Moda circular: será que o mundo precisa de roupas novas ou de um novo olhar para a produção que já existe?
Luciana Bortowski partilha da ideia de que os tecidos mais sustentáveis são aqueles que já existem. Ao analisar a face não tão glamorosa do “mundo fashion”, ela se fez vários questionamentos sobre sua profissão e resolveu trocar a metrópole paulista pelo sossego da Chapada Diamantina (BA), onde passou a dar nova vida para tecidos bordados…
Luciana Bortowski
07 de Junho de 2024
O fazer manual sempre foi parte dos meus processos criativos e me fez mergulhar em diferentes culturas e possibilidades técnicas: um universo de aprendizados e inspirações. Nos tempos atuais, a crescente aceleração e mecanização dos processos produtivos tornam ainda mais importante o ato de olharmos para nossas tradições manuais e resguardá-las. Em contraste com o ritmo da indústria, em que o fluxo de produção está cada vez mais acelerado para criar tantas roupas que não há corpos no mundo suficientes para vestir, enxergamos os potenciais intrínsecos do mundo dos artesãos. Nesse contexto, valorizamos os gestos autênticos e a sensibilidade que jamais poderão ser reproduzidos por uma máquina.
Como antagonista, vejo o fast fashion incentivando um consumo imediatista de roupas quase descartáveis, promovendo um esgotamento de recursos naturais, ao mesmo tempo que potencializa o problema mundial causado pelos resíduos têxteis. Tantos questionamentos a respeito da indústria da moda passaram a me bloquear na hora de criar e me fizeram ir atrás de novos caminhos como designer. Afinal, o mundo não precisa de mais uma roupa, né?
Encucada com essa ideia, passei a estudar possibilidades de design sustentável e economia circular e foi justamente no início da pandemia, em 2020, que tive a oportunidade de vir para a Chapada Diamantina, no sertão baiano, em busca de isolamento e ao mesmo tempo expansão de perspectivas. Aqui, vi questionadas tantas verdades e percebi o que realmente me era necessário para viver, para além daquelas aparentes necessidades impostas pela sociedade. Notei potências nas simplicidades que muitas vezes nos passam despercebidas quando estamos em meio a tantas informações do ambiente urbano.
Mergulhei, então, no universo da sustentabilidade, conhecendo um pouco sobre sistemas agroflorestais e bioconstruções e me dei conta de que, assim como na natureza, que se renova naturalmente e tem como nutrientes seus próprios resíduos, deveria ser o futuro da moda circular. Passei a seguir como diretriz uma frase que ouvi um dia e me marcou:
“O tecido mais sustentável é aquele que já existe”.
A vida na cidade parecia não fazer mais sentido e estabeleci meu ateliê no Vale do Capão, (na Chapada Diamantina). Passei a buscar ali novas formas de criar e viver em harmonia com a natureza. Comecei ressignificando o que tinha em mãos de mais valioso e me inspirava profundamente, os tecidos da minha avó.
Para além da minha admiração por antiguidades, percebi quão preciosos eram os tecidos dos tempos passados. Guardanapos bordados à mão na Ilha da Madeira, toalhas de mesa em renda labirinto, lençóis de linho puro com iniciais bordadas em ponto cheio. Rendas de bilro, tenerife, venezianas, rechilieu, tricô e crochê, e tantos, mas tantos outros pontos que nem saberia nomear.
Esses tecidos, preparados à mão com esmero e morosidade, foram feitos para durar. Porém, por mais especiais que possam ser, muitas vezes acabam esquecidos em gavetas, por conterem manchas, furos, recordações, ou simplesmente por não se encaixarem aos hábitos e estéticas atuais.
Resolvi ir atrás desses materiais para usá-los como ponto de partida das minhas criações. Sendo cuidadosamente selecionados, esses tecidos cheios de memórias ganham novas vidas em peças contemporâneas que nos fazem viajar em sua história, na delicadeza de seus trabalhos manuais, nas marcas que carregam do tempo.
Ressignificar tecidos antigos é uma grande responsabilidade. Cuido deles enaltecendo e respeitando todo o trabalho manual envolvido ali. Ao meu ver, bordados que levaram meses para serem feitos e que guardaram, ao longo dos anos, tantas memórias, não podem entrar agora em linha de produção pra serem sucateados em uma moda fugaz, imediatista e descartável.
Por isso calculo e recalculo cada peça, para que não seja só mais uma. Para que desperte em nós um olhar curioso e potente sob nossos resíduos e nos inspire tantas outras possibilidades de reaproveitamento. Vou bordando nos furinhos, não para escondê-los, mas para criar essas texturas de memórias. Nas composições, agrego outros materiais remanescentes da indústria têxtil, como retalhos e aviamentos.
É muito comum e quase inevitável que se tenha sobras nas confecções, pois dificilmente conseguimos calcular e comprar exatamente a metragem a ser usada naquela coleção. Essas sobras em perfeito estado vão sendo acumuladas em ateliês, fábricas, galpões, muitas vezes ficam ali esquecidas, se deteriorando. Enxergo esses resíduos como matéria-prima em todo o seu potencial. Através de técnicas de upcycling prolongo seu ciclo de vida, fomentando a sustentabilidade na moda e a economia circular na construção de uma cultura regenerativa.
Sigo criando, em ritmo desacelerado, pequenas coleções de peças únicas atemporais. Percebo que, para além dos tecidos antigos, existe uma infinidade de matéria-prima esquecida, muitos resíduos que podem ser reaproveitados, se transformarmos nossa maneira de criar, produzir e consumir. Acredito na construção de uma ponte entre designers, fábricas e diferentes confecções, para que possamos intercambiar nossos excedentes e potencializar esses materiais antes de serem esquecidos ou descartados. Para mim, essa deveria ser a moda do futuro, mais consciente e responsável com as pessoas e o planeta.
O crescimento do interesse, porém, também desperta uma preocupação na colecionadora. Segundo ela, a grande demanda estimula uma produção em grande escala pautada na repetição que limita em certo aspecto a inventividade dos autores. “Um recurso precioso para o artista é o tempo da imaginação e esse tempo parece ficar escasso”.
Para a galerista, porém, o mercado tem espaço para diferentes tipos de produção, seja o artesanato ou as produções autorais ou de artistas que demandam tempo para experimentar técnicas e processos nos seus ateliês. “Esse é o papel do do curador: continuar indo na casa de todo mundo, identificar e valorizar artistas poderosos, incríveis e poéticos. Eu vou na casa de todos ainda”, conta.
Luciana Bortowski