O comércio justo e o artesanato
O comércio justo é um movimento mundial baseado em relações mais próximas e humanas entre pequenos produtores, como artesãos, e consumidores para garantir práticas comerciais éticas e impulsionar modelos de produção e consumo mais sustentáveis.
Ana Clara
22 de novembro de 2024
O Comércio Justo (tradução da expressão Fair Trade, em inglês) busca estabelecer práticas comerciais baseadas no respeito, equidade, parceria, confiança e transparência entre produtores e consumidores, de modo a oferecer salários justos aos pequenos produtores que trabalham respeitando o meio ambiente, os modos tradicionais de produção, a equidade de gênero, e as normas da organização internacional do trabalho.
Nascida a partir da crítica às práticas comerciais convencionais, muitas vezes pautadas por acordos injustos para os produtores, e que tendem a favorecer monopólios e economias já desenvolvidas, as práticas propostas pelo comércio justo almejam direcionar os recursos para onde ele pode gerar mais equidade e justiça.
No Brasil, além de respeitar os parâmetros de remuneração justa, relações comerciais pautadas na transparência e confiança, autores como Cássio Luiz de França (2003) sugerem ser importante que o CJ considere as diversidades culturais e históricas do país, de modo que os conhecimentos e produções das comunidades tradicionais sejam reconhecidos e valorizados.
De que modo acontece?
As práticas do comércio justo podem ocorrer em circuitos comerciais curtos, nos quais os produtores fazem a venda direta para os consumidores, em espaços como feiras e lojas colaborativas, sendo as negociações baseadas na confiança a respeito da origem dos produtos. Um segundo caminho seria aquele no qual os produtos são certificados através dos sistemas de Selos (Fair Trade Labelling), que respeitam critérios estabelecidos por organizações internacionais voltadas para a regulação e fomento do comércio justo a nível mundial. Os produtos certificados são comercializados por estabelecimentos credenciados em redes de super e hipermercados em diversos países do mundo.
A pauta do comércio justo ou equitativo emergiu no final dos anos 1950 no Reino Unido, com a compra e comercialização de artesanato produzido por artesãos refugiados chineses pela Oxfam. O circuito se expandiu, formando uma rede de Lojas do Mundo que comercializam produtos artesanais feitos no Sul Global. Décadas depois, nos anos 70, passou a incluir alimentos produzidos por cooperativas de pequenos agricultores, sobretudo café.
No Brasil, o artesanato é composto por uma rica e diversa produção cultural que é fonte de renda para milhares de famílias. A comercialização do artesanato gera recursos para muitas comunidades tradicionais – indígenas, ribeirinhas, seringueiras, quilombolas, caiçaras – que conciliam uma produção sustentável, respeitando a disponibilidade de matéria prima e os modos de fazer tradicionais. Ainda que o artesanato represente um potencial de geração de renda que respeita os modos de vida tradicionais e perpetua a cultura do país, pôr em prática os princípios do comércio justo no setor ainda é um desafio.
Os desafios para implementar o comércio justo
No Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB) havia, em 2022, 197.505 pessoas registradas como artesãs ou mestres, dentre as quais 57% afirmaram receber até 1 salário-mínimo mensal com o trabalho artesanal. A baixa remuneração aponta para a dificuldade em atender a um dos princípios básicos do comércio justo, a remuneração socialmente justa ao produtor, que se deve a possível dificuldade da parte dos artesãos em calcular o preço de custo das peças, que é base para o preço justo, ou à pressão de compradores que não estão dispostos a pagar o preço estipulado pelos produtos.
Outros fatores a serem observados é a falta de créditos de médio e longo prazo direcionados aos artesãos, que permitiria estruturar os locais de produção, regularizar associações e promover uma série de outras melhorias. Artesãos relatam problemas com o transporte e envio de peças a um valor acessível, e aqueles produtores que se encontram fora dos centros urbanos e das regiões com acesso à transportadoras tem muita dificuldade em escoar suas produções. Os circuitos de comercialização, por sua vez, raramente garantem uma renda estável, sendo por vezes permeados por negociação que não levam em conta a remuneração justa dos produtores, e sim o lucro dos intermediários.
São desafios semelhantes aos que os pequenos agricultores enfrentavam décadas atrás, e que foram parcialmente mitigadas com certas políticas públicas. Para os artesãos, porém, não conhecemos políticas de crédito, incentivo e direitos sociais semelhantes. De modo que intenções e discursos terão pouco efeito para trazer mais justiça e equidade à vida dos artesãos. Será necessário, pelo contrário, um profundo compromisso para trazer mais ética, respeito e transparência ao comércio no setor artesanal brasileiro.
Da consciência ao projeto de interiores
Algumas organizações têm feito um trabalho relevante na divulgação e em experimentar formas de colocar o comércio justo em prática. A Rede Origens Brasil, que fomenta negócios da sociobiodiversidade amazônica, articulando produtores locais, povos indígenas, populações tradicionais e organizações de apoio com empresas que compram estes produtos. A Rede tem um papel fundamental em assegurar a origem dos produtos e incentivar que as relações comerciais se estabeleçam segundo critérios éticos, com transparência e confiança.
A Artesol – Artesanato Solidário, tem feito um papel importante de divulgação dos princípios do comércio justo, sendo a educação do público consumidor uma das práticas mais necessárias a médio e longo prazo para a consolidação da ética nas relações comerciais. Instituição membro da World Fair Trade Organization (WFTO), uma das organizações internacionais que confere selos a empresas que atuam respeitando os princípios do comércio justo, a Artesol fomenta e divulga o trabalho de artesãos que trabalham com técnicas tradicionais, de matriz cultural, de todo país.
Com ações de pesquisa, comercialização e projeção no circuito da arte, a instituição busca promover o valor cultural do artesanato sem descolar a produção artesanal do seu contexto de produção, e de quem a produz. A divulgação do trabalho dos artesãos na plataforma da Rede Artesol, contando suas histórias e a relação com seus territórios, busca fomentar a comercialização direta entre produtoras/es e consumidores, um dos pilares do comércio justo. No Canal Artesol, há diversas formações para que os artesãos calculem o preço de custo segundo os próprios critérios, construindo preços para os diferentes mercados, sem abrir mão de uma remuneração justa pelo seu trabalho.
Josiane Masson, diretora executiva da Artesol, afirma acreditar no Comércio Justo como uma saída viável e necessária para a comercialização no artesanato:
“O comércio justo enquanto movimento mundial é crucial para promover uma economia ética e a regeneração ambiental que nosso planeta clama.
Ele valoriza o trabalho dos pequenos produtores e de comunidades que mantém modos de vida tradicionais, essencial para equilibrar a produção industrial que é tão predatória.
O CJ é a única forma de reduzirmos a desigualdade econômica, porque ao praticarmos o Comércio Justo nos tornarmos consumidores conscientes e combatemos o trabalho escravo, ao mesmo tempo que apoiamos a igualdade de gênero, fortalecemos as economias locais e ajudamos a minimizar as mudanças climáticas.”
A valorização do trabalho artesanal enquanto patrimônio cultural e modo de fazer sustentável, no qual a relação entre ser humano e meio-ambiente é respeitosa, merece ser reconhecida em um circuito organizado pelos valores do comércio justo. Ainda há muito a fazer para que as relações comerciais no artesanato sejam relações realmente justas, equânimes, respeitosas e transparentes entre produtores e compradores. Mas é um desafio daqueles que inspiram e fazem valer todo o esforço.
Ana Clara
Ana Clara Andrade Melo é cientista social de formação e educadora e mestre em comunicação de ciência e cultura. Já atuou com cooperativas e grupos de economia solidária em comunidades tradicionais. Atualmente, trabalha como articuladora social da Rede Artesol.