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O cerrado em tramas nas mãos do Mestre Juão de Fibra

Artur Lins


Com essas palavras, Juan define o potente trabalho criativo do pai: o artesão que vive no bairro Pedregal, em Novo Gama-GO e acumula aproximadamente 30 anos de experiência na técnica do trançado com fibras vegetais. João Gomes da Silva (seu verdadeiro nome) é hoje uma personalidade que nos conta uma história particular no enredo dessa realidade, tão heterogênea quanto se possa imaginar, do artesanato brasileiro.

“Eu quando me vi artesão, já era artesão…”

Nascido em Varjota-CE, a trajetória desse artesão segue os rastros do fluxo de migrantes nordestinos que chegaram fugidos da seca ao Distrito Federal, em busca de novas oportunidades no planalto central. Lá, viveu uma infância perpassada pela intimidade com o Bioma Cerrado: “A natureza era abundante, tinha muitas matas, muitos córregos, muita vegetação nativa, muitos animais, fauna e flora eram perfeitas. Então fui criado aqui nesse meio, nesse cerrado… e foi com esse cerrado que despertou em mim o senso de artesão”, diz João.

Nem sempre os artesãos possuem uma relação geracional com o processo artesanal bem definida. Por vezes, são as circunstâncias, para além da influência do núcleo familiar, que conduzem essas pessoas para a atividade criativa que desempenham. No caso de João Gomes, sabemos que a manualidade se encontra, de certo modo, em seu DNA.

“A minha mãe fazia chapéu lá no nordeste, com palha de carnaúba, fazia peneira, essas coisas com palha. Ano passado estive no Ceará, fui onde a minha mãe nasceu e viveu para saber um pouco da história. Fui coletar um pouco das memórias da minha mãe para entender por que eu vim assim ao mundo. Eu descobri que a nossa família vem de uma linhagem de artesãos ligados às fibras e à tecelagem. A minha mãe era artesã e o meu pai pescador artesanal. Então, de certa forma, o meu pai também era um artesão, mas da natureza”, diz João.

O artesão lembra que, ainda muito novo, espontaneamente, coletava pedras e as esculpia, e, com 13 anos de idade, já transformava cipós em guirlandas e folhas em flores: “Eu quando me vi artesão, já era artesão”, conta. Aos 20 anos de idade, a vida de João Gomes se cruza com o caminho de Dona Antônia Lopes de Oliveira – à época presidente da Associação dos Artesãos do Gama – a quem reputa ser uma inspiração e grande mestra. Dona Antônia dominava a técnica de trançado com o capim colonião, conhecimento trazido do tempo em que vivia em Garanhuns-PE: “É como se tudo o que eu faço eu devesse a ela, de alguma forma ela veio primeiro do que eu, e de, alguma forma, essa técnica desapareceu em Pernambuco, porque não existe lá, e agora existe aqui no entorno e DF, porque ela trouxe”, afirma o artesãos.

Vale lembrar que quando falamos sobre artesanato, vez por outra, o papel do indivíduo some em função da tradição e da coletividade. Cremos, porém, que esta seja uma abordagem equivocada, dado que a individualidade e a coletividade se situam em níveis distintos do processo criativo, não havendo necessariamente a sobreposição de um pelo outro. Ao assimilar a técnica de Dona Antônia, João Gomes procurou desenvolver um estilo próprio: “É como se fosse uma impressão digital, cada um tem a sua. Nunca ninguém vai conseguir tramar a mesma trama, da mesma forma, fazer a mesma peça do mesmo jeito”, crava. Ninguém poderia, portanto, dizer-se dono da técnica, mas o que se faz com ela, como se apresenta ao mundo, ou seja, o estilo, isso, sim, refere-se a uma questão autoral. Da linguagem compartilhada pelo coletivo brota a grafia individual, a assinatura, a impressão digital. No caso de João, esse estilo fica claro em uma trama com traços muito exclusivos, um trançado de quatro fios, feito a partir de capim coletado verde. O cruzamento das fibras resulta numa estrutura curiosamente elegante que parece um DNA humano.

“Quando a gente caminha a gente deixa rastros…”

Valendo-se, principalmente, desse capim colonião e da fibra de buriti, João Gomes colhe manualmente a própria matéria-prima, aplicando técnicas de manejo sustentável, com respeito à sazonalidade das espécies e ao reflorestamento da vegetação. Além disso, o artesão observa que o capim, abundante às margens das rodovias, funciona como uma barreira de proteção natural, filtrando a poluição, impedindo que outros resíduos – como óleo e borracha – adentrem ainda mais severamente o cerrado. Por isso, preservar o capim é uma forma de contribuir para a sustentabilidade do bioma.

Inicialmente, as peças produzidas por João apresentavam feições figurativas, esculturas de capim inspiradas por formas animais e imagens antropomórficas e, aos poucos, também ganharam a forma de artigos de decoração, como vasos, mandalas, luminárias, painéis e cestos. Em 2005, a partir de uma sugestão do SEBRAE, João investiu na criação de uma linha de acessórios de moda feminina, incluindo brincos, colares, bolsas e afins. Além de inovar no seu mix de produtos, passou também a se dedicar ao acabamento de suas peças, aprimorando o geometrismo das suas criações e a harmonia de cores empregadas.

Antes de alcançar o reconhecimento que hoje desfruta como mestre, o artesão enfrentou dificuldades financeiras e estigmas típicos da atividade artesanal, que muitas vezes não é compreendida como uma profissão.“Eu era visto como uma pessoa vagabunda, como uma pessoa que não queria nada com a vida. Eles achavam que eu era louco. Houve uma época que a frustração foi tão grande que eu tinha um quarto cheio de objetos de arte que tinha feito e com matéria-prima e tudo; Quando eu me revoltei coloquei tudo no quintal, aqui mesmo nesta casa, fiz uma montanha de tudo que tinha, tudo que me lembrava da vida do artesanato, e queimei, toquei fogo e chorei em volta desse fogo. Ia chorando e lastimando a minha profissão, como uma profissão amaldiçoada”, conta.

Depois desse episódio, o artesão passou cinco anos longe das suas fibras, trabalhando em um cargo público na administração da sua cidade, até que uma de suas peças foi parar na Secretaria do Trabalho e Emprego do Distrito Federal. A partir daí, ele foi novamente convidado para expor seu trabalho e dessa vez passou a trilhar um caminho sem volta. “Eu sempre costumo dizer, quando a gente caminha a gente deixa rastros”, avalia. A conexão com uma série de agentes, pessoas e instituições, como o SEBRAE, o Ministério de Ciência e Tecnologia, a Rede Artesol, o Centro de Desenvolvimento Tecnológico da Universidade de Brasília e o Museu Casa projetaram o trabalho de João Gomes nacionalmente e lhe conferiu outro status.

“Geralmente o artesão vende o almoço para comprar a janta, essa é a realidade do país. Quando comecei, o cliente era quem dava o preço e não porque entendia de qualidade, mas porque ele queria dar cinco reais e eu precisava de cinco reais. Hoje, não”, explica

“Eu reconheço o meu trabalho como um trabalho único, um trabalho feito à mão, exclusivo, uma coisa que carrega um conceito. Hoje eu tenho argumento para falar com meu cliente e ele tem entendimento para perceber que aquele trabalho vale aquilo”, avalia João.

Ao longo dos últimos anos, além de participar de várias exposições e feiras pelo Brasil, o mestre ganhou um livro sobre sua história, teve sua peças utilizadas em ambientações sofisticadas como a do evento CasaCor e Casa de Alessa, ganhou páginas de publicações reconhecidas como a Revista Casa Vogue. João figurou também entre os melhores artesãos do Brasil no catálogo elaborado pelo Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro de 2017 e foi homenageado na maior feira de artesanato da América Latina, a FENEARTE, em 2018. O trançado de João Gomes ainda transpôs fronteiras através do diálogo com o design contemporâneo em coleções de marcas nacionais como a Lokalwear e internacionais como a Osklen. O padrão do seu negócio definitivamente se transformou.

“Dizem que mestre é aquele que repassa…”

Quando olhamos para o caso de Juão de Fibra, estamos diante de uma trajetória de alguém que venceu obstáculos e atingiu um patamar considerável dentro do mercado do artesanato no Brasil. Hoje, a sua atividade é encarada como um empreendimento capaz de gerar retorno, empregar mão-de-obra de outras pessoas, e, inclusive, estimular outros polos de produção artesanal. Não falamos mais do artesão João Gomes, trabalhando individualmente à luz de lamparina até altas horas da madrugada. Trata-se de uma marca, uma TAG, um nome artístico: “Juão de Fibra”. “Conversando com um designer, que é o Renato Imbroisi, a gente, na brincadeira, ele disse põe aí: ‘Juão de Fibra’. A marca se fundiu à pessoa”.

Além da sua produção artesanal, para fins de comercialização, João Gomes forma vários grupos produtivos através de consultorias em todo o país, contribuindo para a salvaguarda da técnica e a respectiva difusão do conhecimento, principalmente voltada para a população jovem. Ele promove, assim, intercâmbios de saberes entre diversas regiões, levando inovação, para o contexto da criação do objeto artesanal de outros artesãos e artesãs. Mas, afinal, quem diz quem é um mestre? Ser mestre é ostentar um título? João Gomes, ao longo da sua carreira, colecionou títulos de mestre emitidos por diversos Estados e municípios brasileiros. No entanto, o artesão argumenta ser esta uma condição que ultrapassa a solenidade do reconhecimento oficial. “Porque dizem que mestre é aquele que repassa, então eu faço isso já há muitos anos”, afirma.

Se sabemos que a titulação de mestre obedece a interesses políticos, afinal, qual seria a responsabilidade social de um mestre?.“Eu falo que o artesanato é um agente transformador. E muito mais que o artesanato, o artesão que transmite o que conhece é um agente transformador, porque ele consegue passar a vivência na íntegra. Não é fantasia, é a realidade dele. Muitas pessoas às vezes estão frustradas, porque passam por uma situação que o artesão que ensina já passou. Então eu me vejo como uma pessoa que transformou a vida já de alguns artesãos, desde quando consegui transformar a minha”, finaliza João.

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Mestrando em Sociologia na Unicamp