Av. Nove de Julho, 5569 Sala 41
CEP 01407-911
São Paulo - SP
Tel.: 11 3082 8681
institucional@artesol.org.br

Artiz

Shopping JK Iguatemi
- 2° piso
Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041
São Paulo - SP
CEP 04543-011

Museu de Quilombos e Favelas: Memória Viva no Coração de Belo Horizonte

Espaço celebra histórias e resistências da Vila Estrela e do Morro do Papagaio, fortalecendo a cultura afro-brasileira em Belo Horizonte (MG)

Laura de Las Casas

29 de abril de 2025


 

No idioma africano bantu, os quilombos significam “acampamentos” ou “local de pouso”. A palavra, usada para nomear os territórios onde se fixavam pequenos aglomerados de negros escravizados em fuga, vindos da África e resistindo pela liberdade, hoje define os grupos étnicos remanescentes deste período, que conservam a relação com a terra como definidora de suas tradições, cultura e ancestralidade. Nesta toada, surgiu em 2012 na Vila Estrela, uma comunidade do Morro do Papagaio, localizada no coração de Belo Horizonte, o Museu de Quilombos e Favelas (Muquifu), um espaço onde a memória coletiva destes lugares é preservada e celebrada, além de construída coletivamente com quem vive ao redor.

Desde 2015, o museu fica acoplado à Paróquia Nossa Senhora do Morro, deixando a impressão de que um faz parte do outro. Para entrar, é preciso subir as escadas de uma casa banhada pela sombra de uma gameleira, em uma rua bem no alto da comunidade, de onde é possível uma visão panorâmica da Vila.  Ao entrar na casa,  o visitante dá de cara com a impressionante vista para o templo religioso.

Nas paredes ao redor, as pinturas coloridas chamam a atenção de qualquer pessoa. “Aqui a gente recontou a vida de 14 mulheres negras da comunidade, usando a história de Maria, mãe de Jesus, como paralelo, como fio condutor histórico. A gente volta no tempo e vai encontrando fragmentos da história dessas mulheres que são compatíveis com momentos que Maria passou com Jesus, até a sua morte. Nesses painéis a gente fala sobre racismo, gentrificação, feminicídio, intolerância religiosa, usando o dia a dia dessas mulheres que vivem aqui. São histórias reais, de Marias multiplicadas para além das paredes”, conta Cleiton Gos, artista responsável pelas pinturas e colaborador do Museu.

A pintura de Cleiton recria cenas como a de Dona Jovem, moradora da vila, que precisou ir embora de sua casa por diversas vezes, fugindo de situações de violência. “Aqui ela está na cena de Maria no Egito, quando ela precisa fugir com José e Jesus para lá, para salvar Jesus, recém-nascido, dos perigos do rei Herodes”. Também tem a Maria Rodrigues, outra mulher da comunidade, representada em uma das cenas bíblicas em que Maria protege Jesus da perseguição. “Quantas vezes as mães de crianças negras da favela não tiveram que passar por isso?”, questiona Cleiton.

Dona Generosa, uma importante liderança do morro, também está representada no espaço. Em forma de uma escultura feita pela artista Sônia Toledo, ela está exposta ao lado do altar. A escultura se integra à paisagem pintada por Cleiton. Nela, Dona Generosa aparece junto à filha Terezinha. Na imagem, ela e a mãe representam o momento em que Maria visita sua prima Isabel, levando alegria e benção. 

Dona Generosa faleceu há pouco tempo, mas deixou suas marcas no museu. Além de uma referência de força, fé e perseverança, ela também era bonequeira, artesã e benzedeira. As bonecas confeccionadas por ela estão espalhadas em várias partes dos Muquifu, representando o ofício que deu a ela a possibilidade de uma vida digna. “As bonecas de Generosa, aqui presentes, representam a arte dos quilombos. Elas eram feitas para crianças, para adultos, para enfeitar casas, vendidas no Brasil inteiro. Ela era autodidata, e com as mãos fez essas riquezas. Quando começou a se esquecer das coisas, começou a brincar com as próprias bonecas”, explica Maria de Lourdes, colaboradora voluntária do museu e moradora da Vila Estrela.

Vislumbrar a história dos quilombos e favelas é, na essência, entender as múltiplas identidades que compõem o tecido social mineiro. Os quilombos representam a luta pela liberdade e pela preservação da cultura africana, enquanto as favelas emergem como resposta à exclusão social e econômica que muitos brasileiros e brasileiras enfrentam até hoje. O espaço do museu é cuidadosamente projetado para ser um ambiente coletivo e interativo, onde os visitantes podem se aprofundar em exposições que contam sobre figuras importantes e eventos marcantes das comunidades.

Acervo multifacetado

O acervo é dinâmico e composto quase que unicamente por objetos trazidos pelos próprios moradores da comunidade. “Uma boneca, um objeto de cerâmica, uma cama ganhada de presente da patroa… tudo vai contando um pouco sobre o quilombo da Vila Estrela. A cama pode ser só uma cama, mas quando você chega perto e entra na instalação que nomeamos de “Quarto de despejo”, você percebe que se trata de uma maca. A patroa presenteou a funcionária com uma maca, dando a entender que ela poderia usar como uma cama. Isso diz muito sobre o abismo social, sobre as questões de classe que enfrentamos até hoje ao nosso redor”, explica Cleiton. A instalação ganhou outros contornos ao longo do tempo: nas paredes, os visitantes escreveram seus próprios depoimentos, muitos se sentindo parte daquela realidade.

As fotografias, os jornais com reportagens sobre os personagens da Vila Estrela, os bordados e os símbolos do congado se misturam a objetos e enfeites que traduzem a realidade de donas de casa, pedreiros, empregadas domésticas e tantos outros trabalhadores que tiveram suas vidas construídas entre as ruas do Morro do Papagaio. “O que mais gosto aqui no museu são as bonecas que eu trouxe para o acervo. São minhas. Foram minhas primeiras bonecas, achei em um brechó quando minhas filhas já eram quase adolescentes. Comprei para mim, mas trouxe para cá, porque minhas filhas começaram a querer brincar com elas também. Fiquei com medo de estragar. As bonecas são sobre uma infância que eu não pude ter”, conta Lourdes, mostrando seus objetos entre o acervo.

O museu também desempenha um papel fundamental na educação da comunidade, oferecendo oficinas, palestras e atividades que promovem o diálogo sobre questões sociais contemporâneas. Através dessas iniciativas, busca não apenas informar, mas também engajar a sociedade em reflexões acerca do racismo, da desigualdade e da importância da valorização das culturas afro-brasileiras. “O Muquifu, para mim, é acima de tudo uma lembrança, um reafirmar do que significa ´comunidade´, ele é feito para a comunidade e pela comunidade. Só faz sentido, se for assim. É uma ocupação bonita. Qualquer um que quiser chegar e compor esse espaço, será bem-vindo, desde que respeite a história que esse lugar conta”, finaliza Cleiton.

Opções de acessibilidade