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Museus vivos para conversar histórias

No Sul do Ceará, casas e oficinas de mestres da cultura vêm sendo transformadas em museus vivos, de portas abertas para quem quiser entrar, tomar um café, conversar com artistas incríveis e ressignificar o conceito de patrimônio cultural

Laís Domingues


Quando buscamos o significado da palavra “Orgânico”, o dicionário logo nos entrega a seguinte definição: “relativo ou pertencente a um ou mais órgãos, ao organismo de um ser vivo.” Começo esse texto a partir da pesquisa no dicionário, pois o projeto Museu Orgânico se autodefine incorporando o conceito de organismo vivo, incluindo toda a fluidez e singularidade de cada ser e fazer.

O projeto teve como semente embrionária a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Cariri, de Nova Olinda, (CE). O espaço nasceu em 1992 com o intuito de resgatar a memória do povo da região, o Vale do Cariri, e ser um centro de memória: “nós resgatamos a cultura local nas áreas de arqueologia, mitologia, artes e comunicação”, conta Alemberg Quindins, criador da organização.

Hoje, os alunos mantêm um canal de TV, de rádio, uma editora de gibis e um museu que conta com um rico acervo de 2.600 HQs e 1.600 títulos de clássicos do cinema. A ideia é desenvolver a capacidade de liderança das crianças a partir dos laboratórios de produção, em que elas fazem a gestão colaborativa de diferentes projetos de comunicação. Com esse propósito, a fundação foi instalada na primeira casa do município, totalmente restaurada. “A gente queria fazer um museu no qual as pessoas da cidade não se sentissem intimidadas de entrar, que fosse igual à casa delas. Isso tudo é o exercício orgânico”, afirma Alemberg.

O desejo de salvaguardar a cultura local também impulsionou a iniciativa focada na salvaguarda da memória oral, na troca de saberes e no diálogo com os mestres e mestras do Cariri cearense: os Museus Orgânicos dos Mestres de Cultura Tradicional do Cariri. A proposta é estimular experiências únicas: olho no olho, ouvido atento e diálogo solto com figuras como Espedito Seleiro, Françuli, Antônio Luiz e outros mais.

O projeto idealizado em parceria com o SESC surgiu, assim, derrubando as paredes que dividem visitantes e moradores locais do que chamamos arte e cultura, permitindo a democratização de saberes tradicionais a partir do contato direto com quem cria, vive, pensa e faz a arte e a sabedoria popular.

Segundo Alemberg,”museu não é um lugar de contar histórias e sim de conversar histórias”. E que lugar melhor para conversar história do que na porta de casa, tomando um café com bolo ou bolacha? Os Museus Orgânicos acontecem nesse contexto, muitas vezes domiciliar, onde o visitante acessa não só o trabalho dos mestres e mestras, mas o seu cotidiano, o núcleo familiar, as memórias os locais de criação, as ferramentas, as fotos de família.

Nas visitas agendadas, o público conhece o terreiro, a vizinhança e tudo que pode servir de inspiração para os artistas. Cada visitante sai guardando um recorte, uma história, a depender da conexão estabelecida, da curiosidade e do fluir da conversa. “As pessoas podem sair com informações e memórias que nem quem ajudou a criar o museu saberia. Dessa forma, o conceito dos museus orgânicos está relacionado à vivência e ao relacionar-se, como fonte de compartilhamento e troca de saberes relacionados a linguagens como: o couro, a tecelagem, os brinquedos, os brincantes ou a própria gastronomia.

“No museu do doce você vai e come as peças”, explica Alemberg, fazendo referência ao Museu Orgânico Casa do Doce de João Martins, doceria tradicional que existe desde 1965 em Juazeiro do Norte que lembra que a memória de um povo também existe através do paladar. Alguns museus também oferecem vivências com hospedagem e alimentação, incorporando quem visita ao cotidiano e à dinâmica familiar.

O projeto vem há alguns anos desconstruindo conceitos e tratados museológicos e, talvez, justamente por isso, tem se expandido rapidamente para além da região do Cariri cearense, chegando a outras cidades do estado, incluindo a capital Fortaleza até 2024. A potência do projeto Museus Orgânicos é também reconhecida por pesquisadores e estudiosos dentro e fora do país, servindo de inspiração para outras redes do Sesc, como o Sesc Pernambuco que, através do HUB Criativo, já está adotando o projeto com 7 novos Museus nas cidades de Petrolina, Triunfo, Lagoa Grande, Arcoverde e Garanhuns, incluindo comunidades quilombolas, mestres e mestras do estado formando um circuito importante na região agreste e sertão do estado.

Os Museus Orgânicos parecem, assim, nos oferecer uma possibilidade de enxergar a arte e a cultura de uma nova forma, a partir da superação de práticas museológicas que se baseiam em projetos expográficos com caixas de vidros, cubos brancos e infinitas regras que afastam visitantes das obras expostas. O projeto contribui também para a desfetichização da arte e do artista como figura distante e inalcançável e nos aproxima do ser criativo e de seu processo, tornando possível a intimidade do diálogo sem a mediação de QR codes, ou interpretações de terceiros. Assim, “o mestre não precisa sair de casa para estar num museu”, finaliza Alemberg.

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Laís Domingues é arte educadora, artista visual e têxtil e produtora cultural pernambucana. Desenvolve suas pesquisas sobre memória e tramas sociais através da fotografia, do vídeo e da cultura popular desde 2016. É também idealizadora do projeto “Bordando o Feminino”, financiado pelo Funcultura da Secult-PE, através do qual viveu por 5 meses em Passira, no agreste pernambucano, compartilhando saberes e recebendo aulas com mestras do bordado de Passira.