O artesanato na moda brasileira: um novo olhar sobre tradição e inovação
A moda brasileira e a produção artesanal possuem uma relação intrínseca e histórica, marcada pela busca por autenticidade, que é a principal marca do slow fashion. A última edição da São Paulo Fashion Week foi inspiradora nesse sentido, mas há ainda muitos desafios para que marcas autorais, que apostam nesse movimento, consigam escalar sua produção
Bruna Rigato
6 de dezembro de 2024
A última edição do São Paulo Fashion Week (SPFW) que aconteceu em outubro deu o merecido protagonismo ao artesanato brasileiro. A principal passarela do país, comprovou que o trabalho manual tem se tornado uma ferramenta importante para fortalecer a identidade nacional da moda. E é por isso que podemos afirmar sem medo de errar: mais do que uma tendência ou homenagem pontual, muitos dos 41 desfiles do evento evidenciaram nossa riqueza e a diversidade cultural como parte das narrativas criativas das marcas.
O que as marcas apresentam vai muito além do uso das técnicas manuais, como crochê e bordado; elas carregam um reflexo cultural profundo. Resgatar o artesanato está intrinsecamente ligado ao território brasileiro e suas especificidades, pois, em um país de dimensões continentais, essa riqueza se traduz em uma imensidão de possibilidades: explorar diferentes regiões, aprender com as tradições locais, trocar experiências com os artesãos e incorporar essa diversidade à criatividade dos designers. Esse processo não apenas enriquece as coleções, mas também reforça o vínculo entre moda, identidade e cultura.
No desfile memorável de pré-abertura que aconteceu no Museu do Ipiranga, o recifense Gustavo Silvestre, do projeto Ponto Firme que promove transformação social através da moda e do crochê para detentos e egressos do sistema prisional, trouxe a técnica manual para a passarela de forma vibrante e contemporânea, traduzindo técnicas do cotidiano em peças únicas. Mas o impacto vai além das peças apresentadas, tratando-se de um movimento contínuo de resgate, reinvenção e valorização do que é feito a mão.
Antonio Castro, diretor criativo da Foz, resume bem esse momento: “O que a gente tem visto na moda brasileira é essa visão política e social, enquanto reflexo na maneira que a gente consome. A moda tem se tornado mais consciente e, nesse contexto, o artesanato surge como uma ferramenta de fortalecimento de identidade, tanto para as marcas quanto para a moda brasileira como um todo.” Sua própria trajetória reflete isso; desde 2020, Antonio trabalha com os mesmos grupos de artesãos, experimentando novas possibilidades estéticas a cada coleção. Esse compromisso de longo prazo, segundo ele, é essencial para garantir que o artesanato não seja apenas um recurso estilístico, mas parte da transformação cultural.
Essa mudança, contudo, não aconteceu de forma casual. Durante décadas, o artesanato no Brasil foi tratado como algo rústico e antiquado, distante da moda do shopping center que as pessoas comuns desejam e consomem, onde marcas internacionais globais são referência como padrão estético. Isso reflete uma separação histórica entre indústria e trabalho manual, alimentada por uma valorização do padrão industrial em detrimento da imperfeição do feito à mão. Diferente do que ocorreu na Itália, por exemplo, onde o artesanato foi integrado ao luxo e se tornou uma peça-chave do prestigiado Made in Italy, o Brasil demorou a reconhecer o potencial criativo e comercial do artesanato.
Mas essa visão está mudando. Marcas como Catarina Mina, Artemisi e Dendezeiro mostram como o artesanato brasileiro pode dialogar com diferentes estéticas e públicos. Celina Hissa, da Catarina Mina, vê esse movimento como um resgate necessário: “O Brasil não pode falar de moda sem reconhecer a importância do artesanato. Ele é, sem dúvida, a alma da moda brasileira.” Em seu último desfile, “Herdeiras do Futuro”, Celina convidou o público a refletir sobre o papel do artesanal em um mundo acelerado, destacando a necessidade de valorizar o tempo e o saber-fazer das artesãs.
Essa diversidade de abordagens é uma das riquezas do artesanato brasileiro. Enquanto a Artemisi combina tecnologia com técnicas manuais criando peças que poderiam existir em cenários futuristas, a Dendezeiro incorpora o artesanato em um estilo urbano e jovem, mostrando que o trabalho manual pode ser tanto tradicional quanto contemporâneo. Já a Foz, de Antonio Castro, aposta na ancestralidade e na reinvenção contínua de técnicas e grupos, mostrando que o artesanato é um campo infinito de possibilidades.
Marina Bitu, cearense à frente de duas marcas com propostas distintas, é um exemplo da diversidade e da riqueza que surge ao unir artesanato e moda, sempre considerando a lógica do trabalho envolvido. Por um lado, a Sau Swim, fundada em 2020 em parceria com Yasmin Nobre, utiliza o artesanato de forma pontual, adaptando-o às especificidades do beachwear. Por outro lado, sua marca homônima mergulha mais profundamente nas técnicas artesanais, criando um diálogo íntimo com suas raízes cearenses. Para Marina, o artesanato vai além de uma escolha estética: “Aqui no Ceará, o artesanato movimenta a economia e garante renda, especialmente para mulheres. Incorporá-lo ao meu trabalho é uma forma de preservar e perpetuar esses ofícios para o futuro.”
Essa conexão entre designers e artesãos, no entanto, exige mais do que boa vontade. Como aponta Celina Hissa, o ritmo e a lógica do artesanal frequentemente se chocam com as demandas da indústria da moda, que trabalha com prazos apertados e grandes volumes de produção. Além disso, a distância geográfica entre os polos artesanais e os centros comerciais é um desafio logístico significativo. “É essencial repensar essa colaboração”, diz Celina. “Precisamos de mediadores que facilitem o diálogo entre artesãos e marcas, garantindo que a integração aconteça de forma respeitosa e produtiva.”
É desafiador? muito, mas isso não está impedindo que a presença do artesanato na moda brasileira seja cada vez maior e que ainda seja um elemento transformador. Pelo contrário, evidencia a necessidade de capacitação tanto para artesãos quanto para designers, que precisam aprender a trabalhar em fluxos diferentes dos tradicionais. Como destaca Antonio Castro, “o desafio do designer é manter uma relação duradoura com os mesmos grupos, reinventando as técnicas a cada coleção. É isso que faz o artesão crescer junto e explora nuances que antes não eram percebidas.”
Mas sabemos que para que tudo isso não morra na praia, o consumidor precisa conhecer e valorizar o artesanato. Por isso, eventos como o SPFW e a exposições, como a recém-inaugurada mostra “Artistas do Vestir: Uma Costura dos Afetos”, no Itaú Cultural, desempenham um papel crucial nesse processo. Eles não apenas aumentam a visibilidade do artesanato, mas também ajudam a mudar a percepção do público sobre seu valor cultural e econômico. Além disso, criam uma narrativa coletiva que posiciona o artesanato como uma peça central na construção de uma moda brasileira autêntica e sustentável.
O futuro, como mostra a experiência de marcas como Foz, Catarina Mina, Marina Bitu e tantas outras, passa por integrar o artesanato à indústria de forma contínua e viável. Isso significa respeitar o ritmo e a singularidade do trabalho manual, ao mesmo tempo em que se busca torná-lo comercialmente relevante. “O artesanato brasileiro não está na 25 de março ou no Bom Retiro”, reflete Antonio Castro. “Ele está no resto do Brasil, em mãos que carregam história, técnica e emoção.”
Nesse sentido, o artesanato se torna mais do que uma estética: é uma filosofia de vida, uma maneira de desacelerar e valorizar o humano em um mundo cada vez mais industrializado. E, na moda brasileira, é também uma forma de olhar para o futuro sem perder de vista o passado, dando uma nova visão sobre o que é brasilidade.
Bruna Rigato é designer de formação com experiência no setor de moda e luxo, tanto no Brasil quanto na Itália, tendo trabalhado em marcas como Gucci e Moncler nas áreas de merchandising e desenvolvimento de materiais. Possui um Master em Fashion Direction e Product Management, além de uma pós-graduação em Gestão de Projetos Culturais pela Università Cattolica em Milão, onde mora há quase 10 anos. Atualmente, atua com diversas colaborações e projetos, incluindo a Fashion for Future, uma plataforma com uma visão global de moda voltada para jovens profissionais e pequenas empresas.