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O artesanato e os festejos populares do Brasil: do enfeite à festa

Em diferentes territórios brasileiros, a poética dos festejos religiosos ou sacroprofanos ostenta a rica estética de uma civilização mestiça e tropical, marcada pela originalidade de indumentárias, estandartes e objetos artesanais

Camila Fróis


Fotos: Samuel Macedo

Em todo o país, as festas populares aliam religiosidade, sociabilidade, musicalidade e emolduram-se com mascarados, caretas, reis, rainhas, caboclos, porta-estandartes, pastoras e muitas outras fantasias e personagens. As festas permitem múltiplas leituras da vida social, outras linguagens e rupturas da ordem pautadas no sincretismo e ocupação do espaço público com pautas, valores e manifestações que transcedem as rígidas hierarquias sociais da vida comum. Elas são celebradas, às vezes, em grandes espetáculos, em outras, de forma mais simples, mas sempre com sofisticação em sua essência.

De acordo com a pesquisadora Camile Mendrot, as manifestações folclóricas dividem-se em cultos e folguedos. Os cultos relacionam-se às divindades, santos, milagres e louvores. Os folguedos são brincadeiras, jogos, danças e representações coreografadas. Eles são relacionados a um marco temporal, que pode ser o ciclo natalino, junino ou carnavalesco, ou a personagens espirituais ou mundanos, como o Divino, o Boi e a santos padroeiros locais.

“Essas manifestações, sejam religiosas, ou sacroprofanas, como as congadas e festas juninas, formam um imenso repertório de celebrações, cujo enredo dessas festas mistura, portanto, símbolos, temas, emoções, superstições, gestos e estéticas que transitam entre o sagrado e o profano”, afirma Mendrot. Ao tomarem as ruas, os rituais são embalados pelo som de cortejos musicais cheios de energia e marcados por indumentárias que são produtos da cultura popular e mediadoras de signos e representações.

Nesse contexto, o artesanato dá sentido, textura, forma e cor às representações culturais com diferentes origens, seja no chapéu do guerreiro do auto natalino de Alagoas, nos tambores do reisado, nas xilogravuras e objetos de cerâmica dos cenários de festejos juninos, ou nos carros alegóricos do carnaval carioca, maior festa de rua do mundo.

Para a criação da indumentária ou cenário desses festejos, os artesãos se valem de um repertório amplo e criativo de técnicas e de usos que narram histórias, memórias e conhecimentos. Os trajes, mamulengos e esculturas expressam, portanto, uma linguagem simbólica que transcende o valor funcional da roupa ou da imagem, sobretudo quando propõem a construção de personagens e sinalizam valores culturais ou relações com o corpo pela ornamentação.

No Maranhão, por exemplo, uma das maiores manifestações populares do Brasil, “o Bumba-meu-boi manifesta a força de uma metáfora que flutua entre lenda e realidade e se expressa por meio de uma rica linguagem narrativa e visual relacionada à impermanência de vida-morte-vida: o boi nasce, morre, e ressuscita como uma estrela, em noite de São João”, conforme explica a designer e pesquisadora Camila Pinheiro, idealizadora do Movimento de Artesãs e Ofícios – Mãos.

O Bumba-meu-boi do Maranhão destaca-se dos festejos similares de outros estados do país por seu processo criativo que compreende uma variedade de estilos, sotaques, grupos e, principalmente, estabelece uma relação única e profunda entre fé, festa e arte. Camila destaca que isso inclui uma indumentária própria que remete à sua natureza local. O boi do Maranhão também é marcado pela figura do cazumbá, personagem mascarado que brinca e até põe medo nas crianças.

Para a confecção das peças artesanais utilizadas no Bumba-meu-boi, geralmente,são utilizadas variadas técnicas e materiais, desde os de origem vegetal aos industrializados. As peças podem ser confeccionadas de algodão, couro, veludo, cetim, chitão e frequentemente são bordadas com missangas, canutilhos, penas e fitas. Para além do objetivo funcional do vestir ou estético do decorar esse tipo de indumentária dos festejos funciona principalmente como proteção: uma segunda pele que conecta quem cria com quem veste. Nos tempos primórdios do festejo, eram essas duas a mesma pessoa: o próprio brincante produzia sua fantasia. Por conta da grandiosidade que festa alcançou, hoje as companhias de dança contam com o esmero exclusivo de mãos e mentes de costureiras e artesãs. Elas colaboram ativamente para a salvaguarda da manifestação, como se elas carregassem a impressão digital de todo um povo.

Em Caruaru (PE), discípulos do Mestre Vitalino eternizaram a imagem do sertão com suas peças de barro em que retratam Lampião, Maria Bonita e outros elementos da cultura nordestina, como a procissão, a banda de pífanos, os retirantes e a vaquejada. Essas peças são elementos de destaque nos cenários criados para o São João, um dos maiores festejos da cultura brasileira.

Já o bordado é personagem principal em pelo menos duas festas tradicionais do nordeste brasileiro: a festa de Sant’Anna (Caicó, RN) e a festa de Nossa Senhora da Purificação (Santo Amaro, BA). De acordo com a antropóloga e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB-Cecult,Thaís FernandaSalves de Brito, no contexto dessas festas, o bordadorichelieu transpõe a noção desouvenirs, enfeites para a casa ou indumentária, conduzindo discursos, narrativas e posicionamentos políticos e prolongam, assim, as características festivas, uma vez que são parte da materialidade dos eventos.

Durante o mês de julho, o município de Caicó celebra a avó de Jesus e seus milagres na região por meio da comida farta, dos bailes, do jeito de cuidar da casa e de se enfeitar. Este é o momento de se contar muitas histórias que vão das narrativas de assombração às memórias da lida no campo. Nestes dias, a cidade guarda uma vida intensa, constituindo um tempo e um espaço de sociabilidade no qual o sagrado e o profano se entrelaçam na construção de uma identidade coletiva.

Cerca de 100.000 fiéis participam anualmente desta festa em que os bordados aparecem em todos os lugares. Na “festa, o bordado é publicizado. Ele sai da casa da bordadeira e vai para a rua. Da rua, parte para outras casas, levando sempre consigo a bordadeira que os fez, sua história, seus saberes”, afirma a professora. Ela explica que os bordados saiem de dentro da cozinha e enfeitam os lares desde os batentes das janelas e as visitas são recebidas com enxovais elegantes, peças herdadas (e cuidadas por gerações) ou encomendadas para este.

Assim como em Caicó, em muitas outras festas populares, os fazeres e ofícios dos artesãos brasileiros se entrelaçam às lendas, manifestações criativas e tradições populares que são verdadeiros patrimônios populares do país, inspirando e dando sentido a elas.

Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.

Samuel Macedo é fotógrafo, músico e viajante. Cearense do mundo. Das incursões primeiras pelos terreiros de sua terra natal, um Cariri que se faz “verdim”, encrustado na Chapada do Araripe, ganhou os quintais do mundo, em expedições iniciadas já na adolescência. Foi ainda menino que descobriu sua fascinação pela imagem. O avô tinha uma oficina de onde saíam as traquitanas mais fantásticas, entre elas sua primeira câmera, uma caixa escura feita com resto de tudo o que se possa imaginar. Foi também observando, ainda menino, os muitos personagens que povoavam seu imaginário – benzedeiras, rezadores, aboiadores, mestres de reisado e cantadoras – que herdou seu tino (ou sua sina) de fotógrafo, retratista. Percebe em cada traço, cada gesto uma narrativa das gentes do sertão (ou não), todos aqueles que fazem do viver uma arte. São os tais “artistas do sertão”, como costuma dizer.