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O manifesto do Clube do Bordado

O Clube do Bordado é um coletivo de arte criado por mulheres que produzem ilustrações e bordados, ministram cursos e realizam encontros para incentivar a expressão pessoal por meio do fazer manual. No manifesto abaixo, Amanda Zacarkim conta sobre como surgiu esse movimento de bordadeiras contemporâneas que reinventam técnicas tradicionais transitando pelo empreendedorismo, o feminismo, a arte e a coletividade.

Amanda Zacarkim


Há uma relação longínqua entre o trabalho de grupos de mulheres e as técnicas tradicionais como o bordado, tricô, crochê e tapeçaria que acumula séculos de história. Desde a antiguidade clássica aos grupos que ressaltam o valor da cultura popular, as mulheres são protagonistas no fazer e na perpetuação do fazer com as mãos. Com o Clube do Bordado não poderia ser diferente e a história e missão da empresa formada por seis mulheres refletem uma vez mais o papel feminino na união entre artesanato, design e os negócios criativos.

Se engana, porém, quem pensa que as linhas e agulhas foram o ponto de partida para o começo da nossa história. Há cinco anos, foi a internet e alguns likes no Instagram que uniram as sócias-bordadeiras – Amanda Zacarkim, Camila Gomes Lopes, Laís Souza, Marina Dini, Renata Dania e Vanessa Israel. Depois de ver alguns trabalhos da Camila, que aprendeu com a mãe a bordar desde criança, nós nos interessamos em deixar um pouco de lado a rotina atarefada de São Paulo para nos reunirmos semanalmente e aprender a bordar. Durante um ano, além de aprender os principais pontos do bordado livre, criamos vínculos que se estenderam a conversas sobre mercado de trabalho, vida amorosa, feminismo… Foi assim, então, que aconteceu um encontro feliz entre o bordado – uma técnica cheia de possibilidades com texturas, cores e o efeito dos pontos -, e nossas experiências pessoais. O bordado se tornou nossa mídia escolhida para abordar assuntos contemporâneos sem deixar de lado a feminilidade e o apelo estético. Talvez por isso pareça natural que, ao explorar nossos universos particulares, mais mulheres se reconheçam e se sintam motivadas a se expressar criativamente por meio do bordado.

Muita coisa mudou e nos transformou desde os tempos dos encontros para bordar. Empreender foi a escolha que nasceu do fazer manual e que, ponto a ponto, foi criando novos caminhos profissionais para nós seis. Começamos a promover cursos e oficinas de bordado pelo Brasil e pela Europa, a investir em produtos exclusivos ou feitos em parceria com outras artistas, a produzir conteúdo online para ensinar outras pessoas a bordar e a desenvolver projetos que visam resgatar os saberes dos trabalhos manuais. Foi também pensando na forma como nos conectamos que a escolhemos compartilhar conhecimento e experiências pelas redes sociais, na tentativa de abrir caminhos para a educação baseada na prática e para o empoderamento por meio do fazer com as mãos. Acreditamos que a essência do artesanato está num fazer que demanda tempo, atenção e que geralmente conta com o talento de cada pessoa e com a maestria do trabalho manual.

“Vemos o artesanato não só como um ofício mas como uma fonte de inspiração para repensarmos a relação com o trabalho, o uso do tempo, e as possibilidades de expressão pessoal”.

Um exemplo disso é que o bordado livre é uma fonte de renda para muitas mulheres pelo Brasil, mas apesar das horas de dedicação e do primor de executar um trabalho exclusivo, o mercado e a clientela ainda insistem em criar barreiras que distinguem o artesanato do que pode ser considerado arte têxtil.

Além do fator geração de renda, nós acreditamos também na transformação proporcionada pelo fazer com as próprias mãos – que pode ser muito profunda e significativa, ganhando contornos pessoais que dinheiro nenhum pode medir. Muitos dos relatos que recebemos para o projeto Gente que Borda confirmam essa potência do fazer manual como um trabalho amoroso. Criado em abril de 2017, o projeto reúne histórias de pessoas que encontraram no bordado uma forma de se expressar criativamente, de superar crises de ansiedade, de se reinventar profissionalmente, de formar coletivos como o Clube e ainda de criar iniciativas inspiradoras de inclusão social.

Com o bordado, descobrimos que o fazer com as próprias mãos é inspirador por si só – o que se descobre com leveza, testando e errando, refazendo pontos e desfazendo nós. Esse trabalho que começa na ideia ganha ainda mais consistência entre pares, coletivos e fazeres compartilhados. Parece pouco, mas é nesses pequenos grupos de pessoas que a mágica acontece, pois há a soma de experiências, há contrapontos e há a busca incessante de aprender mais e se aperfeiçoar. E essa forma de usar as mãos para criar, trabalhar e amar é o que está na essência do que queremos compartilhar com o Clube do Bordado.

Manifesto Clube do Bordado

Tudo começa num ponto. Com linha e agulha, de dentro para fora, imaginamos a vida e vamos preenchendo o tempo com alma. Enquanto as mãos trabalham, o pensamento corre solto e por vezes reflete as inseguranças de todo dia – Será que escolhi as cores certas? Será que está ficando ‘perfeito?’. Como se fosse espelho, nos reconhecemos no avesso cheio de linhas aparentes, nós para serem desatados, arremates que deixamos passar. E nesse ritmo interno, quando o tempo abandona os ponteiros e se faz real, abrimos espaço para sermos nós mesmas. A vida tem muito dos momentos de um trabalho feito à mão.

Bordar, costurar, tricotar, pintar, crochetar. Até pouco tempo atrás, esses verbos faziam parte da cartilha da mulher prendada – nem sempre emancipada – e eram por vezes considerados inferiores por não exigirem erudição.

Como mulher do meu tempo, reneguei as manualidades por anos em função da tecnologia e da ‘vida corrida’. E num desses vazios de excesso de informação, ao olhar todos os dias para telas e mais telas, vi que estava longe de mim mesma, apenas assistindo, dando likes passivamente. Até que alguns desses likes se materializaram, e pelo Instagram formamos um grupo de seis amigas interessadas em bordar.

Desde então somos um coletivo que usa bordado, aquarela e outras técnicas manuais para levantar discussões a partir de assuntos íntimos, compartilhar conhecimento e vasculhar a criatividade. Desde esse começo despretensioso damos apoio umas às outras para mudanças de todos os tipos: deixar de lado a insegurança ao desenhar, propor ideias para se livrar de um emprego massante, compartilhar dúvidas existenciais, submeter o ego aos pitacos das amigas, fazer fofocas sexuais, deixar aquele ex para lá, acabar com a competição entre as mulheres e exercitar o amor-próprio. Nos trabalhos com linha e agulha começamos a falar sobre sexo, questionamos tipos e formatos de corpos, gêneros e tabus femininos. Portanto, se para nós o bordado marcou o início de novas amizades e a expressão de nossa criatividade, por que não incentivar mais mulheres, mais coletivos, questões ainda mais plurais?

“Fomos entendendo que essa energia criativa e feminina sempre esteve circulando por aí – e que o momento de deixá-la aflorar é agora, não esquecida na infância nem protelada para a aposentadoria”.

Em uma pesquisa recente pelas nossas redes sociais, mais da metade das mulheres afirmaram que já superaram picos de ansiedade ou depressões profundas com a ajuda dos trabalhos feitos à mão. Uma seguidora conta, por exemplo, que sofreu de uma síndrome e ficou meses sem os movimentos das pernas, passando o tempo apenas sentada ou deitada. Ela aprendeu a bordar e conseguiu com isso relaxar e dar um nó no tempo.

Outra mulher relatou que após perder um familiar e ser demitida do emprego recorreu ao bordado e ao desenho, que a ajudaram a não se deixar abater pelos acontecimentos. Além da função terapêutica e da ocasional ajuda econômica, fazer algo com as mãos abre espaço à expressão pessoal. “A princípio nunca achei que seria capaz de fazer trabalhos manuais, que exigem tanta paciência. Começar nesse mundo foi de grande valor para que eu me descobrisse, me conhecesse!”, relata mais uma bordadeira. E “compartilhar isso é uma forma de motivar outras pessoas que passam pelos mesmos medos com seus talentos e não sabem como se expressar”, entrega outra. Relatos como esses podem parecer banais em um mundo voltado para a alta performance, para a mulher que dá conta de tudo à sua volta mas acaba não tendo tempo para si mesma. Aliás, vale lembrar que a sabedoria do feminino sempre esteve ligada à intimidade e à intuição – e nem sempre respeitada justamente por seu caráter subjetivo.

Essa forma de usar as mãos para criar, meditar, amar e curar é o que está na essência do que acreditamos e queremos compartilhar com o Clube do Bordado. Em momentos de crise existencial, olhar para dentro e ficar consigo mesma. Em momentos de luto, respeitar a dor. Presentear com algo feito por você mesma como forma de gratidão. Criar algo para superar as próprias inseguranças ou expectativas, para agarrar o tempo, para testar paciência, para fazer mágica com as mãos, para expandir o lado lúdico, para dizer quem é e a que veio. Cada vez mais, queremos criar caminhos para que todas se expressem e se empoderem criativamente. Usar a arte para dialogar e, a partir das origens de cada uma, mostrar nossas particularidades de mãos cheias, com o coração também ali, orgulhosamente à mostra.

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