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O ensino do artesanato nas escolas indígenas Xukuru

No agreste pernambucano, as lideranças xukurus tem realizado diversas ações de resgate cultural relacionado às suas tradições, sua espiritualidade, seu idioma e fortalecido a transmissão de saberes através de um projeto de educação indígena que inclui o ensino no fazer artesanal. A atividade é uma importante chave para o fortalecimento da conexão dos alunos com sua própria ancestralidade e a relação com o território demarcado a partir de um processo de intensa luta com o governo brasileiro

Raquel Lara Rezende


“E arte indígena pra gente não é só um meio de gerar renda. É também, mas, pra nós, envolve o sagrado. A gente trabalha com a natureza, e por trabalhar com a natureza, a gente tá trabalhando com a ciência viva. A gente não vai pro mato tirar o cipó, simplesmente por tirar, por isso que pra chegar no mato pra tirar o cipó tem todo um ritual. Pra gente o cipó tem um dono e quando a gente faz aquela arte não é simplesmente pra arrumar um dinheiro, mas, muitas vezes, é pra gente usar em casa, é pra gente catar fava no roçado”,diz Giovani Lima Feitosa, coordenador pedagógico da Aldeia Xukuru Orubá.

Cada fazer artesanal envolve um conhecimento próprio que é repassado, principalmente, no ambiente familiar ou comunitário. No território indígena Xukuru, na Serra do Ororubá, no agreste pernambucano, o artesanato (ou arte indígena como preferem chamar – uma vez que não fazem distinção entre artesanato e arte), também ocupa o espaço escolar. Nos ensinos infantil, fundamental e médio, crianças e jovens que frequentam as 38 escolas indígenas Xukuru são estimulados a compreenderem o valor do fazer artesanal de tradição, dos objetos em si e de seu uso.

Para os 11 professores de artesanato que atuam nas 24 aldeias do território Xukuru, a atividade é uma importante chave para o fortalecimento da conexão dos alunos com sua própria ancestralidade.

Nas escolas indígenas, o ensino do artesanato não se limita às técnicas do fazer, mas se estende à coleta da matéria-prima, no respeito que guia a relação com a mata; e aos sentidos sagrados, ritualísticos e culturais que os objetos trazem consigo.

Por isso, segundo Eduardo Feitosa da Silva,outro coordenador pedagógico da etnia,também é importante incentivar o uso dos objetos artesanais, como forma de trazer para o cotidiano os sentidos simbólicos, dessa forma, o ensino de arte contribui para o fortalecimento da cultura e da identidade Xukuru.

Por exemplo, a barretina, espécie de chapéu feita com a palha do coqueiro, é uma marca identitária da etnia e é usada para a proteção espiritual. Também o tacó, vestimenta feita com a mesma palha, também é usado para proteção. Com a madeira caída que recolhem na mata, são feitos o arco, a flecha e o jupago, cajado usado no ritual do toré. Com sementes, penas e pedras, fazem colares e pulseiras e com as tinturas naturais fazem as pinturas corporais. O memby, flauta antes feita com taboca e atualmente feita com cano de PVC, tocada pelos homens no toré, rito tradicional, também é ensinada aos mais jovens pelo mestre Medalha, Antonio Monteiro leite, atual tocador do memby.

“A gente está indo pra sala de aula ensinar pros curumins pra eles saberem o que estão colocando na cabeça. Porque a gente não coloca uma barretina na cabeça que nem coloca um boné. Tem um significado, tem o respeito com ela, tem a força que vem quando a gente coloca ela na cabeça”, explica José Romero Lopes de Melo, um dos professores.

Fernanda Beatriz da Silva Ferreira, de 16 anos, estudante do nono ano conta sobre a experiência das aulas. “Aarte indígena foi deixada por nossos antepassados e como eles não estão aqui mais, os que ficaram e cresceram, são hoje os professores que estão nos ensinando. O que eles aprenderam com os antepassados, estão ensinando pra gente, pra que a gente possa ensinar pros outros. A gente não aprende a arte indígena só na escola, a gente aprende no ritual, na assembléia, na retomada, pra onde nós vamos, aqui dentro do território Xukuru, nós aprendemos a arte indígena”.

Além das técnicas tradicionais que são ensinadas também nas escolas, muitas mulheres Xukuru fazem a renda renascença, muito presente na região de Pesqueira, município ao qual está vinculado todo o território Xukuru.

Estrutura pedagógica das escolas indígenas Xukuru

O artesanato é uma atividade chave no eixo “Identidade” que compõe o Plano Pedagógico que foi pensado e construído junto a outros povos indígenas do estado de Pernambuco – Atikum, Truká, Pankararu, Pankará, Kambiwá, Pipipã e Kapinawá. Ao todo são 7 eixos que norteiam o currículo escolar e as práticas pedagógicas: espiritualidade – que é o eixo central -, território, história, agricultura, identidade, interculturalidade e organização.

Como explica Thiago Torres de Lima, Presidente do Conselho Estadual de Educação Indígena, os eixos têm como proposta promover o encontro do conhecimento científico produzido pelo não índio com os saberes que se encontram dentro dos territórios indígenas que seguem vivos através da memória coletiva, sendo passados de geração em geração.

Para os Xukuru, assim como para muitas outras etnias indígenas, as coisas ganham vida no sentido coletivo, dessa forma, a escola não se encontra isolada dos outros espaços das comunidades, mas se fortalece e se expande, quando é ocupada por essas outras dimensões da vida Xukuru, contempladas nos eixos. E essa relação forte da escola com o território fica ainda mais clara, quando Giovani conta que sempre antes de tomar uma decisão, ou de debaterem alguma questão relativa à escola indígena, se encontram com os pajés, para escutarem seus conselhos. E nesses momentos aprendem muito e se nutrem. Além disso, a presença dos mais velhos no espaço da escola é valorizada e estimulada, pois aprender a escuta-los é parte do aprendizado da escuta da própria natureza que consideram sagrada e que guarda mistérios e ensinamentos fundamentais para se viver bem.

Educação indígena – conquistas e desafios

Essa realidade escolar que vivem hoje é fruto de muitos anos de mobilização e articulação por parte dos movimentos indígenas. Thiago aponta alguns marcos importantes desse processo que começou entre as décadas de 1960 e 1970, como a participação de algumas lideranças indígenas na Assembleia Constituinte de 1987, o que garantiu o reconhecimento pela primeira vez o modelo próprio de “(…) organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (artigo 231 da Constituição Federal de 1988).

Thiago também cita a Convenção 169, da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 1989, que indicou a importância não apenas ao acesso à educação, em todos os níveis, mas também da construção conjunta com os povos das políticas de educação. Após muita luta com apoio de algumas Organizações Não Governamentais, conseguiram fazer com que essa legislação fosse retificada pelo Governo Brasileiro, o que veio a acontecer somente no início do Governo Lula. “Assim, a gente pôde ter também este esteio jurídico para que a gente pudesse fazer com que a educação nos territórios indígenas pudesse ser mais fortalecida”.

Xicão, Francisco de Assis Araújo, importante liderança indígena Xukuru, assassinado em 1998, em retaliação por parte dos fazendeiros locais ao processo de demarcação de terra, teve um papel muito importante na construção da nova educação escolar indígena.

“Até então, as escolas que existiam em nossos territórios sagrados eram escolas tidas como escolas rurais. Dentro do currículo dessas escolas nunca tinha sido viabilizado nada que se voltasse à cultura indígena”, afirma Thiago. 

O sonho de Xicão era que a história e a cultura Xukuru pulsassem nas salas de aula e que as crianças tivessem acesso a livros didáticos produzidos por eles próprios e que os professores e professoras fossem todos Xukuru. Como conta Thiago, a liderança sempre teve clareza sobre a relevância da educação escolar indígena e a partir da década de 1990 caminhou por todo estado de Pernambuco, visitando os outros povos indígenas e incentivando seu engajamento político para a causa.

Os Xukuru são um povo que enfrentou longos processos de violência e invasão de seus territórios, desde o século XVI, com a chegada dos portugueses e também de influência dos não índios, o que em certo momento chegou a trazer grande desconexão com sua própria tradição. No propósito de relembrar suas raízes, a herança que traziam consigo, Xicão dedicou a sua vida ao fortalecimento de seu povo e de seu modo de vida, baseado principalmente na agricultura, retomando seu território e ocupando o espaço da educação escolar indígena.

Hoje, cada professor e professora das escolas indígenas Xukuru, todo o cuidado e amor que dedicam a esse espaço é fruto de tudo o que realizou em vida. Ao conversar com os professores de arte indígena, é possível sentir quanta energia e confiança colocam em seu trabalho que, como disse um dos professores mais velhos, se parece mais com um trabalho de guardião.

“Se a gente não repassar nossos saberes pros nossos curumins, tudo o que temos hoje, terra, saúde, educação diferenciada, foi conquistado através de ritual, foi através do toque do memby e da pisada do pé. Se a gente não repassar pras nossas crianças, isso vai acabar. Acabando a cultura, acabando a tradição, acabam os povos indígenas”. Giovani.

É certo que ainda existem muitos desafios, principalmente com os cortes de verba na área da Educação, mas também é certo que existe muita força e muita vontade por parte dos educadores, pajés e lideranças de seguir construindo uma educação escolar diferenciada, baseada nos valores tradicionais que sustentam seu modo de vida.

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Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.