasileira. Essa mudança de paradigma começa a se tornar evidente em meados dos anos 2010. A 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil – Todo mundo é, exceto quem não é (2016), as exposições À Nordeste (2019), Vexoá: nós sabemos (2020), Dos Brasis (2022) e Cosmo/Chão (2024) são alguns exemplos que, em alguma medida, borram as fronteiras entre arte e artesanato, popular e contemporâneo.

Lyara em atividade em seu ateliê, 2025. Foto: Leopoldo de Castro.

A trajetória de Lyara

Em relação à trajetória de Lyara, que também é cenógrafa e designer de objetos, vale dizer que o encontro entre os saberes populares, acadêmicos e experimentais se deu em um ambiente particular, paralelamente aos debates acadêmicos sobre essas categorizações formais.

Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), com especialização em Práticas Culturais Populares pela mesma instituição em parceria com o Museu Théo Brandão, a alagoana conta que a relação com a madeira e com a manualidade vem em partes da influência de seu avô materno, Rafael. Um cirurgião-dentista que, com sua habilidade manual, costumava dar forma a pequenos objetos e invenções cotidianas em seu tempo livre.

No contexto da pandemia, Lyara intensificou essa troca intergeracional. Como forma de lidar com as incertezas do momento, começou a coletar resíduos da poda urbana e se lançou em uma investigação sobre a madeira como matéria-prima e inspiração. Sua pesquisa é marcada pela observação do ciclo vida-morte, pelo respeito à matéria e por um mergulho em suas raízes. Indubitavelmente, ela está inserida no contexto da arte contemporânea, mas seu trabalho transborda a herança dos artistas populares do estado.

Obras de Lyara Cavalcanti, 2022. Foto: Leopoldo de Castro.

Em conversa recente com a artista para a escrita deste texto, ela falou sobre essas confluências: “Durante a pós-graduação, entendi também que a madeira era um material familiar e que os caminhos foram abertos devido à presença dos mestres artesãos. Algo relacionado ao território, a uma certa identidade paisagística. Da Ilha do Ferro, em especial, tenho o Petrônio como uma grande referência. Além do trabalho dele ter sido um dos primeiros que tive contato, ele tem uma estética particular, mais impactante e expressiva. Pra mim, ele destoa um pouco do universo mais coeso da ilha. O seu Fernando também me influenciou na questão da descoberta do material, de respeitar as formas da madeira, mantendo um lugar poético e ainda assim atribuindo funcionalidade à peça, o que influencia a minha criação quando penso como designer”.

Ela conta ainda que, a partir das técnicas que aprendeu com o avô e da inspiração dos artistas alagoanos, seguiu explorando esse universo do entalhe de forma independente. Buscou conhecimento em vídeos no YouTube, em um processo inicialmente autodidata. Mais recentemente, aprofundou sua prática, participando de cursos livres voltados ao entalhe e à marcenaria, na cidade de São Paulo (SP). Seu trabalho não é considerado arte popular, mas revela a herança dos mestres de ofício, que atravessa origem, gerações, lugares socioeconômicos e categorias da história da arte.

Mestre Petrônio e Yang da Paz, 2015. Foto: Michel Rios

Ao olhar para o conjunto de sua obra, especialmente os objetos que circulam em exposições de arte contemporânea, um primeiro ponto que me chamou a atenção foi a escolha da madeira como matéria-prima. Dura e resistente, ela exige da artista uma entrega que não é só criativa, mas também física: entalhar exige o corpo inteiro. E Lyara optou por criar peças de dimensões significativas; suas esculturas têm dimensões médias. Olhando para a história das mulheres na arte, essas escolhas (material e dimensão) são, de alguma forma, insurgentes.

Um segundo ponto é a associação possível aos ex-votos, tipo de expressão artística popular e religiosa que comemora um voto ou promessa feita em ocasião de doença, conferindo às peças de Lyara uma dimensão simbólica e espiritual: são oferendas, registros de fé, dor ou gratidão por algo alcançado. As obras devocionais da artista carregam algo da tradição católica popular.

Por fim, outro elemento marcante é a presença do tempo. Fungos e musgos são incorporados como parte de algumas das suas obras, permitindo que a madeira siga seu próprio curso, numa criação compartilhada entre a artista e a natureza, para frisar a indissociabilidade entre humanos e não humanos. A poética de Lyara circula entre esses três pontos numa investigação profunda sobre vida, morte e natureza.

Todos os dias oferto ao solo os restos de mim, 2023. Foto: Leopoldo de Castro.

Um território criativo inquietante

Eu, particularmente, defendo que para quem tem interesse em arte e está situado à margem dos principais centros hegemônicos, leia-se eixo Rio-São Paulo, o popular é a principal escola. Em Alagoas, não há incontáveis museus, cinemas, galerias e outras instituições de arte e cultura funcionando a todo o vapor. O que temos em abundância à nossa volta, sobretudo nas cidades interioranas e suas dinâmicas cotidianas, é uma paisagem repleta de aprendizados organizados a partir de epistemologias outras, não hegemônicas e não institucionalizadas.

As criaturas de Petrônio, 2015. Foto: Michel Rios

Por isso, não é incomum visitar as casas-ateliês de mestres e mestras, artistas e artesãos, e conversar com eles – experiências memoráveis e que considero um grande privilégio. Mais do que importantes atividades econômicas, o artesanato e a arte popular fazem parte da identidade do estado. O mesmo não se aplica à chamada arte contemporânea, por mais que tenhamos importantes artistas com projeção e reconhecimento tanto dentro como fora do Brasil, nomes como Marta Araújo (1943), Celso Brandão (1951), Delson Uchôa (1956) e Jonathas de Andrade (1982). Eles são menos numerosos, quando comparados àqueles classificados como populares. Mesmo em uma lista pequena, já é possível notar um padrão: o predomínio de homens, nascidos até a década de 1980, majoritariamente na capital e com ensino superior (além disso, nenhum deles tem a escultura em madeira como principal linguagem). Nesse sentido, Lyara surge como uma renovação na arte contemporânea, trazendo o frescor de uma nova geração, e também como um ponto de diálogo e reflexão entre categorias impostas pela História da Arte.

Lyara assinou a instalação cenográfica para a Foz na São Paulo Fashion Week, projeto executado em parceria com Camille Souza, artista da Ilha da Ferro, 2024. Foto: Leopoldo de Castro.

Em junho, ela foi um dos artistas indicados ao prêmio Pipa, uma das principais premiações brasileiras. Essa importante vitrine coloca uma jovem artista em destaque na cena de arte contemporânea brasileira (e latinoamericana), carregando consigo o legado dos mestres alagoanos da madeira.

*A branquitude é um lugar de privilégio racial, econômico e político associado à brancura da pele e à autoridade de narrar a história. Pode ser crítica, ao combater o racismo, ou acrítica, ao reforçar a ideia de superioridade branca.

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