Mano de Baé: moldando novas narrativas poéticas e sociais
O filho e aprendiz de Baé é, hoje, um mestre múltiplo e transgressor, que provoca reflexões sobre a fé, o amor e a sexualidade através do seu trabalho, provando que a cultura popular está sempre se reinventando
Laís Domingues
“Eu sempre tento ver o mundo de uma forma que ninguém me diga como ele é.”
Mano de Baé
Mano de Baé foi criado em Tracunhaém (PE), seguindo os passos do seu pai, um dos grandes nomes da cerâmica figurativa de Pernambuco. Ainda criança, começou a criar animais e bonecos a partir das vivências cotidianas e das referências que muitas vezes vinham do quintal de casa. Com o tempo, ganhou destaque na invenção, modelagem e queima de peças com temas e estilos que o diferenciavam de outros artesãos da região.
“Aqui ou a gente faz barro ou faz poesia”, Mano costuma dizer. Ele faz os dois. Além do trabalho exímio na arte de dar formas inusitadas ao barro, assim como o pai, dá vida também ao coco de roda na levada do pandeiro. Transita por esse universo encantado entre versos cheios de graça e personagens que remontam a história da formação etnico-cultural do Brasil.
Na Zona da Mata pernambucana, o cristianismo e o conservadorismo se fazem muito presentes desde os tempos da colonização até os dias atuais. Não por menos, as primeiras esculturas figurativas representadas pelos mestres e artesãos da região foram imagens sacras. Apesar disso, muitas das peças produzidas em Tracunhanhém ainda são permeadas de referências à fé e às religiões de matriz africana, como os alguidares, usados em oferendas aos orixás. Esses símbolos permanecem no repertório dos artesãos locais, seja pela demanda comercial ou pela tradição em si, mesmo no caso daqueles que desconhecem seu sentido religioso.
Mano de Baé, porém, faz questão de reforçar a influência da cultura negra no seu trabalho, tanto na musicalidade do coco, ritmo marcado pelas heranças afro-ameríndias, como na cerâmica. Essa influência africana está fortemente presente na série “Orixás” e nas figuras das “Sereias”, que fazem referência à Iemanjá e a Oxum, por exemplo. Só depois do sucesso dessas peças, Mano de Baé se surpreenderia ao descobrir que seu pai também já tinha feito representações de sereias e orixás. Descobriu isso através de pesquisadores e colecionadores que entraram em contato com ele, anos após o falecimento de Baé, enviando algumas fotos das peças nunca antes vistas pelo filho.
“Eu fui nascido e criado na Testemunha de Jeová e fui o primeiro da família a tirar os pés de dentro disso, a me rebelar, justamente por observar as coisas a meu próprio ver. Eu percebia o monopólio e uma coisa parecida com um império, que tentava derrubar outros impérios: uma briga, uma confusão. Ficava meio enlouquecido, sem entender tudo isso e o porquê. Depois de um tempo, eu comecei a ver que a religião de matriz africana não tinha nada a ver com esses outros impérios. Não estava preocupada em brigar com império nenhum, a não ser bater de frente, para que as deixem em paz, o que é justo. Depois, fui conhecendo mais e vi que eles têm uma ligação fortíssima com a natureza e o cosmo, então eu perdi o medo. Comecei a ler as histórias dos orixás antes de fazê-los e pedi licença, porque não é o vender, é o representar, dinheiro é consequência.”
Outro tema importante no trabalho do mestre, que é super contemporâneo e ancestral ao mesmo tempo, é a questão da diversidade de gênero e orientação sexual. Para provocar discussões sobre o tema de forma lúdica, Mano transformou algumas obras tradicionais do seu pai, como o “casal passeando”, em casais que fogem da heteronormatividade. Hoje, o artista molda casais de homens e mulheres, dois homens e duas mulheres.
“A gente nem precisava falar sobre isso, né? Mas como temos perdido muito dos nossos ancestrais, a gente é obrigado a falar. Nunca foi preocupação de uma etnia indígena estar dizendo quem o homem é, quem a mulher é. Eu tô falando isso segundo Darcy Ribeiro, em o “Povo Brasileiro”. Ninguém estava preocupado com sua sexualidade. Simplesmente cada um decidia o que queria ser, ficar com quem queria ficar e isso era natural entre os indígenas. E aí está a maior prova do quanto a gente perdeu, do quanto somos inseguros, do quanto a gente tem medo. É por isso que eu falo, porque é a realidade, não é fantasia, é real.”
“Todo mundo tem direito de amar da forma que bem achar e ser feliz. É isso, o amor existe e não tem regras, não tem sexo, não tem gênero, enfim. Viva todas as formas de amor, como diz Lulu Santos, né? “
Por conta dessas provocações, o mestre foi e é muito criticado em Tracunhanhém pelos amigos e pela própria população, que ainda rejeita o diálogo proposto em suas criações, mas é indo na contramão dos paradigmas tradicionais que Mano de Baé tem se consolidado no mercado da arte e artesanato nacional. Por fugir dos temas comuns, tem recebido convites de feiras, galerias e lojas de várias regiões do Brasil para participar de eventos e fazer parcerias. Essa projeção intriga consultores do SEBRAE, pois, sem nenhuma assessoria, Mano de Baé tem conseguido vender seus trabalhos com preços acima da média dos outros artesãos e transitado entre arte e artesanato com maestria, borrando a linha tênue que o mercado da arte tenta impor para desvalorizar o trabalho de artesãos brasileiros.
“Até hoje, muita gente não me recebe direito pelo meu tipo de trabalho. Pra mim, ele é real, autêntico, positivo. Eu não estou nem aí para o que dizem, porque eu não vim pra desistir, não vim pra maquiar, eu vim pra representar, para reivindicar, para causar também…para ser. Acho que essa é a grande coisa”.
Rede Artesol
Laís Domingues
Laís Domingues é arte educadora, artista visual e têxtil e produtora cultural pernambucana. Desenvolve suas pesquisas sobre memória e tramas sociais através da fotografia, do vídeo e da cultura popular desde 2016. É também idealizadora do projeto “Bordando o Feminino”, financiado pelo Funcultura da Secult-PE, através do qual viveu por 5 meses em Passira, no agreste pernambucano, compartilhando saberes e recebendo aulas com mestras do bordado de Passira.